quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Ford Modelo T: justifica comparações a um "utilitário" moderno?

Produzido entre 27 de setembro de 1908 e 26 de maio de 1927, o Ford Modelo T foi concebido com um intuito de tornar o automóvel acessível para o americano comum, apesar de permanecer sendo artigo de luxo na mesma época em outros países como o Brasil por exemplo, e uma das principais características do projeto era contemplar as necessidades de usuários nas zonas rurais com condições de rodagem mais severas. Lembrando ainda como houve uma desvirtuação de conceitos como o de "caminhão leve" nos Estados Unidos e de "utilitário" no Brasil à medida que pick-ups e SUVs passaram a ter participação de mercado mais significativa por questões burocráticas e políticas, acaba por ser inevitável uma analogia entre veículos que podem ter algumas semelhanças conceituais tão significativas quanto as diferenças de ordem técnica. A bem da verdade, mesmo com o Ford Modelo T remetendo a uma época já distante, só o fato da imensa maioria das pick-ups médias e todas as pick-ups full-size ainda recorrerem ao chassi separado da carroceria e terem tração traseira por eixo rígido com opção pela tração 4X4 com ao menos o eixo traseiro rígido já torna a comparação com utilitários inevitável quando a tração dianteira hoje é o mais comum em segmentos declaradamente generalistas.

Mesmo que a opção pela tração 4X4 nunca tenha estado entre as premissas durante o desenvolvimento do Ford Modelo T, e a capacidade de carga da imensa maioria das versões tenha ficado abaixo de uma tonelada que é o mínimo para um veículo de tração simples ser considerado "utilitário" no Brasil para fins de homologação visando assegurar o direito de usar motor Diesel caso tenha a capacidade de até 8 passageiros além do motorista, a experiência de Jesse Livingood com conversões de veículos como o Ford Modelo T e outros para tração 4X4 realçava uma aptidão para trafegar por terrenos bravios que já servia para promover a motorização no Exército dos Estados Unidos durante a I Guerra Mundial, então constituindo de certa forma um precedente histórico para o Jeep. E mesmo com a ignição por faísca, só de ter uma compatibilidade com o etanol que poderia ser produzido em propriedades rurais para uso do produtor também podia ser comparada às experiências de Rudolf Diesel com o óleo de amendoim como combustível alternativo por sugestão do governo francês durante o período colonial que se estendeu na África bem depois do ciclo de produção do Ford Modelo T acabar. Enfim, sendo um retrato fiel de antes da distorção que elevou pick-ups e SUVs à condição de artigo de luxo, o Ford Modelo T ainda justifica algumas comparações a um "utilitário" moderno, e eventualmente até pode ter mais desenvoltura que muito soft-roader de shopping em algumas condições de terreno mais bravias...

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Caso para rápida reflexão: motor Mercedes-Benz OM-616 e como um motor antigo não deveria ser tão subestimado

Um daqueles motores pouco lembrados no Brasil, o OM-636 chegou a vir em alguns carros de luxo da Mercedes-Benz tanto antes das restrições ao uso de motores Diesel quanto às importações de veículos, e também acabaria vindo em utilitários Mercedes-Benz MB 180D importados da Espanha na década de '90. Naturalmente, a vetusta injeção indireta e a aspiração atmosférica faziam com que o desempenho se revele muito mais modesto em comparação ao observado em utilitários modernos, mas o que causa uma certa curiosidade é a própria Daimler, detentora da marca Mercedes-Benz, ter praticamente "esquecido" esse que foi sem dúvida um dos motores que deram boa fama de robustez a toda prova para os carros da marca em algumas regiões com condições de rodagem extremamente severas. Lembrando precedentes como a Daimler ter dado início ao desenvolvimento dos motores que originaram o AP da Volkswagen, e que a bem da verdade ainda servem de base para o desenvolvimento dos motores 2.0 TDI ainda em uso pelo grupo Volkswagen, e também que os motores Mercedes-Benz de modelos antigos costumavam ter uma modularidade e compartilhamento de componentes entre versões a gasolina ou óleo diesel, chega a soar ainda mais intrigante o fim do motor OM-616 quando ainda parecia adequado em alguns aspectos.

