domingo, 25 de agosto de 2019

Seriam os motores 2-tempos de ignição por faísca tão injustiçados quanto os Diesel?

Tendo marcado época em automóveis como a DKW-Vemag Vemaguet e em motocicletas, destacando por exemplo as Yamaha RD 135 e DT 180, os motores 2-tempos de ignição por faísca também foram demonizados em função das emissões como hoje ocorre com os Diesel. Com características técnicas mais simples, dispensando por exemplo toda a parafernália referente a válvulas de admissão e escape de acionamento mecânico, não se pode negar uma eventual dificuldade em estabelecer algum grau de controle mais preciso de parâmetros do funcionamento em comparação a um motor 4-tempos também de ignição por faísca (ciclo Otto), além de serem mais otimizados para operar em regimes de rotação mais estreitos de acordo com o dimensionamento dos pórticos de admissão, transferência e escape em contraponto à possibilidade de variar a duração de abertura das válvulas que tem proporcionado mais elasticidade a alguns dos novos motores 4-tempos. Mas será que a simplicidade construtiva beirando o extremo nos motores 2-tempos de ignição por faísca pode mesmo ser considerada um motivo para que passassem a ser vistos como uma ameaça ao meio-ambiente de forma análoga à que hoje se trata os motores Diesel?

Mesmo que pareça desafiador tentar fazer com que um motor 2-tempos permaneça competitivo frente às exigências mais recentes de um público generalista desacostumado por exemplo com a brutalidade de uma Yamaha RD 350 LC, não faria tanto sentido ignorar os méritos que alguns sistemas aplicados a esse tipo de motor estejam de todo obsoletos e incapazes de proporcionar alguma adaptabilidade às condições operacionais modernas. Tomando por exemplo o YPVS que modula a abertura dos pórticos de escapamento de acordo com a faixa de rotação, favorecendo o torque em baixos e médios regimes, já se pode considerar eventuais benefícios no tocante à elasticidade tão desejável que fez dos motores 4-tempos uma solução hegemônica em veículos mais modernos. Outro ponto bastante controverso em relação aos 2-tempos é a lubrificação, que podia ser feita tanto por mistura do óleo à gasolina quanto com dispositivos automáticos para injeção do óleo no cárter em proporções variáveis com relação ao combustível como o que a Yamaha denominava Autolube. Em caso de falhas no Autolube, ou ainda se o proprietário optasse por desabilitar o sistema para aproveitar a tomada de força da bomba de óleo para adaptar acionamento mecânico do YPVS no lugar do original eletrônico, um motor 2-tempos era capaz de permanecer operando com o chamado "premix" de gasolina e óleo mais próximo do normal.

Há de se destacar também outros fatores como a adaptabilidade ao uso de combustíveis alternativos, destacando o etanol e o gás natural como os mais relevantes junto à ignição por faísca de um modo geral. É bastante comum o uso de etanol ou até metanol em aplicações esportivas como a arrancada, não sendo diferente no tocante a motores 2-tempos, e a melhor miscibilidade do etanol com os óleos lubrificantes de base vegetal normalmente recomendados para kart em comparação a outros de base mineral ou alguns sintéticos se torna especialmente atrativa. No entanto, o mais frequente nesse caso é que o óleo seja misturado diretamente ao combustível, até mesmo para evitar o peso adicional do Autolube e o arrasto causado pela bomba sobre o motor que por menor que seja ainda pode fazer uma diferença em aplicações de alto desempenho. Não é viável ser tão categórico para afirmar que valha a pena suprimir o sistema de lubrificação automática em todas as condições de uso nos motores mais antigos, mesmo que eventuais preocupações com a diferença no teor de etanol misturado à gasolina comum sejam legítimas, além do mais que numa competição em pista fechada onde ao menos em teoria vá haver tanto uma operação num regime de rotação mais constante quanto um controle mais rigoroso das especificações do combustível as condições tornam-se um tanto mais previsíveis diante do que se observaria no uso normal de um veículo semelhante em vias públicas onde a maior variação das condições de tráfego e das velocidades médias faça com que a variabilidade da dosagem de óleo seja desejável para usar o lubrificante da forma mais eficiente e também reduzir uma emissão exagerada da fumaça azulada característica do uso de um óleo de especificações mais modestas numa proporção mais alta do que o necessário em determinadas condições.

