terça-feira, 23 de agosto de 2022

5 motivos para ser incomum usar o bloco do motor e as carcaças de câmbio e diferencial como elementos estruturais

Uma característica que se pode observar mais facilmente em tratores agrícolas e outros equipamentos especializados, desde a época que ainda era comum o uso de motores a gasolina como no Cockshutt 40, atribuir uma função estrutural ao bloco do motor e às carcaças do câmbio e do diferencial acaba por ser impraticável a caminhões e outros veículos utilitários. Mesmo que esteja longe de ser algo tecnicamente impossível de replicar a um caminhão como o Ford Cargo 816 por exemplo, diversos fatores de ordem prática e orçamentária tornam indesejável aos olhos tanto de operadores quanto dos fabricantes recorrer a esse expediente, que a bem da verdade tem além dos prós alguns contras. Ao menos 5 aspectos podem ser ressaltados:

1 - configurações de eixos de diferentes veículos com um mesmo motor: considerando quantos eixos e as distâncias entre os mesmos, que podem apresentar grande variabilidade tanto em caminhões rígidos quanto nos cavalos-mecânicos, o custo para desenvolver blocos de motor e carcaças de câmbio distintas para adequarem-se às especificidades de cada condição operacional ficaria proibitivo, logo é mais fácil agregar um mesmo conjunto de motor e câmbio a chassis com diferentes distâncias entre-eixos e pontos de fixação para a quantidade de eixos especificada e respectivas suspensões. Variar o comprimento das longarinas, bem como a quantidade de travessas e outros componentes que venham a compor um chassi tipo escada, acarreta um impacto menor sobre os processos de produção de uma linha de caminhões, e até facilitam atualizações em outros componentes e sistemas ao invés de depender de motor e carcaça de câmbio como eventuais componentes estruturais;
2 - necessidade de suspensão: ao contrário dos tratores que costumam ser desprovidos de suspensão, é imprescindível que estejam presentes nos caminhões e ônibus modernos. Em nome da simplicidade, um ponto contrário à utilização do bloco do motor e das carcaças de câmbio e principalmente de diferencial como elementos estruturais seria a necessidade de prover suspensão independente ao menos para o eixo motriz, em contraponto ao predomínio dos eixos rígidos tanto direcionais quanto de tração nos veículos comerciais pesados. Embora a suspensão pneumática esteja mais difundida, tanto opcionalmente para alguns caminhões quanto normal de série na imensa maioria dos chassis para ônibus de motor traseiro, uma estratégia bastante conservadora leva ao predomínio do eixo rígido, e até dos freios a tambor em todas as rodas que ainda é bastante apreciado por muitos operadores brasileiros mesmo quando veículos de configuração similar em outras regiões já são na maioria equipados com freios a disco;
3 - posição do motor: ao contrário dos tratores que acabam seguindo na imensa maioria das vezes uma mesma "receita", com o motor sempre em posição dianteira (ou central-dianteira ao considerarmos que o eixo dianteiro fique mais avançado com relação ao bloco do motor), em veículos utilitários se observa uma maior variação. Uma presença considerável de ônibus com motor traseiro até no Brasil evidencia a importância desse aspecto, e de um modo geral os motores nos ônibus principalmente urbanos tendem a ficar em posição mais afastada do eixo mais próximo;

4 - servir de lastro para contrabalançar implementos num trator: embora alguns tratores tenham um chassi propriamente dito, especialmente quando motor e câmbio sejam compactos e leves, o uso do bloco do motor e das carcaças de câmbio e diferencial como elementos estruturais costumava ser útil para esse tipo de aplicação. Naturalmente um peso excessivo para o bloco do motor e as carcaças de câmbio e diferencial seria mais prejudicial em veículos sujeitos a uma observância mais estrita do limite de peso máximo por eixo, mas para um trator mesmo quando vá transportar alguma carga acaba sendo necessário lastrear porque um reboque acomoda menos peso sobre o eixo motriz em comparação a um semi-reboque usado nos cavalos-mecânicos;

