terça-feira, 18 de abril de 2017

Reflexão: 5 motivos que levaram a uma descrença em torno dos motores "flex"

A chegada do primeiro carro brasileiro com motor bicombustível a etanol e gasolina no mercado, o Volkswagen Gol 1.6 TotalFlex lançado em março de 2003, foi considerada à época uma "esperança" para o setor sucroalcooleiro numa tentativa de fazer com que o etanol recuperasse algum prestígio junto ao consumidor brasileiro. De fato, num prazo relativamente curto, os "flex" conquistaram espaço e em menos de 5 anos já correspondiam à maior parte do volume de vendas de automóveis e "comerciais leves" novos. O sucesso comercial, inicialmente motivado por uma alíquota de IPI menor que antes era restrita aos modelos movidos somente a etanol, foi tanto que até entre os importados já é possível encontrar modelos aptos a funcionar tanto com gasolina quanto etanol. Porém, não seria lógico ignorar alguns fatores que levam uma parcela ainda significativa do público a vê-los com certa desconfiança...

A idéia do "pato mecânico": Dada a natureza dos primeiros motores "flex" usando taxas de compressão um tanto altas para a qualidade precária da gasolina brasileira e ao mesmo tempo modestas demais para se extrair uma maior eficiência ao operar com etanol, foi inevitável a comparação com a ave capaz de voar, nadar e caminhar sobre terra firme mas que não seria tão exemplar em nenhum desses modos de deslocamento. Com uma diferença considerável entre as especificações dos combustíveis, foram sacrificadas a eficiência e o desempenho de forma que os motores não só se tornavam menos econômicos ao operar com gasolina mas também não exploravam tão bem as vantagens que o etanol poderia proporcionar ao desempenho.

Defasagem tecnológica: Outro aspecto que convém destacar foi a evolução um tanto lenta que os motores de ignição por faísca apresentaram no mercado brasileiro, desde a rejeição aos motores de 4 válvulas por cilindro que ainda podem ser observadas junto a uma parte considerável do público até a lenta incorporação de sistemas como o variador de fase do comando de válvulas e a injeção direta que poderiam ser melhor aproveitados para minimizar efeitos colaterais que uma compressão estática mais alta acarreta enquanto o motor opera com gasolina. Se por um lado a injeção direta minimiza o risco de pré-ignição com uma taxa de compressão estática elevada em comparação a um sistema de injeção mais convencional no coletor de admissão (tanto monoponto quanto multiponto) quando a proporção ar/combustível é empobrecida, por outro a variação de fase no comando de válvulas torna viável uma modulação da compressão dinâmica mediante um eventual prolongamento da duração da abertura das válvulas de admissão avançando sobre a fase de compressão, recurso já amplamente adotado nos motores de automóveis híbridos para emular o efeito Atkinson (tempo de força mais longo que a compressão).

Popularização relativamente rápida do gás natural: Ainda que seja alvo de críticas em função da precariedade de algumas conversões e de temores quanto à segurança, é inegável que o gás natural conquistou uma parcela expressiva de consumidores que antes viam o etanol como a alternativa mais viável para substituir ou complementar a gasolina de curto a médio prazo tanto em aplicações utilitárias/comerciais quanto particulares. Tendo o uso liberado para táxis e frotas de serviço a partir de '93, o Gás Natural Veicular (GNV) tornou-se permitido para o usuário comum a partir de '96 embora ainda tivesse uma disponibilidade mais restrita à Grande São Paulo e localidades das bacias petrolíferas de Santos (SP) e Campos (RJ) até que o Gasoduto Bolívia-Brasil entrasse em operação a partir de '99. Por mais que o peso e volume do sistema de gás natural veicular sejam um problema, a maior facilidade na partida a frio em comparação ao etanol tornou-se particularmente apreciada em regiões com temperaturas mais baixas durante o inverno. Mesmo com alguma desconfiança quanto à estabilidade no fornecimento do gás boliviano em função de medidas tomadas a partir de 2006 sob o pretexto da "nacionalização" dos hidrocarbonetos, incluindo a expropriação das instalações da Petrobras e de outras empresas estrangeiras em Santa Cruz de La Sierra, o interesse pelo combustível não foi totalmente arrefecido. Em algumas cidades como Porto Alegre e Florianópolis é muito difícil encontrar um táxi que não tenha sido convertido para gás, por exemplo.

