quinta-feira, 27 de abril de 2017

Esclarecendo algumas polêmicas sobre o gás natural e o biogás/biometano

Já não é de hoje que o gás natural divide opiniões, por motivos que vão desde limitações práticas que o sistema de combustível alternativo impõe a um veículo adaptado até rumores quanto a eventuais danos que poderia causar aos motores. Regulamentado para uso em táxis e frotas de serviço a partir de '91, sendo liberado para veículos particulares em '96 com uma disponibilidade ainda restrita às regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, de São Paulo e da Baixada Santista, consolidou-se como alternativa à gasolina em uma área mais abrangente a partir de 2001 com a conclusão e entrada em plena operação do gasoduto Bolívia-Brasil e de certa forma cresceu no vácuo do etanol deixado pela decadência do ProÁlcool. Apesar do sucesso comercial, é impossível ignorar os temores quanto às políticas energéticas da Bolívia e um eventual impacto no fornecimento do combustível para o Brasil, além de instalações precárias dos kits de conversão para gás natural veicular prejudicarem não apenas a durabilidade mas também a segurança.

Muito se comenta sobre uma redução nas emissões ao utilizar o gás natural tomando por base não apenas os parâmetros originais do motor a gasolina, etanol ou "flex" convertido quanto um Diesel de desempenho semelhante, principalmente no caso do dióxido de carbono (CO² - gás carbônico) e dos óxidos de nitrogênio (NOx), mas cabem algumas ressalvas. Dotado de uma maior resistência à pré-ignição (a popular "batida de pino"), superior até mesmo à do etanol, não é incomum que os veículos convertidos sejam ajustados para usar uma mistura ar/combustível muito pobre ao operar com o gás, afetando não apenas as emissões mas também o desempenho e a durabilidade de alguns componentes do motor. Ainda que favoreça a redução nas emissões de CO², uma proporção menor de combustível absorve menos calor latente no fluxo de ar da admissão, resultando numa operação a temperatura mais elevada que, além de induzir uma geração mais intensa dos NOx, pode levar a um maior risco de trincas no cabeçote e desgaste acentuado das sedes de válvula. É comum o mito de que o gás natural, por ser mais "seco", proporciona uma lubrificação menos eficiente das sedes de válvula, que num motor do ciclo Otto equipado com carburador ou injeção eletrônica (exceto injeção direta) dependem do combustível para a refrigeração das válvulas de admissão enquanto as de escape podem recorrer tanto ao uso de ligas mais resistentes a altas temperaturas quanto outros métodos mais sofisticados como o preenchimento das hastes com sódio para obter uma rejeição de calor mais eficaz. Alguns motores mais antigos que não contam com esguichos de óleo por baixo dos pistões também dependem da mistura mais rica para refrigerá-los, às custas de uma alta emissão de hidrocarbonetos crus.

Considerando que nos veículos leves tanto uma presença quase nula do Diesel quanto um perfil de operação predominantemente regional de curtas e médias distâncias possam ser creditadas como pretextos para uma adesão relativamente ampla ao gás natural em áreas com uma infraestrutura já consolidada para garantir o fornecimento do combustível alternativo, a situação muda de figura quando se trata de algumas aplicações para utilitários pesados em longas distâncias com uma menor disponibilidade de pontos para reabastecimento do gás ao longo dos itinerários. O peso e volume do sistema de combustível, crítico devido à redução na capacidade de carga paga e eventuais interferências na concentração de peso entre os eixos, também acaba por limitar a aplicabilidade do gás a algumas operações muito específicas de curta a média distância no transporte urbano e metropolitano de passageiros ou cargas de baixa densidade, estando portanto longe de ser uma solução "milagrosa" para um país de dimensões continentais e ainda muito dependente do modal rodoviário como o Brasil. Também não se deve desconsiderar uma maior depreciação de caminhões e ônibus preparados para uso exclusivo de combustíveis alternativos voláteis, o que abrange não apenas o gás natural e inclui até mesmo o etanol, tendo em vista que nem sempre o veículo vá permanecer operando em regiões com fácil disponibilidade do combustível original após ser revendido como usado, e assim se faz necessário amortizar o custo da conversão para Diesel.