5 - variação de motores em uma mesma plataforma: lembrando das versões argentinas e brasileiras da linha GMT400, que tinham algumas diferenças com relação aos congêneres americanos, mexicanos e canadenses, já é conveniente para destacar como um mesmo modelo possa ter uma diferenciação mais exacerbada quanto à oferta de motores. No caso da Chevrolet Silverado, que teve opção pelo motor 4.1 de 6 cilindros em linha a gasolina de '97 até o ano 2000 apesar do predomínio dos Diesel iniciado com o Maxion S4 de aspiração natural e 4.1L com 4 cilindros que daria lugar ao MWM Sprint 6.07 Turbo já a partir de '98 ficando até 2001, enquanto para os caminhões GMC nacionais equivalentes ao 3500HD americano (enquanto o nacional equivalia a uma GMC Sierra 2500 encurtada) o Maxion S4 servia ao 6-100 e o MWM Sprint ao 6-150 de '96 a 2001. Embora a linha GMT400 Mercosul tenha ficado limitada à tração traseira e câmbio manual de 5 marchas, que ao menos teoricamente poderiam incentivar o uso de blocos de motor e carcaças de câmbio como uma espécie de subchassi, o peso excessivo ainda seria um problema caso fossem redimensionados tais componentes para incorporar função estrutural.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Breve reflexão sobre a modularidade

De embarcações a máquinas agrícolas, uma grande variedade de aplicações especiais gera demanda por motores Diesel com alguma configuração nem sempre apreciada pelo público generalista no segmento veicular, desde uma quantidade menor de cilindros em comparação ao que seria esperado pela faixa de cilindrada até o comando de válvulas no bloco com sincronização por engrenagens. Também é digno de nota que algumas diferenças nas faixas de rotação, bem como a eventual ausência do turbocompressor, podem levar ao uso de motores com cilindrada maior que a observada em automóveis em países onde o Diesel é permitido sem distinções por capacidade de carga e passageiros ou tração, sem significar uma "inferioridade" técnica que inviabilize a adequação de um projeto mais rústico até a um eventual uso de um motor "de barco" ou "de trator" num carro ou utilitário leve. Naturalmente seria difícil prescindir do turbo hoje até em função das normas de emissões, bem como outros dispositivos como filtro de material particulado (DPF) e até SCR já constam entre as características técnicas de alguns motores fornecidos por fabricantes especializados que atendem ao outsourcing, e portanto a modularidade que permite a um mesmo projeto ir desde motores de 1 ou 2 cilindros mais adequados a um barco de pesca artesanal ou à propulsão auxiliar de um veleiro até motores entre 3 e 6 cilindros "de trator" que também serviram aos primeiros passos rumo à "dieselização" do transporte rodoviário em alguns países como o Brasil.
Pode-se até considerar um precedente histórico um uso anterior de motores Perkins tanto nos tratores Massey Ferguson quanto em caminhonetes Chevrolet brasileiras, tendo em vista a economia de escala proporcionada pela relativa facilidade de adequar um mesmo motor antes considerado essencialmente agrícola às condições de uso veicular, em que pesem as acentuadas diferenças entre regimes de rotação dos motores Diesel comparados a um de ignição por faísca. Mesmo com motores "de trator" parecendo no mínimo menos "refinados" que um motor especificamente desenvolvido para fins automotivos, cabe salientar que os princípios de funcionamento acabavam sendo basicamente idênticos, e por incrível que pareça no caso do Brasil uma consolidação da injeção direta já entre as décadas de '70 e '80 em motores fornecidos por especialistas como a própria Perkins ou a MWM acabava contrastando com a insistência da General Motors em usar a injeção indireta em motores Diesel para automóveis e utilitários leves até nos Estados Unidos. Naturalmente há de se considerar algumas peculiaridades que diferenciam sistemas de injeção indireta e injeção direta, com o primeiro às vezes tendo uma partida a frio mais problemática mas respondendo melhor ao uso direto de óleos vegetais brutos como combustível alternativo, enquanto a injeção direta costuma ter a partida a frio apontada como mais fácil mas acabava sendo mais sensível a algumas inconsistências na qualidade do combustível em função do processo de combustão dispensar as pré-câmaras de injeção que facilitavam uma vaporização mais completa do combustível mesmo que a densidade e o teor de enxofre fossem mais elevados.