O "trauma" das crises do ProÁlcool a partir da safra '89/'90: Não há dúvidas que a crise de desabastecimento motivada pela competição por matéria-prima com a produção de açúcar fomentou uma desconfiança contra o etanol. Medidas paliativas como a importação de metanol produzido nos Estados Unidos se mostraram desastrosas tanto em função do alto custo quanto das especificações que exigiam um manejo diferenciado para garantir a segurança durante o reabastecimento dos veículos devido à maior toxicidade do metanol puro. Como dizia um professor meu de geografia da época do ensino médio, enquanto uma "roupa de astronauta" era usada pelos frentistas americanos para evitar que vapores de metanol penetrassem pelos poros da pele, não eram raros os casos de intoxicação entre frentistas brasileiros que já supunham estar suficientemente protegidos com uma máscara cirúrgica descartável. Hoje que o metanol tem o uso cada vez mais restrito a especialidades industriais e até no exterior já enfrenta a concorrência do etanol em aplicações veiculares, não se deve ignorar as vantagens que outras matérias-primas como o milho usado nos Estados Unidos e a uva na Itália poderiam agregar à segurança energética brasileira durante as entressafras da cana de açúcar. Também vale recordar que o aproveitamento do "grão de destilaria" resultante da produção do etanol a partir do milho como substrato de alto teor proteico pela indústria alimentícia e o uso do bagaço de uva que sobra da produção de vinhos representam um impacto muito menor sobre a demanda por alimentos em comparação à cana.

Uma chance aos híbridos: por último, mas não menos importante, de certa forma a opção pelos automóveis híbridos também se mostra desfavorável ao sistema "flex". O funcionamento mais intermitente do motor a combustão interna nesse tipo de sistema de tração, bem como a permanência de sistemas de injeção convencionais no coletor de admissão e a diminuição na compressão dinâmica inerente ao já mencionado prolongamento da duração da abertura das válvulas de admissão, proporcionam uma maior instabilidade no funcionamento com teores mais elevados de etanol. Por mais que não seja tecnicamente impossível implementar um sistema de pré-aquecimento elétrico do combustível para facilitar a vaporização durante as partidas a frio, como já ocorre em veículos "flex" brasileiros, restariam dúvidas quanto a prejuízos que tal recurso pudesse causar à eficiência geral de um veículo híbrido em função do incremento sobre a carga do sistema elétrico em trajetos com muitas paradas em intervalos curtos. Convém observar o caso do Ford Fusion, atualmente o único modelo a oferecer no mercado brasileiro tanto uma opção de motor "flex" com sistema de tração convencional quanto uma versão híbrida cujo motor a combustão interna funciona apenas com gasolina.

Distanciando-se do contexto político um tanto ufanista na época do lançamento do primeiro carro "flex" nacional e a imagem "popular" que se visava associar ao etanol, uma implementação maciça de soluções técnicas mais arrojadas ainda poderia ter sido melhor aproveitada mesmo diante do desafio que o custo inicial ainda acarreta em veículos do segmento de entrada. A decisão sofrível de ignorar a experiência no uso do etanol acumulada desde os primórdios do ProÁlcool hoje cobra um alto preço, nem tanto para a indústria automobilística que ganha na escala de produção quanto para o setor sucroalcooleiro que não recuperou a simpatia do público em geral. Enfim, por mais que o motor "flex" tenha se mostrado uma opção eficaz para levar o grande público a dar um novo voto de confiança ao etanol a curto prazo, não se pode ignorar uma série de deficiências que vão se tornando mais nítidas a longo prazo...

6 comentários:

  1. Estive recentemente visitando uns parentes na Itália, e lá é muito comum carro a gás, tanto gás natural quanto o GPL que aqui no Brasil nós usamos no fogão e no aquecedor de chuveiro. Já no tocante aos carros flex, um primo me contou que chegou a ver alguns na França, e o motor deles tinha sido importado justamente do Brasil. Agora o que realmente me chama atenção, apesar da escala praticamente experimental, a produção de etanol europeu se adaptou bem a matérias primas regionais mesmo. E outro lugar que apesar de muito frio ainda tem adeptos do álcool é a Finlândia, pelo que me contou um finlandês que estava vendendo tambores de freio de alumínio de Lada para uma turma que adapta em modelos antigos da Fiat.

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    1. Já cheguei até a ver relatos de um finlandês sobre o uso de etanol por lá, que é produzido com resíduos da produção de pães e de bebidas alcoólicas.

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    2. Se for para usar lixo orgânico das padarias, cervejarias e vinícolas junto com a xepa da feira, talvez ainda se consiga salvar o etanol. Confiar só na cana é que não dá mais.

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  2. O pior de tudo é que mesmo com os carros flex sendo meio capenga nessa parte da eficiência, hoje não tem um bom valor de revenda que justifique os carros movidos só a gasolina. A não ser os importados mesmo e olhe lá.

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  3. Parece que decidiram fazer os carros flex meio que no desespero, antes que se tivesse os recursos necessários para que ficasse bom no álcool. Mas será que se tivessem esperado mais até a injeção direta e o turbo começarem a aparecer em carro pequeno, não seria tarde demais para o álcool recuperar algum prestígio?

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