Já com o gás natural, um motor 4-tempos permanece mais fácil de alcançar resultados satisfatórios, o que pode ser atribuído em grande parte à duração menor do chamado "cruzamento" entre as fases de escapamento de um ciclo e de admissão subsequente em preparação para o próximo. Mesmo que seja um motor mais antigo como o Thriftpower Six argentino que a Ford ofereceu na F-1000 com injeção multiponto na 2ª geração do modelo, também é relevante destacar que em motores 4-tempos a fase de escapamento ocorre num curso ascendente dos pistões, enquanto a admissão é em curso descendente, ao contrário do que ocorre num 2-tempos em que a transferência de mistura ar/combustível e óleo faz a transferência do cárter para os cilindros durante um curso ascendente simultaneamente à fase de escapamento e contribuindo para gerar uma pressão de "lavagem" de modo a expelir gases resultantes da combustão anterior. Dada essa característica, mesmo um kit de conversão para gás natural de 5ª geração com injeção sequencial e injetores individuais para cada cilindro montados no coletor de admissão se torna incapaz de minimizar esse efeito num motor 2-tempos, enquanto num 4-tempos já é viável programar a injeção para ocorrer apenas após o fim do "cruzamento" quando a(s) válvula(s) de escape se encontrem fechadas, com menos perda de mistura.

A discreta presença da injeção direta junto aos motores 2-tempos, mais concentrada nos motores de popa para pequenas embarcações, também é digna de nota sobretudo devido a aplicações militares da tecnologia E-TEC aplicada aos motores Evinrude para prover alguma adaptabilidade para a operação com combustíveis alternativos. Por mais que nos motores civis não seja especificada essa importante característica, tendo em vista que acabam não estando sujeitos a protocolos de segurança que vetam o embarque de gasolina a bordo de embarcações da Marinha dos Estados Unidos dado o maior risco de explosão, poucas são as alterações efetuadas no hardware do sistema de injeção para habilitar o uso de querosene como combustível primário e eventualmente até óleo diesel convencional por períodos curtos em caso de extrema necessidade, podendo até ser traçado um paralelo com a solução adotada nos motores Hesselman valendo-se justamente da injeção direta para conciliar o uso de combustíveis pesados à ignição por faísca num motor 4-tempos. Mesmo que toda a expectativa fomentada durante as décadas de '80 e '90 em torno da solução proposta pela empresa australiana Orbital Engines tenha sido deixada de lado no segmento automotivo, apesar do entusiasmo inicialmente demonstrado por fabricantes como a Ford após pelo menos duas sequências de testes na Europa e na Austrália, no fim das contas são inegáveis as contribuições para redução do consumo de combustível e das emissões de hidrocarbonetos crus, além da lubrificação automática sendo imprescindível aos motores 2-tempos de injeção direta também minimizar contaminações referentes ao óleo tanto no ar quanto nos ambientes aquáticos considerando as aplicações náuticas.

Outro aspecto a se considerar seria uma eventual aplicabilidade a automóveis híbridos como o Toyota Prius C, tendo em vista não só a expectativa por uma economia de combustível que estaria de acordo com os avanços da injeção direta no tocante à redução do consumo e eventuais vantagens que possam se destacar na operação mais intermitente do motor a gasolina nesse tipo de veículo em meio a um trânsito mais travado. Só de lembrarmos que o circuito de lubrificação por recirculação num motor 4-tempos precisa ser pressurizado para que o óleo chegue às partes mais altas, já seria de se considerar a maior simplicidade de um motor 2-tempos cuja lubrificação não deixa de ser mais instantânea tendo em vista que se concentra em partes mais baixas, ainda que o óleo precise ser reposto periodicamente em função de ser consumido durante a combustão. E mesmo essa situação aparentemente incômoda pode ser facilmente justificada até com o viés ecológico normalmente atribuído aos híbridos, afinal de contas eliminaria o risco de um descarte incorreto de óleo lubrificante usado que possa contaminar o solo e lençóis freáticos. Outro ponto de extrema relevância a se considerar seria a maior facilidade para a partida com etanol ao se recorrer à injeção direta, dispensando a necessidade de pré-aquecer os injetores como já se faz em veículos "flex" convencionais com injeção sequencial nos pórticos de válvula e estaria em análise para incorporação em modelos híbridos à medida que a Toyota tem considerado a viabilidade futura do etanol.