Outro precedente interessante com relação à linha Chevrolet é o caso do motor MDE, que em alguns países chegou a equipar opcionalmente a geração anterior do Tracker, e compartilha um mesmo projeto básico com o LM2 de 6 cilindros em linha usado na Chevrolet Silverado 1500 desde 2019, ressaltando a viabilidade que a modularidade ainda pode ter para adequar a oferta de motores turbodiesel modernos em diferentes segmentos diante de condições um tanto desafiadoras como manter o enquadramento às normas de emissões mais restritivas. Embora no Tracker o motor MDE tenha sido oferecido somente na configuração um tanto conservadora com 4 cilindros e 1.6L apresentando diâmetro e curso dos pistões de 79,7mm e 80,1mm respectivamente, menos subquadrado que versões de 1.5L com 3 cilindros e 2.0L com 4 cilindros ainda feitas sob licença pela Stellantis para uso em modelos Opel com diâmetro e curso de 84mm e 90mm idênticos ao LM2 da Silverado, bem como o recurso a características incluindo bloco e cabeçote em alumínio com duplo comando de válvulas sincronizado por corrente, até chama a atenção que a corrente seja montada no mesmo lado que fica o volante do motor ao invés do lado oposto como é mais comum tanto a motores com corrente quanto com correia dentada. Naturalmente convém recordar como a incidência de impostos atrelada à cilindrada tem sido mais rigorosa no tocante a motores Diesel em algumas categorias de veículos na Europa, a ponto de terem sido implementadas medidas diferentes para o diâmetro e o curso na configuração com 4 cilindros, enquanto a solução dos 3 cilindros que ainda poderia ter sido melhor aproveitada na linha Chevrolet para manter a competitividade junto a mercados internacionais e aproveitar a economia de escala acaba sendo um tanto ignorada mesmo diante de uma consolidação de SUVs e pick-ups nas linhas americana e canadense da Chevrolet enquanto nos carros a excessiva interferência chinesa através da joint-venture com a SAIC prioriza a ignição por faísca.

Considerando tanto um eventual nivelamento dos custos iniciais comparando a um motor de 3 cilindros como os de 1.0L aspirados ou turbo flex usados no Chevrolet Onix Plus brasileiro ou aspirado de 1.2L a gasolina restrito à exportação quanto a viabilidade de adaptação a veículos mais especializados como o Suzuki Jimny equipado com motores somente a gasolina de aspiração natural e 4 cilindros e oferecendo um de 3 cilindros e turbo exclusivo para o Japão, até que um hipotético motor "de barco" com apenas 2 cilindros derivando de um projeto modular poderia cair como uma luva, e indo além do outsourcing já é justificável apontar precedentes históricos. Em que pesem as recentes oscilações no preço do óleo diesel em decorrência da guerra entre Rússia e Ucrânia, que desencorajariam até alguns operadores comerciais como taxistas caso fossem livres para optar por um motor turbodiesel no Brasil ou ainda alguns jipeiros preferindo apelar à austeridade de determinados motores aspirados de ignição por faísca em contraste com a crescente complexidade dos sistemas de pós-tratamento de emissões aplicados aos turbodiesel, é pertinente destacar que em outras regiões um preço menos favorável do óleo diesel convencional nunca foi uma pá de cal sobre a preferência de alguns operadores por motores Diesel. Enfim, diante de fatores que vão desde aspectos estritamente técnicos até circunstâncias políticas ou bélicas, a modularidade e a intercambialidade de peças entre motores destinados a segmentos distintos pode "salvar" o Diesel...

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Rápida reflexão: um motor mais "manso" que dispense o ARLA-32 ainda seria desejável?