Se ao menos num primeiro momento o gás natural se revela pouco promissor como um eventual substitutivo para o óleo diesel convencional, por outro é conveniente debater a possibilidade de uma integração entre ambos os combustíveis. Empresas como a Convergas Fuel Systems, de Vinhedo-SP, e a multinacional de origem italiana LandiRenzo, já oferecem no mercado nacional sistemas dual-fuel para uso combinado do óleo diesel com o gás natural. De certa forma, apesar de não promover uma substituição completa do combustível original em função da alta compressibilidade e resistência à auto-ignição inerentes ao gás natural, dependendo ainda de uma injeção-piloto de óleo diesel convencional em proporções variáveis para promover a ignição, o funcionamento chega a lembrar o de um sistema de 5ª geração para veículos com motor de ignição por faísca. Paradoxalmente, a expansão do gás ao se misturar com o fluxo de ar na admissão tem um efeito comparável tanto ao da recirculação de gases de escape (EGR - Exhaust Gas Recirculation) no tocante a uma diminuição na concentração de oxigênio nas câmaras de combustão quanto à injeção suplementar de água frequentemente usada em aplicações de alto desempenho para resfriar a massa de ar de admissão, tornando as condições do processo de combustão menos propícias à formação dos NOx.

Cabe observar alguns efeitos que a injeção suplementar de gás natural proporciona na preservação de um bom funcionamento dos dispositivos de controle de emissões que se fazem presentes nos motores turbodiesel mais modernos para assegurar o enquadramento a normas ambientais cada vez mais rígidas e também controversas. No caso do EGR, como os gases inertes pós-combustão readmitidos conservam material particulado em suspensão e uma temperatura elevada mesmo passando por um resfriador, a presença do gás natural no fluxo de admissão promove uma refrigeração mais intensa da carga de gases de escape recirculados por meio da absorção de calor latente de vaporização, além de permitir uma menor demanda do EGR sem prejuízos ao controle das emissões de NOx. Em veículos equipados com SCR, que faz a redução catalítica seletiva dos NOx mediante de um fluido aquoso à base de uréia a 32,5%, conhecido em mercados internacionais como AdBlue, DEF ou ARNOx-32 e denominado oficialmente ARLA-32 no Brasil, o uso combinado de óleo diesel e gás natural também pode proporcionar uma redução no consumo do reagente químico. Também é conveniente recordar que, em função de uma propagação de frente de chama mais intensa associada à substituição parcial do óleo diesel pelo gás, ocorre uma combustão mais completa, beneficiando o filtro de material particulado (DPF) que passa a sofrer uma saturação menos intensa e prolonga os intervalos entre os ciclos de autolimpeza forçada (ou "regeneração").

Diante de eventuais vantagens compatíveis com algumas condições operacionais, em que pesem tanto um temor de parte do público com relação à segurança dos sistemas de gás natural veicular quanto a preferência de muitos operadores pelo manejo de combustíveis líquidos aos quais já estão habituados, seria de se esperar que o gás despertasse um interesse maior também em regiões onde ainda não é encontrado com tanta facilidade. Seria justamente nesse contexto que o biogás bruto e o biometano já purificado podem se revelar úteis, não apenas como uma alternativa para atender à demanda local mas também em uma eventual integração ao suprimento regular em substituição ao gás natural de origem fóssil. Além do biometano puro servir adequadamente ao uso como combustível veicular, o biogás bruto tem potencial para substituir o gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") em aplicações estacionárias, reduzindo o impacto ambiental e os custos associados à logística de distribuição em locais mais ermos. O aproveitamento de matérias-primas mais diversificadas e com custo menor em comparação ao etanol, além de promover um manejo mais sustentável de resíduos orgânicos (incluindo lixo sólido, esgoto, dejetos provenientes da criação de animais e resíduos do processamento industrial de produtos agropecuários), favorece a segurança energética não apenas por uma menor dependência com relação à Bolívia mas também por uma maior descentralização da produção do combustível que favoreça a implementação de planos de contingência para manter o fornecimento o mais estável possível em resposta a intercorrências em uma ou mais usinas de biogás/biometano, facilitando a continuidade de serviços essenciais como táxis e até o patrulhamento policial em regiões onde já são usadas viaturas aptas ao uso do gás natural.