É especialmente digno de nota que o motor Mercedes-Benz OM-616 também teve versões produzidas na Índia sob licença pela antiga Bajaj-Tempo, atual Force Motors, que além de fazer outsourcing para a Mercedes-Benz e até para a BMW, ainda produz versões modificadas do OM-636 que apresenta como sendo baseados em tecnologia da Mercedes-Benz, e é impossível negar alguma semelhança. Apesar das modernidades hoje indispensáveis como o turbo e a injeção direta, bem como dispositivos de controle de emissões de padrão internacional como o filtro de material particulado (DPF) e o SCR para redução dos índices de óxidos de nitrogênio (NOx) que permitem o enquadramento nas normas Bharat Stage VI Phase II equivalentes à Euro-6d, o principal motor hoje usado pela Force Motors é basicamente um OM-616 com stroker para 2.6L ao invés de 2.4L como o original, chamando a atenção que pode entregar desempenho comparável a motores mais modernos com cilindrada entre 15 e 20% menor e que são favorecidos por sistemas de comando de válvulas mais modernos e precisos. Enfim, por mais que um motor à primeira vista "arcaico" pareça relegado ao esquecimento, assim como os modelos que dispunham desse motor já vão ficando raros de se ver, na prática ainda podem permanecer satisfatórios com aprimoramentos de implementação relativamente fácil, sem ter que reinventar a roda para dizer que os motores Diesel estão ficando demasiadamente caros e impossíveis de manter a competitividade frente à ignição por faísca.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Mais uma pérola aleatória da internet: carro chinês adaptado com motor estacionário de 1 cilindro horizontal


Embora muitos digam que a gambiarra é uma instituição brasileira, tal ditado é uma meia-verdade, e até do outro lado do mundo há quem incorpore uma mistura de McGyver com Professor Pardal. No caso desse vídeo que tem circulado principalmente em grupos do Whatsapp, aparece um sedan FAW Xiali adaptado com motor Diesel de apenas 1 cilindro horizontal, ao que tudo indica uma cópia chinesa daqueles motores Yanmar ou Kubota de origem japonesa que no Brasil são muito conhecidos pelo uso em microtratores Tobatta e similares. Infelizmente não há como ver o acoplamento entre o motor e o câmbio, embora nesse tipo de motor seja comum o acoplamento ao câmbio no caso de tratores ou a outros implementos no caso de aplicações estacionárias através de correias, com o grande e pesado volante do motor já tendo polias incorporadas como uma peça única. Chama a atenção que, devido ao uso de um tanque (hopper) de água ao invés de um radiador para fazer o arrefecimento do motor, nesse caso por perda total da água ao invés de recirculação, e também o tanque de combustível montado imediatamente acima do motor, foi simplesmente feito um corte no capô para o conjunto formado pelo motor e pelos tanques de combustível e da água para o arrefecimento ficar acomodado. A saída do escapamento ser também visível no capô, com um simples cano vertical passando por outro corte, confere um aspecto ainda mais inusitado à adaptação. A partida manual por uma manivela, acoplada ao virabrequim por um orifício no paralama dianteiro direito, é outra característica curiosa, além do mais que muitos desses motores já dispõem da partida elétrica ao menos como opcional. O fato dos antigos Tianjin Xiali, e depois FAW Xiali, serem baseados na 3a geração do Daihatsu Charade, também tem contornos curiosos por ter sido a última geração do modelo a ter em alguns países a opção por motores Diesel de 1.0L e 3 cilindros, faixa de cilindrada bastante próxima às da maioria desses motores estacionários de 1 cilindro.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Breve reflexão sobre o Gurgel BR-800 e a heterogeneidade do público-alvo de carros "populares"

