quinta-feira, 1 de junho de 2017

A proposta da liberação do Diesel poderia soar "elitista"?

Por mais que os motores Diesel tenham se firmado em aplicações veiculares leves como uma solução eficaz para melhorar a eficiência energética, por vezes o consumidor brasileiro os vê como artigo de luxo. Antes das pick-ups se tornarem símbolo de status para "agroboys", e a moda dos sport-utilities acabar com o reinado das station-wagons como o carro familiar por excelência, a principal referência em motores Diesel para automóveis que se via no Brasil eram uns poucos Mercedes-Benz que na maioria dos casos foram trazidos até '76 ou então por corpos diplomáticos. Mas em que pesem fatores como o desenvolvimento tecnológico e as normas de emissões de décadas atrás terem feito com que a diferença de custos entre um motor de ignição por faísca e um Diesel fosse mais palatável em comparação ao que ocorre hoje, com os sistemas de gerenciamento eletrônico e controle de emissões agregando cada vez mais complexidade, seria mesmo justo tratar a liberação do Diesel como uma pauta "elitista"?
A bem da verdade, chega a ser covardia comparar o nível de precisão que o sistema de injeção a ser usado num motor Diesel sempre exigiu, em comparação ao carburador que ainda era prevalente nos motores de ignição por faísca até a década de '80. Ainda que modelos como o Mercedes-Benz 200D da série W123 produzida entre '76 e '85 recorressem à injeção indireta, que se manteve firme até o fim da década de '90 em função da maior suavidade em comparação às primeiras aplicações da injeção direta em motores Diesel para veículos leves, tanto a dosagem do combustível quanto uma correção do débito (volume de injeção) em função da pressão atmosférica sem a necessidade de interferência do condutor são essenciais para que a combustão se mantenha o mais completa possível ao longo da operação do veículo, ao passo que os efeitos indesejáveis de uma mistura ar/combustível rica (maior proporção de combustível pela massa de ar) num similar movido a gasolina com motor de ignição por faísca alimentado por carburador acabariam sendo mais negligenciados num primeiro momento. Mesmo em comparação aos motores de ignição por faísca mais antigos que ainda usavam distribuidor com regulagem automática do avanço a vácuo, a precisão exigida de uma cápsula aneróide para correção barométrica do débito de uma bomba injetora mecânica é maior.

As menores pressões operacionais de um sistema de injeção indireta, refletidos num custo inicial mais atrativo diante da injeção direta, fizeram com que mantivesse um público fiel ao menos até onde foi possível manter os veículos dotados desse sistema enquadrados nas normas ambientais. A exigência de gerenciamento eletrônico do motor para todos os veículos 0km no mercado europeu levou a Ford a já apostar mais maciçamente na injeção direta mesmo em modelos mais básicos como a Ford Courier Kombi oferecida com o motor Endura-D, enquanto a Peugeot permaneceu apostando na injeção indireta ao menos com o motor DW8 que equipou versões mais simples de modelos como o Partner ao menos até 2007. Se por um lado a eletrônica proporcionou um controle mais preciso nas mais diversas condições de rodagem, além de outras vantagens como a possibilidade de incorporar um inibidor de partida (o famoso "imobilizador eletrônico") que torna necessário o uso de chave codificada para dificultar furtos, por outro trouxe aumento de custos e não deixou de causar algum descontentamento numa parte mais tradicional do público que até hoje considera o ano 2000 como o "início do fim" da superioridade do Diesel em aspectos como a confiabilidade e a robustez em condições severas e até mesmo no tocante à economia de combustível tendo em vista a interferência por vezes excessiva dos sistemas de controle de emissões sobre o desempenho dos motores.
Mesmo um controle eletrônico que seja incorporado aos motores Diesel de injeção indireta fica mais restrito à bomba injetora, normalmente do tipo distributiva (também conhecida como rotativa), facilitando a intercambialidade de alguns componentes como os bicos injetores com motores de especificação anterior com controle totalmente mecânico, minimizando não só os investimentos na linha de produção mas também o custo de eventuais reparos que venham a se fazer necessários ao longo da vida útil operacional do veículo. Como a injeção é feita em pré-câmaras no cabeçote, o próprio turbilhonamento gerado durante a aproximação dos pistões ao ponto morto superior na fase de compressão e continuado já no tempo de potência em direção ao ponto morto inferior enquanto o combustível atravessa o estreitamento entre as pré-câmaras onde já vai absorvendo calor do ciclo de combustão anterior e as câmaras de combustão compensa de certa forma as pressões de injeção mais baixas. A maior resiliência ao uso do óleo diesel de baixa qualidade ainda predominante em boa parte do terceiro mundo, proporcionada exatamente pelo uso de pré-câmaras, também fez com que a injeção indireta desperte algum saudosismo.