O gás natural está longe de ser "milagroso", sendo necessário levar em conta diferentes fatores que influenciam nas condições operacionais do veículo antes de decidir por uma conversão, mas também não chega a justificar uma rejeição imediata motivada basicamente pela "cultura" da gambiarra que infelizmente se alastrou no mercado de conversões para gás natural veicular pelo Brasil às custas da durabilidade e eficiência de uma parte considerável da frota circulante. A bem da verdade, a transição do gás natural de origem fóssil para o biogás/biometano pode se articular ao óleo diesel convencional e substitutivos mais tradicionais como o biodiesel e até óleos vegetais brutos, reforçando a segurança energética brasileira e ainda proporcionando uma compensação de emissões mais efetiva. Enfim, apesar de combustíveis gasosos em geral serem alvo de polêmicas, é difícil negar a importância que o gás natural e o biogás/biometano passaram a ter na matriz energética do transporte.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Reflexão sobre a recente suspeita de fraude em emissões envolvendo o grupo PSA

Já não é novidade que os motores Diesel são constantemente apontados como "sujos" em comparação a similares de ignição por faísca, ignorando avanços no tocante à maior precisão que tem se aplicado ao processo de combustão e ao pós-tratamento dos gases de escape. Com a eclosão do escândalo de emissões da Volkswagen em 2015, que ficou conhecido como "Dieselgate" e chegou a ser apontado como pretexto para um eventual recrudescimento das normas de certificação de emissões a um ponto que pudesse até inviabilizar uma maior participação de mercado em países que experimentavam um crescimento na oferta de veículos leves com modernos motores turbodiesel como os Estados Unidos e a Coréia do Sul, os infames "ecologistas-melancia" foram ao delírio e iniciaram uma caça às bruxas que ainda não cessou e já lança suspeitas contra mais fabricantes com uma forte tradição no Diesel como é o caso do grupo PSA, detentor das marcas Peugeot e Citroën que recentemente adquiriu a Opel e a Vauxhall.

Por mais que no caso envolvendo a Volkswagen tenha sido comprovada a má-fé da empresa, que usou um algoritmo para detectar condições de teste em dinamômetro de chassi e alterar os parâmetros de funcionamento do motor para gerar uma menor quantidade de óxidos de nitrogênio (NOx) de modo a obter a aprovação das autoridades ambientais dos Estados Unidos sem ter de recorrer ao sistema SCR em alguns modelos das marcas Volkswagen e Audi, além de outras irregularidades que foram observadas em veículos destinados a outros mercados abrangendo também as marcas Skoda e SEAT, e por incrível que pareça repercutiu até mesmo no Brasil por conta do uso de um dos modelos de motor afetados na Volkswagen Amarok, acabou dando-se margem a generalizações e acusações infundadas de fraude em quaisquer desvios entre os resultados aferidos em testes de laboratório e na operação dos veículos em condições reais de uso sem levar em consideração tantos parâmetros que possam interferir no funcionamento e até na durabilidade do motor quando sujeito a fatores de carga mais intensos como temperatura, pressão e umidade relativa do ar. Também não se deve ignorar um aumento momentâneo das emissões de NOx durante a autolimpeza forçada (também conhecida como "regeneração") dos filtros de material particulado atualmente imprescindíveis para homologação em alguns países como Estados Unidos, Japão e países-membros da União Européia, bem como as limitações do downsizing aplicado com certa frequência para enquadrar os veículos em classes tributárias mais favoráveis mesmo quando um motor menor venha a se revelar subdimensionado.

Mas a bola da vez é o grupo PSA, um dos mais importantes a nível mundial no desenvolvimento de motores Diesel, que ontem passou a ser alvo de investigação pelo procurador público de Paris em acolhimento à denúncia feita pelo Ministério da Economia francês. A empresa, presidida pelo português Carlos Tavares, alega cumprir com a regulamentação européia em vigor e nega qualquer envolvimento em fraudes de emissões. Naturalmente, em se tratando da França, atualmente tomada por interesses escusos de facções islamo-socialistas, qualquer movimento contrário à preferência do consumidor pelo Diesel deve ser observado com suspeição. Uma medida anterior tomada pela atual prefeita de Paris, a socialista Anne Hidalgo, inicialmente no intuito de restringir apenas a circulação de veículos fabricados antes do ano 2000 na capital francesa até uma proibição completa aos veículos com motor Diesel proposta para entrar em vigor entre 2020 e 2025, já seria suficiente para acender um sinal de alerta. Pode-se deduzir que há, efetivamente, uma campanha em curso para desacreditar o potencial dos motores Diesel no tocante a uma redução na dependência por combustíveis fósseis e uma eventual compensação de emissões através da adaptabilidade a uma ampla variedade de combustíveis alternativos que abrange não apenas o biodiesel e o uso direto de óleos vegetais brutos (opção relativamente fácil de implementar e com boa relação custo/benefício para atender a alguns motores de injeção indireta que o grupo PSA ainda usou em versões básicas de diversos modelos das marcas Peugeot e Citroën enquanto as normas Euro-3 permaneciam em vigor) mas também o etanol e até uma eventual suplementação com gás natural ou biogás/biometano.

