quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Refletindo sobre a ilusão do carro movido a água

Uma das lendas urbanas mais difundidas entre a população brasileira, mas que também atrai atenção no exterior, é a remota possibilidade de se fazer um motor automotivo funcionar com o hidrogênio extraído da água por meio da eletrólise. Na teoria chega a soar fácil, e a alegada vantagem sob o ponto de vista ambiental por emitir supostamente apenas vapor d'água é outro aspecto frequentemente destacado. Porém, não seria prudente desconsiderar algumas dificuldades de ordem técnica que na prática inviabilizam uma aplicação prática em escala comercial.

Um dos casos mais emblemáticos da ilusão do "carro a água" foi o projeto inacabado que o mecânico francês Jean Pierre Marie Chambrin iniciou ainda na época que administrava uma oficina autorizada da Citroën na cidade de Rouen, que tratou de fechar antes de ser chegar ao Brasil em 1976, trazido pelo empresário Jarbas Oiticica, uma das principais lideranças do setor sucroalcooleiro das Alagoas à época. Já desacreditado na Europa, o francês encontrou um ambiente propício para continuar as experiências com o chamado "reator Chambrin" que nada mais era do que uma mufla aquecedora que recuperava calor dos gases de escapamento para evaporar uma mistura de etanol e água em iguais proporções e, supostamente, fazer com que o hidrogênio contido na água e no etanol fosse dissociado através do contato entre o vapor e um catalisador metálico para então ser aspirado pelo motor. Já começam nesse ponto algumas dificuldades, como a necessidade de pré-aquecer o motor com um combustível mais convencional, bem como o uso de água desmineralizada para evitar que eletrólitos encontrados tanto na água mineral na fonte quanto na água de torneira interferissem nas reações de oxirredução e eventualmente diminuíssem a vida útil do catalisador. Também é importante observar que o tal "reator" proporcionava um efeito inverso ao da injeção suplementar de água com algum álcool (normalmente metanol) incorporada em motores destinados a aplicações de alto desempenho. Considerando que não ocorra de fato uma liberação de hidrogênio purificado, por mais que os vapores de etanol ainda sejam inflamáveis, a água permaneceria quimicamente inerte, de forma um tanto análoga ao dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico") recirculado nos gases de escapamento de motores movidos a algum combustível convencional através da válvula EGR e, sendo aspirada a uma temperatura alta e já na fase de vapor, acabaria diminuindo a concentração de oxigênio disponível para uma combustão completa, além da menor densidade do fluxo de admissão resultante também levar a uma compressão dinâmica menos intensa e por conseguinte levar a um decréscimo dos valores de potência e torque do motor.

Apesar de ser efetivamente uma ilusão, o desenvolvimento do "reator Chambrin" chegou a receber apoio do regime militar ainda na época que o general Ernesto Geisel exercia a presidência, para ser encerrado em meio a desentendimentos entre Jean Pierre Chambrin e alguns oficiais das Forças Armadas lotados à época no antigo Serviço Nacional de Informação (SNI, a partir do qual se estruturou a atual ABIN - Agência Brasileira de Inteligência) que supervisionavam o projeto. Após casar-se com uma gaúcha, e já radicado em Porto Alegre, o francês prosseguiu com as experiências até o ano de 1982 tendo como laboratório uma oficina localizada dentro da Escola de Bombeiros da Brigada Militar, localizada na Avenida Silva Só. Testes em estrada entre Porto Alegre e Osório teriam sido reportados com médias de consumo da mistura de etanol com água na ordem de 9,4km/l em um Ford Corcel I e 4,5km/l em um caminhão Mercedes-Benz 1113, além de um trator e um grupo gerador também terem sido supostamente testados. Considerando algumas peculiaridades da aplicação do etanol em motores do ciclo Diesel, no entanto, parece improvável que o dispositivo tenha funcionado satisfatoriamente no caminhão, bem como no trator e no grupo gerador.

Ao contrário de rumores quanto a uma suposta queima de arquivo, Jean Pierre Chambrin morreu de infarto em 1989, enquanto a viúva Maria Elena Knüppeln de Almeida faleceria em 1996 em decorrência de problemas respiratórios. A oficina onde o projeto era desenvolvido em caráter confidencial foi lacrada em 1982, reaberta em 1988 para devolução de materiais quando foram constatado o sumiço de itens que iam desde pneus até um protótipo do "reator", e lacrada novamente até ser reaberta novamente em 2012 para uma reforma das instalações visando atender a funções administrativas da Escola de Bombeiros em seguimento à emancipação do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul. Ninguém sabe ao certo que fim levou o "reator" desaparecido, mas boatos dão conta de que estaria em algum rincão do interior do estado ou em regiões tão improváveis quanto o estado americano do Kansas, além de outras teorias absurdas referentes a uma suposta comercialização de cópias piratas do dispositivo.