Utilitários de concepção mais austera como o Kia Bongo, mais apreciados pelo aspecto essencialmente profissional, ainda encontram alguma receptividade junto a operadores com um perfil mais conservador no tocante ao desempenho dos motores, em contraste com o que hoje se observa na classe das pick-ups médias como a Isuzu D-Max. No entanto, é importante lembrar aspectos tão relevantes quanto os custos de manutenção e a maior severidade das normas de emissões nos últimos anos, de modo que chega a ser pertinente refletir até que ponto uma calibração de potência e torque mais modesta seria um problema, e como pode eventualmente tornar-se benéfica ao simplificar o pós-tratamento de gases de escape. O caso específico da geração anterior da Isuzu D-Max, que permanece em linha na Índia e manteve em linha o motor 4JA1-L de 2.5L com potência de 78hp a 3800 RPM e torque de 176Nm entre 1800 e 2400 RPM para as versões 4X2 dispensando o fluido-padrão AdBlue/ARLA-32 mesmo considerando as normas de emissões Bharat Stage-VI em vigor, e as 4X4 tenham passado a usar o RZ4E-TC de 1.9L com potência de 163hp a 3600 RPM e torque de 360Nm entre 2000 e 2500 RPM que já requer o AdBlue/ARLA-32 e apresenta uma calibração de potência e torque mais elevados mesmo com uma cilindrada muito menor.
A bem da verdade, para uma parte mais conservadora do público das pick-ups que mantém preferências austeras, incluindo o câmbio manual hoje estigmatizado como "coisa de pobre", um motor de potência e torque mais modestos que dispense o ARLA-32 pode ser especialmente desejável tanto pela questão da logística para mais um insumo quanto pelo atual cenário de beligerância entre Rússia e Ucrânia levando a incertezas no tocante à disponibilidade da uréia que serve tanto para produzir ARLA-32 quanto como fertilizante nitrogenado para a agricultura. E em que pese até um motor tão antigo como Isuzu 4JA1-L hoje incorporar recursos como injeção eletrônica common-rail e turbocompressor de geometria variável que podem dar a impressão de ser mais "lógico" adotar uma calibração de potência e torque mais altos, o recurso ao sistema P-SCR de redução catalítica seletiva passiva implementado na Índia se destaca por simplificar a operação valendo-se de alterações pontuais na proporção de combustível pela carga de ar da admissão, visando gerar amônia para reagir com os óxidos de nitrogênio retidos por um dispositivo LNT (Lean NOx Trap) sem a aspersão de mais um fluido que precise ser reabastecido periodicamente. Enfim, por mais que pareça destoar da imagem de prestígio atualmente atrelada às pick-ups médias até por usuários com perfil urbano, uma calibração mais "mansa" que permita simplificar o pós-tratamento dos gases de escape chega a ser desejável...

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Triciclos de carga: especialmente injustiçados pela restrição ao uso de motores Diesel

Um tipo de veículo ainda muito estigmatizado no Brasil como inerentemente "inferior", os triciclos para transporte de cargas leves já são vistos com relativa frequência em algumas grandes cidades brasileiras, e de certa forma são um reflexo de diversas incoerências observadas desde a "engenharia" de tráfego até outros aspectos eventualmente mais subjetivos. Naturalmente, por assemelharem-se a motocicletas, fica mais fácil enquadrá-los em normas mais permissivas no tocante à segurança e controle de emissões, e a princípio influindo na redução dos custos iniciais de aquisição do veículo e favorece a inserção junto a pequenas empresas que possam adequar a própria necessidade logística a uma operação estritamente urbana devido à baixa velocidade média da maioria dos modelos oferecidos no Brasil. A facilidade para manobrar em espaços exíguos na região central, tanto das capitais quanto outras cidades de porte médio a grande consolidadas como centros regionais, é uma característica a favor de triciclos utilitários, apesar das aparentes limitações em comparação a uma caminhonete compacta mas que estão longe de impedir a adequação a determinadas condições operacionais, além do mais com a expectativa de uma economia de combustível e também outros insumos que vão desde fluidos para radiador até material de atrito para os freios.
Destaca-se o predomínio de motores de origem chinesa copiados da Honda CG 125 ampliados para 150 a 200cc mantendo a refrigeração a ar, e o carburador que na prática inviabiliza incorporar capacidade de operar com etanol a exemplo de caminhonetes com motor flex e atrapalha uma conversão a gás natural pela exigência do Ibama que veículos de fabricação posterior a 1996 usem somente kits de conversão gerenciados eletronicamente, operadores comerciais que possam se dar ao luxo de contar com etanol a custo razoável ou avaliam o gás natural como contraponto à eventual liberação do Diesel para veículos de todas as categorias seguem refratários a um triciclo. E dada a "cultura" brasileira da "ostentação" que estigmatizou veículos utilitários de um modo geral em outros momentos históricos, e talvez facilitado a ascensão da Volkswagen com o Fusca ao invés de favorecer o Jeep Willys no imediato pós-guerra como ocorria nas Filipinas, naturalmente alguém que conseguisse adaptar e legalizar um triciclo utilitário com algum daqueles motores Diesel estacionários numa faixa de potência parecida à das motos mais simples acabaria por estar mais justificado pelo aspecto essencialmente utilitário que uma Karen desfilando num SUV em estacionamentos de shopping. Enfim, por mais improvável que possa parecer, além de estarem rodeados naquele estigma terceiro-mundista, os triciclos utilitários de carga se tornam um retrato fiel de incoerências na proibição dos motores Diesel para alguns veículos somente pelas capacidades de carga e passageiros ou tração.