Não deixa de ser no mínimo suspeito que uma ação contra o grupo PSA ocorra só agora enquanto o "Dieselgate" finalmente se encaminha para uma solução. Nem sempre as premissas "ecológicas" que sustentam o discurso de opositores ao Diesel condiz com as reais intenções apresentadas, tendo em vista que constantemente ignoram condições reais em meio a tentativas desesperadas de desacreditar a preferência de uma ampla maioria do público europeu e inviabilizar o desenvolvimento tecnológico. Por mais que a aplicação do etanol, do gás e de sistemas híbridos aos motores de ignição por faísca seja tratada por alguns como uma sentença de morte para o Diesel na Europa, não apenas em veículos leves mas também em aplicações utilitárias pesadas, pelo visto tal estratégia tem se mostrado insuficiente para que os interesses obscuros de alguns grupos sejam levados a cabo em detrimento da liberdade de escolha do consumidor francês.

sábado, 22 de abril de 2017

Uma reflexão sobre a oposição da Petrobras ao RenovaBio

Em meio às metas para redução de emissões de gases-estufa, com uma maior ênfase no dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico"), é previsível que os biocombustíveis conquistem uma participação de mercado cada vez mais expressiva. Havia ainda alguma esperança de que o Brasil conquistasse uma posição de destaque após a experiência de sucesso com o antigo ProÁlcool e mais recentemente com o lançamento do plano RenovaBio, mas o país está ficando cada vez mais para trás tanto no aproveitamento de matérias-primas mais diversificadas quanto no desenvolvimento de novas tecnologias para incrementar a produtividade com os biocombustíveis de primeira geração. A retirada da Petrobras da cadeia produtiva dos biocombustíveis, mediante venda da participação em usinas sucroalcooleiras e o fechamento de fábricas de biodiesel, é um retrocesso que causa alguma perplexidade.

Apesar de uma parte considerável dos prejuízos na ordem de bilhões de reais causados pela corrupção institucionalizada na Petrobras terem sido atribuídos à desastrosa participação da estatal no segmento de biocombustíveis, seria um grave erro subestimar a importância do etanol e do biodiesel para que as metas de redução de 43% das emissões de carbono entre 2005 e 2030 possam ser tratadas como uma proposta realista. Após a expropriação de instalações da Petrobras para extração e processamento de gás natural na Bolívia em 2006, também causa uma certa surpresa que o biogás/biometano permaneça muito subestimado no Brasil. Considerando não apenas a participação mais expressiva do gás natural em aplicações residenciais e também comerciais/industriais substituindo o gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha"), mas também a adesão maciça de taxistas a esse combustível nas capitais estaduais e outros grandes centros pelo país afora, é conveniente abordar o biogás/biometano como um substitutivo de fácil implementação e integração com o manejo sustentável de resíduos biológicos tanto em zonas urbanas e suburbanas quanto áreas rurais. Além da possibilidade de reaproveitar para fins energéticos ao menos uma parte do metano hoje lançado diretamente na atmosfera em estações de tratamento de esgoto, fossas sépticas, "lixões" clandestinos e aterros sanitários, convém observar o tratamento de resíduos do manejo agropecuário e do processamento industrial de alimentos como um contra-argumento diante das alegações que os biocombustíveis prejudicariam a disponibilidade de terras agricultáveis para a produção de comida.