A consolidação da injeção direta no mercado automobilístico brasileiro, com destaque para modelos como o Volkswagen Virtus cujo motor 1.0TSI encontrou boa receptividade com o público generalista mas permanece uma raridade em aplicações específicas como táxis devido à dificuldade na conversão para o gás natural que ainda é bastante apreciado nesse segmento, leva a crer que a competitividade pudesse ser nivelada e facilitar uma quebra da hegemonia dos motores 4-tempos. No entanto, o fato da injeção direta na linha Volkswagen estar mais associada ao turbo por dispensar um enriquecimento da mistura ar/combustível que de outro modo seria essencial para contornar o risco de pré-ignição traz um possível contraponto devido à lubrificação por recirculação do óleo fazer com que motores 4-tempos sejam os únicos dentre os de ignição por faísca aptos a recorrer ao turbocompressor devido às características desse dispositivo impossibilitarem que se recorra à lubrificação por salpico com uma pequena quantidade de óleo independente do circuito principal de lubrificação do motor. Um possível cenário em que a competitividade ficaria mais equilibrada pode ser analisado ao observarmos o fato da Ford ter insistido na aspiração natural quando passou a usar injeção direta no motor Duratec de 2.0L que hoje no Brasil é oferecido somente no EcoSport Storm, e portanto a viabilidade técnica para que um motor 2-tempos mais compacto e leve proporcione desempenho idêntico em condições de uso variadas estaria bastante convidativa.
Deixando um pouco em segundo plano a questão da injeção direta, mas considerando o comando de válvulas duplo com variação tanto na admissão quanto no escape usado no motor Duratec, convém traçar um paralelo entre o efeito de um "EGR interno" proporcionado por alterações no "cruzamento" de válvulas forçando de forma imediata a recirculação de uma parte dos gases de escape já durante o curso de admissão num motor 4-tempos e a contrapressão provocada num 2-tempos pela presença de uma câmara de expansão no escapamento, ainda que nesse caso a intenção seja mais de forçar um retorno de mistura crua para os cilindros antes que os pistões cubram os pórticos de escapamento. Na prática, mesmo que a geometria das câmaras de expansão seja fixa e otimizada para melhor resposta em algum regime de rotação específico, cabe retomar o exemplo da Yamaha RD 350 e do sistema YPVS que de certa forma acaba complementando o que se poderia esperar de algo análogo à função do comando de válvulas variável num motor 4-tempos. É justo considerar também a possibilidade de uma restrição variável ao fluxo pelos pórticos de escape possa de certa forma atenuar a falta do efeito de freio-motor tão característica dos motores 2-tempos e que os coloca em desvantagem no tocante à segurança, bem como salientar que os carburadores da época da RD hoje estando fora de cogitação caso ocorra um retorno triunfal dos 2-tempos a segmentos generalistas tornariam óbvia a transição para a injeção eletrônica, e com ela o corte de combustível em desaceleração (DFCO - deceleration fuel cut-off) útil não só para redução de consumo e emissões mas também proporcionando de certa forma um freio-motor mais efetivo quando combinado a outras soluções técnicas que acabariam sendo otimizadas pelo gerenciamento eletrônico.

Relegados ao esquecimento por uma parcela expressiva do público generalista após a Volkswagen ter comprado a Auto Union na Europa e a Vemag no Brasil e encerrando a produção local da linha DKW em '67, os motores 2-tempos que fizeram história em modelos como o DKW-Vemag Belcar ainda são fascinantes, e a falta de interesse em aplicá-los alguns novos desenvolvimentos centrados em motores 4-tempos foi o principal impedimento para que tivessem uma continuidade no segmento automotivo. A simplicidade construtiva evidentemente impôs algumas limitações, que ainda seriam facilmente superáveis com o mínimo de boa-vontade para reconhecer tanto méritos dessa configuração de motor quanto soluções que pudessem mantê-los competitivos. Enfim, considerando que tanto os motores 2-tempos de ignição por faísca quanto os Diesel tem especificidades que possam em algum momento soar mais difíceis de lidar no tocante ao controle de emissões e acabam sendo vistos com desdém por muitos que alegam uma suposta "consciência ecológica", acabam efetivamente sendo injustiçados de uma forma praticamente idêntica...

sábado, 17 de agosto de 2019

Uma reflexão sobre o biometano e oportunidades perdidas para consolidar como um combustível de integração do Mercosul