Outro projeto desenvolvido no Brasil que no fim das contas não deu em nada foi iniciativa do engenheiro químico e professor universitário Nicanor de Azevedo Maia, que usava um catalisador à base de silício, hidróxido de sódio (a popular "soda cáustica") e cal extinta batizado de "hidrogenita" e teria conseguido fazer algum automóvel Chevrolet funcionar com o hidrogênio proveniente da eletrólise da água. Modelos tão diversos quanto um sedan Biscayne e uma station-wagon Bel-Air importados, além de um Chevette, são mencionados como mulas de testes realizados na cidade de Natal-RN por volta de 1975. As únicas menções ao motor que teria supostamente equipado o veículo apontam para um Stovebolt Six de 6 cilindros em linha e 250pol³ (4.1L), o mesmo usado pelo Opala à época e que provoca uma concentração excessiva de peso sobre o eixo dianteiro quando adaptado num Chevette além de requerer modificações na parede de fogo para ficar bem acomodado. Por mais que o professor Nicanor fosse dotado do conhecimento técnico necessário para executar um projeto dessa natureza, a inconsistência das informações disponíveis faz com que um eventual sucesso em testes práticos da aplicação do hidrogênio como combustível veicular permaneça uma incógnita.

No exterior, uma das principais referências para os adeptos das experiências com o hidrogênio proveniente da eletrólise da água foi o engenheiro-eletricista búlgaro-australiano Yull Brown. Com uma proporção estequiométrica exata de 2:1 entre os átomos de hidrogênio e oxigênio, o chamado "gás de Brown" teria ao menos teoricamente uma maior estabilidade em comparação ao hidrogênio puro e suportaria melhor a compressão para armazenamento, além da expectativa quanto a eventuais aplicações na neutralização de elementos radioativos que poderia ter alguma serventia até na resposta a emergências nucleares como o incidente  que envolveu uma cápsula contendo cloreto de césio no ano de 1987 em Goiânia (o famoso "caso Césio-137"). Sem negar que a ficção científica de Júlio Verne teria servido de inspiração, Brown obteve em 1977 uma patente do dispositivo que muitos conhecem por "dry cell" ("célula seca" ou "pilha seca") ou "HHO", embora seja encarado mais frequentemente como um complemento à gasolina ou ao óleo diesel que como um efetivo substituto, e mais recentemente até tenha despertado algum interesse como um artifício para burlar testes de emissões durante a inspeção veicular que já é implementada em países como os Estados Unidos. De fato, uma proporção mais próxima do ideal para a combustão completa e com uma menor concentração do nitrogênio no fluxo de admissão em comparação ao ar atmosférico não deixa de ter algum potencial para tornar mais "limpo" o processo de combustão e eventualmente levar a uma redução na formação dos óxidos de nitrogênio (NOx) e na emissão de hidrocarbonetos crus, eventualmente suprindo a falta de um conversor catalítico que venha a ser simplesmente removido e descartado quando uma substituição é considerada economicamente injustificável pelo proprietário de um "sucatão", mas está longe de ser viável para aplicações em larga escala.

Tendo em vista que a energia resultante da combustão do hidrogênio corresponde a apenas 70% da energia elétrica requerida para obter a reação de eletrólise através de um HHO, e que poderia ainda ser proveniente de fontes mais "sujas" que o motor do veículo a ser suprido com o hidrogênio, já seria um pretexto suficiente para desacreditar o dispositivo, mas há outros pontos críticos como a dependência por catalisadores químicos que eventualmente tenham a produção e distribuição controladas pelo Exército por motivos estratégicos como é o caso do ácido sulfúrico. Outra limitação, comum aos outros sistemas que supostamente liberariam hidrogênio, é a necessidade de usar água desmineralizada. Alguns equipamentos já oferecidos por charlatões teriam supostamente a capacidade de dispensar catalisadores e promover a eletrólise com água de qualquer procedência, incluindo água da torneira, mas na prática liberam somente vapor d'água e resultariam num prejuízo ao desempenho do motor devido à redução da densidade do ar admitido e da concentração de oxigênio. Alguns usuários ainda alegam observar alguma melhoria na economia de combustível mesmo com equipamentos de qualidade duvidosa que liberam somente vapor, em função da compensação automática de mistura ar/combustível feita pela injeção eletrônica, mas estão longe de valores tão mirabolantes quanto uma substituição de até 80% do combustível primário do veículo por uma suposta geração de hidrogênio on-board prometida por fabricantes de dispositivos piratas. O uso em substituição total à gasolina, ao etanol, ao gás natural ou até mesmo ao óleo diesel também fica completamente fora de cogitação.

A bem da verdade, mesmo com a eletrólise da água não sendo apenas um devaneio de fanáticos por ficção científica, não convém esquecer que o hidrogênio é altamente reativo, e portanto deve ser tratado com o devido cuidado para evitar acidentes. É importante evitar que o anseio por uma alternativa de mobilidade mais "limpa" e econômica que o petróleo venha a se tornar o precedente de uma tragédia anunciada. Enfim, por mais que de vez em quando apareça alguém alegando ter tornado viável o sonho do carro "movido a água", a realidade é mais cruel que as fantásticas teorias.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html