A atual rejeição da Petrobras aos biocombustíveis pode ser considerada ainda mais irônica diante do aumento da proporção de etanol na gasolina em 2015, quando passou de 25% para 27% sem nenhum estudo técnico acerca de eventuais danos a veículos importados ou mesmo nacionais mais antigos que ainda não seriam "flex". Embora à época fosse alegado que a medida favoreceria o setor canavieiro, na prática o maior beneficiado teria sido a Petrobras que passou a importar gasolina mais barata, com octanagem inferior a ser disfarçada pelo maior teor alcoólico, sem qualquer decréscimo no preço para o consumidor final que pudesse compensar a menor densidade energética. Ou seja, mesmo diante de críticas até do setor sucroalcooleiro em função do maior custo de produção do etanol anidro para a mistura obrigatória na gasolina em comparação ao etanol hidratado para uso direto como combustível veicular, não houve nenhum drama de consciência entre os dirigentes da estatal no momento de lesar o cidadão que se vê refém de um monopólio sobre os hidrocarbonetos.

Mesmo depois que o etanol celulósico também conhecido como etanol de 2ª geração ganhou maior atenção, devido a um possível aproveitamento tanto de resíduos das indústrias madeireira, moveleira e de papel e celulose quanto do próprio bagaço da cana usada na produção do etanol convencional como matérias-primas, salta aos olhos a dificuldade meramente burocrática para implementação em escala comercial desse biocombustível. A tecnologia já é conhecida e aplicada comercialmente ao menos desde 1909 na Suécia, onde não apenas despontou como um combustível alternativo até para o transporte pesado mas tornou-se um insumo muito utilizado pela indústria química, mas no Brasil há um cenário regulatório que favorece a perpetuação da ineficiência através da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e de certa forma chega a parecer feito sob medida para blindar a Petrobras contra um incremento na competitividade dos biocombustíveis, afugentar investimentos e seguir fazendo o cidadão de palhaço. Levando em conta a presença da indústria agroflorestal fora de alguns pólos sucroalcooleiros nos estados de São Paulo e Alagoas, com destaque para Aracruz-ES e Guaíba-RS, a possibilidade de descentralizar a produção de um combustível tão importante e facilmente adaptável à maior parte da frota brasileira não deixa de ser valiosa até mesmo sob uma perspectiva estratégico-militar ao reduzir o alcance do impacto de eventuais inquietações que afetem as regiões onde o setor sucroalcooleiro se encontra consolidado.

Outros pontos levantados num relatório apresentado pela Petrobras no começo do mês contestando o RenovaBio são a queda na venda de veículos novos em função da conjuntura econômica desfavorável e uma produção de automóveis híbridos no Brasil esperada para ter início entre 2021 e 2023. Ainda que realmente exista uma certa incompatibilidade entre a atual geração de carros híbridos e o sistema bicombustível aplicado a modelos aptos ao uso de etanol e gasolina tanto puros quanto misturados em qualquer proporção, tal circunstância está longe de ser um pretexto para a tentativa de desacreditar os biocombustíveis. Não é impossível que sistemas "micro-híbridos" mais simples, com menor custo de implementação e maior facilidade de integração aos atuais motores "flex" venham a ter de curto a médio prazo uma participação mais ampla em segmentos de entrada, tornando questionável a alegação de que a opção pelos híbridos deva pressupor uma rejeição ao etanol, além de um maior aproveitamento do biogás/biometano por apresentar menores dificuldades na partida a frio tendo em vista que já é armazenado na fase de vapor a temperatura ambiente.

A presença cada vez mais expressiva das motocicletas, favorecida tanto pelo custo de aquisição mais baixo e consumo de combustível reduzido numa comparação aos carros "populares", além do desafio da mobilidade em meio ao trânsito pesado não apenas nos grandes centros mas também em cidades médias, já antecipa o cenário de queda na demanda por combustíveis que a Petrobras prevê no caso de um fortalecimento na participação dos híbridos nas vendas de veículos novos, mas cabe observar a adesão das duas principais fábricas de motos instaladas no país à tecnologia "flex" em modelos com uma proposta mais popular como um pretexto para seguir apostando numa competitividade do etanol diante da gasolina. Justamente pelo consumo menor, de certa forma as motos exercem uma pressão menor sobre a demanda por matérias-primas para os biocombustíveis, o que poderia ser convidativo para pequenos produtores rurais aproveitarem o potencial de resíduos tão diversos quanto o bagaço de uva em vinícolas quanto a "cauda" e a "cabeça" da coluna de destilação de cachaça, passando por outros tantos resíduos sem valor comercial significativo como cascas de frutas, tornando o custo do combustível mais competitivo diante da gasolina em regiões rurais onde a moto passou a substituir o cavalo e os muares.