Tanto a nível do Brasil quanto da Argentina, que bem ou mal acabam exercendo grande influência em outros mercados de exportação regional, é comum se deparar com utilitários de pequeno porte como a Fiat Strada e o Renault Kangoo equipados com kit de conversão para gás natural, eventualmente disposto sob o assoalho do compartimento de carga para minimizar intrusões que possam caracterizar alguma interferência sobre a capacidade volumétrica. O impacto do peso agregado por esse recurso, é no entanto inevitável, podendo se tornar um estorvo no caso do combustível alternativo não estiver disponível para reabastecimento ao longo de uma determinada rota. Há de se considerar ainda o custo inicial da conversão para gás natural, bem como a diminuição da vantagem no preço em comparação à gasolina nos últimos anos, mas diante de dificuldades que surgiram em veículos leves não só diante das restrições burocráticas ao uso de motores Diesel no Brasil mas também da crescente sofisticação técnica que também tem se refletido na diferença de custo dessa opção em segmentos de entrada na Argentina, bem ou mal o gás natural a ser complementado pelo biometano tem perdido oportunidades para ser consolidado como um combustível de integração do Mercosul.

Dada a oferta do gás natural ainda um tanto restrita geograficamente e concentrada em alguns centros regionais, somando-se a um aparente desinteresse dos fabricantes de veículos em expandir a oferta de motores Diesel mesmo em modelos que poderiam ter essa opção como seria o caso das versões 4X4 de alguns SUVs compactos como o Renault Duster, já faz ainda mais sentido destacar que o Brasil e a Argentina como potências agropecuárias acabam tendo uma quantidade considerável de resíduos que poderiam muito bem ser aproveitados como matéria-prima para a produção de biogás/biometano e até valer-se dessa opção tanto para suprir uma demanda que poderia surgir em localidades sem acesso direto a ramais dos principais gasodutos quanto para complementar a oferta do gás natural importado principalmente da Bolívia. Naturalmente, nem todos os operadores iriam estar plenamente satisfeitos com a opção por um combustível gasoso, não só devido ao acréscimo de peso e eventuais impactos na capacidade de carga dos veículos mas também por não ser tão fácil de efetuar procedimentos como transferir um gás sob alta pressão de um reservatório eventualmente improvisado para o tanque de combustível como se faz frequentemente com gasolina, óleo diesel e etanol. E mesmo que possa estar longe de ser incontestavelmente a melhor opção para todas as condições operacionais, não deixa de ser compreensível que a posição consolidada do gás natural como um quebra-galho para economizar diante de restrições ao Diesel baseadas nas capacidades de carga e passageiros e no sistema de tração já pudesse ser mais reconhecida como um pretexto válido para que o biometano conquiste espaço no mercado brasileiro.

Além de resíduos agropecuários e esgoto, outras oportunidades de promover uma redução nos custos de combustíveis a serem destinados a serviços essenciais são literalmente jogadas no lixo. A matéria orgânica contida no lixo doméstico, cujo manejo em aterros sanitários devidamente licenciados reduz os riscos de contaminações do solo e lençóis freáticos, é outra importante fonte de biometano que já é aplicada comercialmente ao menos no estado do Rio de Janeiro e em fase de implantação no Ceará, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Para as condições operacionais de caminhões de coleta de lixo, e recordando também que a Mercedes-Benz do Brasil chegou a produzir motores a gás natural para uso em caminhões e ônibus, bem como o fato da Cummins ter versões movidas a gás baseadas no mesmo bloco de alguns motores turbodiesel que eram fornecidos para a Ford usar na linha de caminhões que era fabricada até pouco tempo atrás no Brasil, chega a ser no mínimo intrigante que poucos esforços tenham sido direcionados a essa alternativa que poderia representar economia e um fechamento mais efetivo dos ciclos do carbono e do nitrogênio na atmosfera. A possibilidade de reabastecer durante as paradas para descarga no local de destinação final dos resíduos, onde também ocorreria a produção do biometano, acabaria otimizando a operação dos veículos, além do fato de predominar a injeção do gás no coletor de admissão formando mistura ar/combustível e as taxas de compressão menores em comparação à de um motor Diesel já dispensarem a complexidade de sistemas de controle de emissão de óxidos de nitrogênio (NOx) como o SCR usado tanto nos Mercedes-Benz Atego Bluetec5 quanto na última geração brasileira do Ford Cargo, para não entrar no mérito do gás natural de origem fóssil ou da eventual substituição por biometano já serem supridos ao motor na fase de vapor, minimizando ao máximo as condições para formação de material particulado. Eliminando também a necessidade do DPF, constantemente apontado como o principal empecilho para que se venha a usar proporções de biodiesel acima de 20% (B20) nas novas gerações de motores Diesel em função de dificuldades na vaporização de uma quantidade de combustível a ser injetada diretamente nesse filtro para promover a autolimpeza forçada ou "regeneração", é uma opção que não deixa de ser competitiva para diminuir a pressão sobre a disponibilidade do óleo diesel convencional para aplicações utilitárias.