Nem mesmo a presença mais expressiva do turbo, que proporcionou melhorias notáveis em âmbito de desempenho e eficiência térmica nos motores Diesel, escapa a críticas. Além do preço, não é possível ignorar que esse componente exige cuidados especiais quanto à refrigeração e lubrificação, e alguns consumidores podem não estar tão dispostos a usar um óleo lubrificante de especificações adequadas para suportar as altas temperaturas na carcaça central sem formar borra. Um exemplo a ser observado é o Toyota Corolla da geração E120, que tinha diferentes opções de motor Diesel de acordo com as preferências e regulamentações de cada mercado. Com a carroceria hatchback, que no Japão teve uma proposta mais "esportiva" e foi oferecida apenas com motores a gasolina, em outros mercados havia a opção por motores turbodiesel de 1.4L e 2.0L com gerenciamento eletrônico e injeção direta do tipo common-rail, enquanto o sedan teve disponibilizado ainda o rústico 2C de 2.0L de injeção indireta controlada mecanicamente e aspiração natural que chegou a ser oferecido também no Japão até 2004 sendo o último motor Diesel a equipar qualquer versão do Corolla destinada ao mercado japonês. Ao contrário do europeu, que já não abria mão de um desempenho mais próximo ao de similares com motor naturalmente aspirado de ignição por faísca numa mesma faixa de cilindrada, o japonês ainda via no Diesel basicamente o viés utilitário e priorizava um custo menor de aquisição e manutenção em detrimento de altas potências.

Cilindros de gás natural montados por baixo do assoalho traseiro num Citroën Berlingo Multispace
Mas em meio ao crescente rigor das normas de emissões tanto nos principais mercados automotivos quanto nas respectivas áreas de influência, como conciliar a necessidade de uma redução dos custos operacionais ao menos próxima à que o Diesel proporciona, mantendo um investimento mínimo em comparação a um veículo movido só a gasolina ou etanol, ou eventualmente um "flex"? A resposta que muitas vezes parece mais simples a curto prazo acaba sendo o gás natural, facilmente adaptável à maioria dos motores de ignição por faísca, e pode ser aplicada tando em modelos dotados de injeção eletrônica como o Citroën Berlingo argentino quanto num "pau velho" com carburador como o Ford Escort Mk.4, sem sacrificar a capacidade de operar com o combustível original quando necessário. A resistência à pré-ignição, superior à do etanol, ainda possibilita o uso de misturas pobres mesmo com taxas de compressão relativamente altas, às custas de um maior risco de superaquecimento em condições de carga mais extremas e um aumento nas emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) que são tratadas mais frequentemente como um calcanhar-de-Aquiles do Diesel.