Naturalmente, num país com forte dependência pelo transporte rodoviário, rechaçar um aumento na proporção de biodiesel adicionada ao óleo diesel convencional também pode ser considerada uma medida contrária aos melhores interesses nacionais. Assim como o ProÁlcool só tomou a proporção pela qual ficou notabilizado a partir da oferta de veículos movidos a etanol de fábrica, é importante que sejam proporcionadas condições para que a indústria de biodiesel possa recuperar-se do atraso provocado tanto pela ênfase inicialmente dada à mamona que no fim se mostrou pouco competitiva diante da soja quanto pelo ufanismo em torno do "pré-sal" a partir de 2009. Embora a proporção de biodiesel obrigatória para o óleo diesel convencional em vigor no Brasil atualmente seja de apenas 8% (B8), fabricantes de motores como a Cummins já homologam motores aptos a funcionar com uma mistura contendo até 20% (B20) do combustível alternativo, além de experiências com biodiesel puro (B100) no transporte coletivo com destaque para Curitiba.

Dentre as propostas do RenovaBio, chama atenção a possibilidade de antecipar as misturas B9 (9% de biodiesel) de março de 2018 para julho de 2017 e B10 (10% de biodiesel) de março de 2019 para março de 2018 causam certa euforia junto a produtores de biodiesel, mas infelizmente o mais provável é que o cronograma se mantenha como está. A dependência de autorização do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) para o uso de proporções entre B10 e futuramente B15 (15%), mesmo quando a viabilidade de teores mais elevados já é reconhecida como viável por fabricantes de motores, veículos e equipamentos, não deixa de ser outro empecilho a ser superado tanto pela indústria de biodiesel e transportadores-revendedores retalhistas quanto potenciais usuários sem capacidade instalada para produção própria do combustível. O veto à comercialização de etanol e biodiesel por parte dos designados "transportadores-revendedores retalhistas" (TRR), instituído pela Resolução ANP nº 8, de 6 de março de 2007, que também proíbe a venda de gasolina, gás liquefeito de petróleo, gás natural e combustíveis de aviação, é outra medida desastrosa que necessita ser corrigida para que o RenovaBio possa avançar e atender melhor não apenas às metas de redução de emissões mas também às reais necessidades de consumidores que possam ser beneficiados pelo uso de combustíveis mais limpos.

Mesmo com os desafios impostos pelas normas de emissões Euro-5, sobretudo pela dificuldade apresentada para vaporização do óleo diesel com proporções elevadas de biodiesel durante os ciclos de "regeneração" forçada do filtro de material particulado (DPF) principalmente em veículos que não contam com um injetor específico para o filtro e portanto dependentes de uma pós-injeção durante a fase de escape, não se deve ignorar outras aplicações dependentes do óleo diesel convencional que ainda contam com regulamentações de emissões menos rigorosas em embarcações, grupos geradores, maquinário agrícola e de construção, nas quais o biodiesel e eventualmente até mesmo o uso direto de óleos vegetais brutos como combustível tornam-se convidativos por razões que vão desde um menor custo de produção e a eventual eliminação de despesas com transporte e atravessadores - inclusive a própria Petrobras - no caso do combustível ser usado pelo produtor rural. Cabe destacar, além do alto custo para distribuir por todo o país os combustíveis provenientes de uma rede de refinarias pequena e mais concentrada nas proximidades do litoral, uma previsível redução nas emissões relacionadas aos processos logísticos que estaria associada a um uso mais intenso de biodiesel ou óleos vegetais brutos com produção mais regionalizada, tanto na agricultura por todo o país quanto na navegação que ainda é o principal modal de transporte para muitas comunidades ribeirinhas da Amazônia.