No caso do Uruguai, ainda dependente majoritariamente de fontes de energia importadas mesmo com o destaque na produção agropastoril que a princípio poderia suprir uma parte expressiva da demanda por combustíveis, o gás natural não é usado normalmente para fins veiculares, de modo que desde a imposição de sobretaxas a automóveis com motores Diesel houve uma concentração excessiva sobre a gasolina como se alegava haver anteriormente com relação ao óleo diesel convencional. Diga-se de passagem, tomando por referência o Renault Mégane III que teve entre as opções de motor em outros mercados o K4M de 1.6L a gasolina também usado no Uruguai e o K9K turbodiesel de 1.5L sendo que ambos compartilham um bloco com o mesmo projeto básico, a princípio poderia ser interessante valer-se do menor consumo de combustível em volume proporcionado por um motor turbodiesel em comparação à ignição por faísca, embora não se possa negar que a compressibilidade superior do gás natural até mesmo comparado ao etanol pudesse se tornar atraente como um pretexto para manter um motor a gasolina ou "flex" obsoleto em linha e abusar do empobrecimento da mistura ar/combustível para aumentar o rendimento em km/m³. E dada a força da pecuária no Uruguai, que é o país com o maior consumo de carne per capita, seria até bastante justificável que fosse fomentada a produção de biometano de forma análoga ao que se fez com o etanol durante a vigência do ProÁlcool no Brasil, embora restrições arbitrárias ao Diesel possam vir a se tornar um tiro no pé em algum momento. E a afinidade cultural com a Argentina, que é historicamente um dos mercados mais importantes a nível mundial para o gás natural veicular apesar da lembrança ainda muito viva de motores Diesel rústicos como o Indenor XD2 que aparentava predominar em clássicos como o Peugeot 504 durante os verões em Santa Catarina até poucos anos atrás, chega a ser até certo ponto surpreendente que a experiência argentina com o gás natural não tenha exercido ao menos por enquanto alguma influência sobre o mercado uruguaio.

Há ainda que se considerar diferentes abordagens tanto de governos quanto de fabricantes no tocante ao gás natural, destacando o caso de modelos como a atual geração do Volkswagen Polo que tem na Europa a opção por versões configuradas de fábrica com o motor 1.0 TGI otimizado para operar com o gás natural como combustível primário e com apenas uma pequena reserva de gasolina para uso em emergências ou deslocamentos até o posto de abastecimento de gás mais próximo. Semelhante ao 1.0 TSI que no Brasil é usado em versões flex, a princípio seria pouco provável que chegasse a ser usado tanto localmente quanto em mercados de exportação regional que atualmente dispõem somente do 1.6 MSI calibrado para operar somente com gasolina, e a isso pode-se atribuir principalmente o custo inicial que mantém a competitividade do motor maior e à primeira vista mais defasado em virtude de não dispor do turbo e da injeção direta presentes no TSI e no TGI. Lembrando do escalonamento das alíquotas de alguns impostos de acordo com a cilindrada no Brasil, acabam não tendo o mesmo efeito em outros países do Mercosul como é o caso da Argentina e do Uruguai, então não seria exatamente uma surpresa que prevalecesse o MSI e um simples empobrecimento da mistura ar/combustível caso venha a ser replicada a estratégia de oferecer versões de algum modelo configuradas para uso do gás natural e eventual substituição pelo biometano.