Com o reaquecimento das discussões em torno do conceito a bem da verdade defasado do que seria um carro "popular", é natural que surjam questionamentos quanto à possibilidade de atender a públicos com uma diversidade de condições operacionais tão somente com uma canetada, e um exemplo emblemático como o Gurgel BR-800 naturalmente é lembrado quando se discute o preço de tabela como parâmetro a ser privilegiado no âmbito político. Além de hoje a carroceria com somente duas portas ser rejeitada por quase todos os eventuais interessados no que seria um carro popular modernizado, considerando ainda a possibilidade de usar um modelo com 4 portas nos serviços de transporte por aplicativo e também como táxi em cidades onde hatches sigam permitidos para tal finalidade, uma série de desafios mais de ordem técnica que política devem ser destacados, e a rejeição de Amaral Gurgel ao ProÁlcool também merece uma menção tendo em vista a atual hegemonia dos motores flex no Brasil também em outros segmentos cuja percepção de valor agregado é maior em comparação a hatches de entrada. Quanto à diversidade, o Gurgel BR-800 ter contemplado no projeto desde a manobrabilidade em espaços mais exíguos dentro da cidade até uma capacidade de incursão off-road moderada e comparável à que se observava na linha antiga da Volkswagen que se valia de motor e tração traseiros é outro aspecto que merece um destaque.

Naturalmente pode parecer desejável que um pequeno agricultor recorresse a uma caminhonete ou SUV de tração nas 4 rodas, até para eventualmente racionalizar o uso de um combustível compartilhado com tratores e outros maquinários agrícolas especializados valendo-se do óleo diesel convencional fornecido por um transportador revendedor retalhista (TRR) que faça entregas diretamente na propriedade rural, e talvez experiências com o biodiesel ou outro combustível renovável ficassem também mais tentadoras, mas tal aspecto já evidencia que mesmo um carro pequeno pode tanto representar uma maior liberdade de locomoção quanto ser um bem de capital e favorecer a eficiência de uma atividade laboral. E apesar do álcool/etanol ou mais recentemente o biometano talvez conseguirem um destaque maior em meio às propostas de uma "neutralização de carbono" que chega a beirar a paranóia em alguns momentos, além de poderem ser implementados em motores de ignição por faísca sem tantas intercorrências em função de incompatibilidades com alguns dispositivos de controle de emissões que tem causado incômodos a operadores de veículos com motor Diesel como o filtro de material particulado (DPF) diante de alguma alteração nas especificações do combustível, o fato da tração simples (traseira nesse caso específico do Gurgel BR-800, até por influência da Volkswagen que por décadas priorizou tal característica) nunca ter sido exatamente um empecilho ao desenvolvimento de veículos aptos a servir à população do campo já expõe uma incoerência em se manter restrições ao uso de motores Diesel atreladas às capacidades de carga e passageiros ou tração. Por mais que o Gurgel BR-800 fosse imbuído de um patriotismo que até motivou as primeiras apresentações oficiais a serem no desfile cívico-militar do Dia da Independência em 1987 em Brasília, com o lançamento ocorrendo no ano seguinte e uma tributação diferenciada que foi instituída no governo Sarney especificamente para fomentar o projeto, eventualmente um jipino que se valesse do mesmo conjunto mecânico de forma análoga a como outros modelos Gurgel se valiam de conjuntos mecânicos da Volkswagen, e fosse direcionado mais explicitamente a funções utilitárias, seria o caso até de considerar uma possibilidade de oferecer a opção por motores Diesel mesmo com tração simples, ao contrário de uma desvirtuação do conceito de utilitário à medida que caminhonetes e SUVs de luxo passavam a ser usados como veículo de luxo tão somente por valer-se de motores Diesel.