Além das metas de sustentabilidade tão em voga atualmente, é conveniente destacar outros aspectos positivos que o RenovaBio pode trazer para o país, desde a valorização do agricultor e combate ao êxodo rural até o fortalecimento da segurança energética, mas também deve-se lançar um olhar mais crítico sobre o atual cenário regulatório do mercado de combustíveis no Brasil e o poder excessivo que a Petrobras tem não apenas sobre os derivados de petróleo e o gás natural mas também para sufocar o mercado de biocombustíveis. As críticas da estatal a um fomento a outras alternativas acaba remetendo a precedentes perigosos, como a crise institucional da Venezuela em função do comodismo em torno da indústria petrolífera. Portanto, ainda que o RenovaBio possa não ser "perfeito", a oposição manifestada pela Petrobras não condiz com a realidade e vai contra os melhores interesses do cidadão brasileiro que cansou de ser refém da incompetência e da corrupção.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Reflexão: 5 motivos que levaram a uma descrença em torno dos motores "flex"

A chegada do primeiro carro brasileiro com motor bicombustível a etanol e gasolina no mercado, o Volkswagen Gol 1.6 TotalFlex lançado em março de 2003, foi considerada à época uma "esperança" para o setor sucroalcooleiro numa tentativa de fazer com que o etanol recuperasse algum prestígio junto ao consumidor brasileiro. De fato, num prazo relativamente curto, os "flex" conquistaram espaço e em menos de 5 anos já correspondiam à maior parte do volume de vendas de automóveis e "comerciais leves" novos. O sucesso comercial, inicialmente motivado por uma alíquota de IPI menor que antes era restrita aos modelos movidos somente a etanol, foi tanto que até entre os importados já é possível encontrar modelos aptos a funcionar tanto com gasolina quanto etanol. Porém, não seria lógico ignorar alguns fatores que levam uma parcela ainda significativa do público a vê-los com certa desconfiança...

A idéia do "pato mecânico": Dada a natureza dos primeiros motores "flex" usando taxas de compressão um tanto altas para a qualidade precária da gasolina brasileira e ao mesmo tempo modestas demais para se extrair uma maior eficiência ao operar com etanol, foi inevitável a comparação com a ave capaz de voar, nadar e caminhar sobre terra firme mas que não seria tão exemplar em nenhum desses modos de deslocamento. Com uma diferença considerável entre as especificações dos combustíveis, foram sacrificadas a eficiência e o desempenho de forma que os motores não só se tornavam menos econômicos ao operar com gasolina mas também não exploravam tão bem as vantagens que o etanol poderia proporcionar ao desempenho.

Defasagem tecnológica: Outro aspecto que convém destacar foi a evolução um tanto lenta que os motores de ignição por faísca apresentaram no mercado brasileiro, desde a rejeição aos motores de 4 válvulas por cilindro que ainda podem ser observadas junto a uma parte considerável do público até a lenta incorporação de sistemas como o variador de fase do comando de válvulas e a injeção direta que poderiam ser melhor aproveitados para minimizar efeitos colaterais que uma compressão estática mais alta acarreta enquanto o motor opera com gasolina. Se por um lado a injeção direta minimiza o risco de pré-ignição com uma taxa de compressão estática elevada em comparação a um sistema de injeção mais convencional no coletor de admissão (tanto monoponto quanto multiponto) quando a proporção ar/combustível é empobrecida, por outro a variação de fase no comando de válvulas torna viável uma modulação da compressão dinâmica mediante um eventual prolongamento da duração da abertura das válvulas de admissão avançando sobre a fase de compressão, recurso já amplamente adotado nos motores de automóveis híbridos para emular o efeito Atkinson (tempo de força mais longo que a compressão).

Popularização relativamente rápida do gás natural: Ainda que seja alvo de críticas em função da precariedade de algumas conversões e de temores quanto à segurança, é inegável que o gás natural conquistou uma parcela expressiva de consumidores que antes viam o etanol como a alternativa mais viável para substituir ou complementar a gasolina de curto a médio prazo tanto em aplicações utilitárias/comerciais quanto particulares. Tendo o uso liberado para táxis e frotas de serviço a partir de '93, o Gás Natural Veicular (GNV) tornou-se permitido para o usuário comum a partir de '96 embora ainda tivesse uma disponibilidade mais restrita à Grande São Paulo e localidades das bacias petrolíferas de Santos (SP) e Campos (RJ) até que o Gasoduto Bolívia-Brasil entrasse em operação a partir de '99. Por mais que o peso e volume do sistema de gás natural veicular sejam um problema, a maior facilidade na partida a frio em comparação ao etanol tornou-se particularmente apreciada em regiões com temperaturas mais baixas durante o inverno. Mesmo com alguma desconfiança quanto à estabilidade no fornecimento do gás boliviano em função de medidas tomadas a partir de 2006 sob o pretexto da "nacionalização" dos hidrocarbonetos, incluindo a expropriação das instalações da Petrobras e de outras empresas estrangeiras em Santa Cruz de La Sierra, o interesse pelo combustível não foi totalmente arrefecido. Em algumas cidades como Porto Alegre e Florianópolis é muito difícil encontrar um táxi que não tenha sido convertido para gás, por exemplo.