Naturalmente, nem todos os segmentos seriam beneficiados tão significativamente por uma expansão do gás natural devido a especificidades operacionais mesmo que a viabilidade técnica exista, como por exemplo ônibus de turismo e viaturas de bombeiros. Por exemplo, apesar de tanto Scania quanto MAN/Volkswagen usarem blocos idênticos aos dos motores Diesel nos de ignição por faísca focados na operação com gás natural, o peso e volume dos reservatórios impacta a capacidade de carga e pode representar desde a inconveniência do menor volume dos bagageiros num ônibus turístico até mesmo a diferença entre a vida e a morte caso falte espaço para transportar algum insumo ou equipamento num caminhão de bombeiros. Teoricamente poderia ser convidativo o uso do gás natural liquefeito (GNL) por proporcionar a capacidade de armazenar uma mesma quantidade de combustível em peso num volume menor em comparação ao gás natural comprimido (GNC), mas a necessidade de manter o gás refrigerado (normalmente valendo-se de uma camada de nitrogênio líquido entre o reservatório do GNL e o invólucro externo) torna as operações de abastecimento mais complexas enquanto a necessidade de ventilar diretamente à atmosfera tanto os vapores de combustível quanto dos fluidos criogênicos usados para preservá-lo em baixas temperaturas a bordo representam um maior risco de explosão que é indesejável ao transportar passageiros leigos sem familiaridade com procedimentos de segurança e inaceitável num veículo de emergência que vá precisar operar junto a focos de incêndio.

Novos desafios tem feito com que o Diesel seja posto em xeque em determinados segmentos, mesmo que em outros permaneça praticamente incontestável, tomando por exemplo versões regionais do SUV compacto Peugeot 2008 feitas no Brasil que não oferecem nem sequer para exportação a opção pelo motor 1.6 HDi que equipa similares de fabricação européia enquanto no caso do furgão de porte médio Peugeot Expert montado no Uruguai esse seja o único motor oferecido. Nesse caso é evidente a consolidação em poucas faixas de cilindrada como uma estratégia para assegurar a sobrevida do Diesel apoiando-se numa otimização da escala de produção tanto de motores quanto dos sistemas de controle de emissões associados, em contraste a uma maior variedade que ainda persiste na ignição por faísca motivada principalmente pelos custos menores de produção de motores básicos. Enfim, em meio à crise argentina que dificulta a aquisição de um motor mais caro e sofisticado, o gás natural e o biometano teriam perspectivas de crescimento atendendo a motores rústicos como um combustível de integração regional para o Mercosul, mas não convém descartar logo de antemão os motores Diesel...

terça-feira, 13 de agosto de 2019

7 motivos para uma reinterpretação moderna do motor Hesselman fazer sentido

Ainda pouco lembrada no Brasil, a idéia de se usar combustíveis pesados em motores de ignição por faísca proporcionou entre as décadas de '20 e '50 o primeiro contato de muitos operadores com o óleo diesel em países como a Suécia. Os desafios a serem superados em 1925 pelos motores Diesel, indo da partida a frio ao tamanho e peso sensivelmente maiores, levaram Jonas Hesselman a experimentar e obter sucesso com o uso da injeção direta em motores de ignição por faísca com o objetivo de poder usar querosene e óleo diesel, motivado pelos preços menores em comparação à gasolina. E mesmo que eventualmente possa não parecer fazer muito sentido propor um retorno desse conceito por causa da evolução dos motores Diesel propriamente ditos, ainda há ao menos 7 motivos para que uma reinterpretação moderna do motor Hesselman fazer sentido.

1 - expansão da oferta da injeção direta em motores a gasolina ou "flex": principalmente em função de viabilizar taxas de compressão mais altas sem prejudicar o consumo de gasolina como seria o caso da injeção nos pórticos de válvula, ainda que nos últimos anos o foco esteja mais direcionado a uma diminuição na desvantagem apresentada pelo etanol nesse parâmetro, já fica mais convidativa a experiências com o óleo diesel e outros combustíveis pesados, incluindo não somente o querosene mas eventualmente também o biodiesel. Vale destacar que há opções tanto com turbo como no Volkswagen T-Cross com motores 1.0 e 1.4 TSI quanto naturalmente aspiradas como no motor Ford Duratec Direct atualmente oferecido no EcoSport somente na versão Storm que se tornou a única a contar com tração 4X4;
2 - eventualmente burlar a burocracia: considerando que mesmo alguns modelos 4X4 como é o caso do EcoSport Storm não há a opção pelo motor Diesel devido ao sistema de tração oferecido. Se não tiver a "reduzida" ou recurso análogo como 1ª marcha "crawler", nem capacidade de carga nominal igual ou superior a 1000kg e acomodar menos de 9 passageiros além do motorista, a tração 4X4 isoladamente não proporciona um enquadramento como "utilitário" que permita homologar um veículo com motor Diesel, e portanto uma releitura do motor Hesselman não seja um artifício de todo inadequado;
3 - simplificação da logística de combustíveis para atender a frotas cativas: a possibilidade de usar um combustível comum e manter uma estrutura menor para armazenamento e abastecimento em bases operacionais, bem como uma redução na quantidade de carregamentos de combustível a ser fornecido, ofereceria vantagens tanto para operadores particulares quanto frotas de órgãos públicos. Naturalmente, seria de se esperar que um motor atual adaptado para funcionar de forma análoga ao Hesselman teria uma função mais complementar do que substitutiva dos motores Diesel, de modo que seria mais fácil vê-lo num EcoSport que não teve versões Diesel homologadas no Brasil do que numa Fiat Toro por exemplo;