Até uma concorrência mais acirrada com as motos ao longo das últimas décadas, à qual pode-se atribuir em parte uma influência das restrições ao uso de motores Diesel que acaba por motivar uma procura por veículos inerentemente mais simples e econômicos no intuito de reduzir o custo operacional total, ainda que possa ser considerada um mero paliativo e também um reflexo do aumento nos preços de carros em função da inclusão de equipamentos de segurança como airbags e freios ABS enquanto motos até 250cc podem ser comercializadas sem ABS, denotam que o público a ser buscado por um carro popular hoje é bem mais desafiador que na época do Gurgel BR-800 por exemplo. Mudanças nas regulamentações que balizavam o segmento, como o fim da inclusão de utilitários em meados da década de '90, acabaram por dificultar ainda mais a efetividade que um programa de carros populares poderia ter para atender a uma parte mais significativa do público brasileiro, tanto nos grandes centros urbanos quanto pelo interior, e a falta de uma visão a longo prazo que contemple desde aspectos técnicos dos veículos quanto a eventual busca por uma renovação da matriz energética que se mantenha bem articulada com as necessidades e preferências dos operadores também constituem um problema. Enfim, considerando até mesmo um uso mais racional de recursos energéticos que poderia ter algum fomento caso motores inerentemente mais eficientes fossem aplicáveis a veículos com conjuntos de transmissão mais simples e com menos atritos internos e peso que o sistema de uma caminhonete 4X4, o já desacreditado conceito de carro "popular" até poderia ter uma contribuição ainda mais relevante para o Brasil atual.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Eixo dianteiro rígido para adaptação em veículos de tração traseira: uma boa alternativa para facilitar a adaptação de motores mais pesados?

Avistar uma Toyota Hilux de 5ª geração com tração somente traseira e eixo dianteiro rígido é algo que chama facilmente a atenção, tanto pelo exemplar específico que apresentava essa peculiaridade ainda ter sido bem erguido como se costuma ver em exemplares 4X4 modificados para uso off-road extremo quanto pelo eixo dianteiro rígido só ter sido normal de série em versões 4X4 da Hilux enquanto as 4X2 tiveram suspensão dianteira independente desde o início. Mais rústica, a suspensão dianteira por eixo rígido também costuma ser mais frequentemente associada à direção por setor e rosca sem-fim, ao invés de uma direção mais moderna por pinhão e cremalheira, mas a simplicidade tem seus apreciadores, que tendem a priorizar uma percepção de maior robustez ou alguma adequação específica para as condições de uso às quais um veículo vá ser submetido. Outro aspecto que cabe destacar é a maior facilidade para uma eventual adaptação de motores diferentes dos originais e principalmente mais pesados, que chega a ser praticamente óbvio se considerarmos motores de concepção mais abrutalhada para eventualmente substituir os motores Toyota 2L na verdade de 2.4L e 3L de 2.8L Diesel, ambos aspirados e com injeção indireta que equiparam normalmente a Hilux de 5ª geração no Brasil.
Um aspecto a considerar com relação aos eixos rígidos, tanto os de tração quanto só direcionais é serem mais fáceis de instalar principalmente quando a suspensão é por molas semi-elípticas longitudinais, que dispensam braços de fixação do eixo ao chassi, bem como uma simplicidade também maior para fazer a readequação ao peso maior de alguns motores diferentes que possam ser adaptados em substituição ao original. No caso específico de uma Toyota Hilux de 5ª geração, que pela resiliência a condições de uso mais severas, ampla presença nos principais mercados mundiais tanto de forma oficial quanto as cópias chinesas, e a mecânica bastante simples tornando razoável a eventual comparação ao que seria um Ford Modelo T aproximadamente 80 anos mais moderno, há quem prefira ou preservar a originalidade e a confiabilidade ou fazer modificações também comparáveis com a justa licença poética ao conceito dos hot-rods, e para suportar melhor um motor mais "de caminhão" ou "de trator" o eixo dianteiro rígido até pode ser uma opção com boa relação custo/benefício. Enfim, mesmo que possa parecer inusitado por ser menos comum comparado à adaptação de eixos dianteiros rígidos motrizes em veículos 4X4 quando a suspensão dianteira independente pareça menos adequada às condições de uso ou seja demasiado cara para readequar ao peso do conjunto motriz modificado, o eixo dianteiro rígido em veículos de tração traseira ainda pode também fazer algum sentido...