O "trauma" das crises do ProÁlcool a partir da safra '89/'90: Não há dúvidas que a crise de desabastecimento motivada pela competição por matéria-prima com a produção de açúcar fomentou uma desconfiança contra o etanol. Medidas paliativas como a importação de metanol produzido nos Estados Unidos se mostraram desastrosas tanto em função do alto custo quanto das especificações que exigiam um manejo diferenciado para garantir a segurança durante o reabastecimento dos veículos devido à maior toxicidade do metanol puro. Como dizia um professor meu de geografia da época do ensino médio, enquanto uma "roupa de astronauta" era usada pelos frentistas americanos para evitar que vapores de metanol penetrassem pelos poros da pele, não eram raros os casos de intoxicação entre frentistas brasileiros que já supunham estar suficientemente protegidos com uma máscara cirúrgica descartável. Hoje que o metanol tem o uso cada vez mais restrito a especialidades industriais e até no exterior já enfrenta a concorrência do etanol em aplicações veiculares, não se deve ignorar as vantagens que outras matérias-primas como o milho usado nos Estados Unidos e a uva na Itália poderiam agregar à segurança energética brasileira durante as entressafras da cana de açúcar. Também vale recordar que o aproveitamento do "grão de destilaria" resultante da produção do etanol a partir do milho como substrato de alto teor proteico pela indústria alimentícia e o uso do bagaço de uva que sobra da produção de vinhos representam um impacto muito menor sobre a demanda por alimentos em comparação à cana.

Uma chance aos híbridos: por último, mas não menos importante, de certa forma a opção pelos automóveis híbridos também se mostra desfavorável ao sistema "flex". O funcionamento mais intermitente do motor a combustão interna nesse tipo de sistema de tração, bem como a permanência de sistemas de injeção convencionais no coletor de admissão e a diminuição na compressão dinâmica inerente ao já mencionado prolongamento da duração da abertura das válvulas de admissão, proporcionam uma maior instabilidade no funcionamento com teores mais elevados de etanol. Por mais que não seja tecnicamente impossível implementar um sistema de pré-aquecimento elétrico do combustível para facilitar a vaporização durante as partidas a frio, como já ocorre em veículos "flex" brasileiros, restariam dúvidas quanto a prejuízos que tal recurso pudesse causar à eficiência geral de um veículo híbrido em função do incremento sobre a carga do sistema elétrico em trajetos com muitas paradas em intervalos curtos. Convém observar o caso do Ford Fusion, atualmente o único modelo a oferecer no mercado brasileiro tanto uma opção de motor "flex" com sistema de tração convencional quanto uma versão híbrida cujo motor a combustão interna funciona apenas com gasolina.

Distanciando-se do contexto político um tanto ufanista na época do lançamento do primeiro carro "flex" nacional e a imagem "popular" que se visava associar ao etanol, uma implementação maciça de soluções técnicas mais arrojadas ainda poderia ter sido melhor aproveitada mesmo diante do desafio que o custo inicial ainda acarreta em veículos do segmento de entrada. A decisão sofrível de ignorar a experiência no uso do etanol acumulada desde os primórdios do ProÁlcool hoje cobra um alto preço, nem tanto para a indústria automobilística que ganha na escala de produção quanto para o setor sucroalcooleiro que não recuperou a simpatia do público em geral. Enfim, por mais que o motor "flex" tenha se mostrado uma opção eficaz para levar o grande público a dar um novo voto de confiança ao etanol a curto prazo, não se pode ignorar uma série de deficiências que vão se tornando mais nítidas a longo prazo...