Também é interessante observar como o downsizing está nivelando os motores de ignição por faísca a níveis de eficiência mais próximos dos que antes seriam alcançáveis somente pelo Diesel, tomando como exemplo o Volkswagen up! por pertencer ao segmento de entrada, e portanto soar como um contraponto às alegações de que o custo da evolução tecnológica seria incompatível com os carros "populares". Embora não sejam todas as versões do up! que contem com a opção pelo motor 1.0 TSI com turbo e injeção direta, a chegada desses recursos chama a atenção principalmente diante de uma resistência a novas tecnologias que não parte apenas do público consumidor mas também dos fabricantes que relutam até onde conseguem para evitar investimentos em atualização na oferta de motores nos carros "populares". Cabe destacar que, além de viabilizar a combinação entre proporção ar/combustível pobre e taxas de compressão mais elevadas, a injeção direta torna-se especialmente vantajosa para os motores "flex" brasileiros em função de uma maior facilidade na partida a frio mesmo ao usar etanol. Naturalmente, não se pode evitar um aumento no preço inicial de um veículo dotado desses recursos...
Como a injeção direta depende do aquecimento aerodinâmico ocorrido durante a fase de compressão para vaporizar o combustível, num intervalo mais curto em comparação a similares com injeção junto ao fluxo de ar de admissão, não é de se estranhar que alguns problemas já vistos no Diesel acabem sendo replicados num motor de ignição por faísca. Mesmo a gasolina e o etanol sendo combustíveis voláteis, desprendendo vapores mais facilmente, não se pode descartar o risco de uma vaporização incompleta que leva a uma formação de material particulado fino que pode até penetrar os alvéolos pulmonares e tornar-se um fator de risco para câncer de pulmão, levando até a União Européia a considerar uma obrigatoriedade de filtros de material particulado extensiva a motores de ignição por faísca numa fase futura das normas de emissões Euro. Como a carga de ar de admissão também não é refrigerada por combustível durante a passagem pelo coletor de admissão até o fim da fase de compressão, também acabam sendo encontradas condições propícias a um aumento nas emissões de óxidos de nitrogênio. Em meio a toda a caça às bruxas deflagrada pelo "Dieselgate", chega a ser um tanto irônico que o downsizing constantemente apontado como uma mordaça para silenciar discussões em torno de uma liberação do Diesel para veículos leves no mercado brasileiro possa ter um problema de proporções até semelhantes no âmbito das emissões...

Enquanto predomina uma certa mediocridade na oferta de motores de ignição por faísca, fica difícil desacreditar os méritos do Diesel no tocante à eficiência energética, bem como à adaptabilidade a combustíveis alternativos e também ao controle de emissões. À medida que tecnologias já difundidas mais amplamente entre os motores Diesel vão se firmando também junto à ignição por faísca, é até natural que um incremento no preços de aquisição os acompanhe na mesma proporção. Portanto, diante de metas para incrementar a eficiência geral das frotas mundo afora que devem ser conciliadas a uma redução de emissões, não é possível sustentar alegações de um suposto "elitismo" na defesa de uma liberação do Diesel para veículos leves no mercado brasileiro.

4 comentários:

  1. Acho que o turbo hoje dificulte manter um preço mais em conta. Eu tiro por base olhando nos carros a gasolina que nas versões com turbo mesmo que a cilindrada seja menor são sempre mais caros que os sem turbo.

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  2. Por años la imagen del gas-oil fue más asociada en Argentina con vehículos para trabajo pesado, maquinaria del agro y después ha figurado como una buena alternativa para los pobres por el sencillo y el bajo costo del combustible. No tengo dudas que el gas ha tomado mucho del espacio del gas-oil, y aún me ilusionaba el biodiesel, pero hoy el gas sigue competitivo y al menos en los furgones chicos donde se puede poner los cilindros bajo el piso ya no se van a quitar tanto espacio.

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  3. Parece-me correcto afirmar que o gasóleo beneficia aos de recursos mais modestos numa proporção mais significativa que aos ricos, e portanto as novas políticas de emissões delineadas pela União Européia constituem de facto uma ameaça aos agricultores e outros que dependam dum veículo ligeiro de tecnologia mais primitiva.

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  4. O mais irônico é que os primeiros a se levantar contra o "elitismo" são os mesmos que tentam lucrar em cima de quem tem bala na agulha. Usam dessa choradeira para tentar jogar mais imposto em cima e encarecer tudo até forçar as pessoas a preferir uma coisa tecnicamente medíocre só para conseguir bancar os impostos.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html