4 - maior familiaridade de mecânicos independentes com motores de ignição por faísca: apesar de ser um erro crer que "motor a gasolina é tudo igual", é impossível negar que para a grande maioria dos mecânicos independentes uma série de fatores que vão desde a aparente simplicidade de sistemas de combustível para motores de ignição por faísca até o custo inicial menor fazer com que se tornem mais comuns e com princípios de funcionamento facilmente assimiláveis, passando pelo custo relativamente baixo do combustível em países como os Estados Unidos e o Canadá levar uma parte considerável do público a não ter o mesmo grau de preocupação que um brasileiro médio que não poderia se dar ao luxo de usar no dia-a-dia uma Ford Windstar com motor Essex V6 de 3.8L ou 4.2L nem uma F-350 com algum V8 da série Triton ao invés dos motores Cummins turbodiesel sempre com 4 cilindros que equiparam a congênere brasileira. Evidentemente que num motor mais antigo que tenha no máximo injeção sequencial nos pórticos de válvula como os Essex ou o Triton 5.4 oferecido na mesma geração da F-350 americana que chegou a ser produzida no Brasil vá ser mais fácil achar um mecânico independente que se arrisque a efetuar algum reparo ou pelo menos um diagnóstico caso ocorra algum problema durante uma viagem mesmo que não esteja tão familiarizado com o motor, ou até algum argentino para fazer gambiarra com carburador num motor relativamente moderno e já lançado numa época que a injeção eletrônica estava devidamente consolidada junto aos motores de ignição por faísca, e mesmo com a difusão um pouco tardia da injeção direta permanece muito mais fácil encontrar mecânicos de linha leve que alegam não ter como trabalhar com motores Diesel mas ainda tentariam a sorte num motor a gasolina ou "flex" de injeção direta;

 
5 - relativa facilidade para promover o controle de emissões: como se o escândalo de emissões da Volkswagen que ganhou a alcunha de "Dieselgate" não fosse suficiente para fomentar a desconfiança do público generalista com relação ao futuro dos motores Diesel a longo prazo, a Volvo detectou uma série de problemas com a durabilidade e eficiência a longo prazo do sistema SCR, atualmente o mais aplicado em veículos pesados como os caminhões e ônibus homologados nas normas Euro-5 visando o controle das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx). Tendo em consideração ainda o histórico da Volvo, que em outros momentos já se valeu desse método assim como outros fabricantes suecos de veículos pesados e motores para outras aplicações em que o Diesel viria a se consolidar como a opção preferida também o fizeram, e também o fato da injeção direta e do gerenciamento eletrônico terem proporcionado um aumento seguro das taxas de compressão em motores de ignição por faísca nesses quase 100 anos desde que Jonas Hesselman apresentou o primeiro protótipo, já fica mais fácil atingir condições mais propícias para uma combustão completa do óleo diesel e outros combustíveis pesados ocorra, e por conseguinte a carbonização dos eletrodos das velas de ignição seja minimizada. Outro ponto a se considerar, tendo em vista que alguns veículos modernos com motor a gasolina ou "flex" de injeção direta tem recorrido à injeção dupla (uma parte direta e a outra nos pórticos das válvula de admissão) para enriquecer a proporção ar/combustível, seria justamente uma injeção suplementar de algum combustível volátil como por exemplo o etanol, devido à melhor resistência à pré-ignição em comparação à gasolina e ao fato de ser renovável, proporcionando um resfriamento da carga de ar da admissão que auxilia na redução dos NOx e, por vaporizar mais facilmente que o óleo diesel ou outro combustível pesado que venha a ser usado de acordo com a disponibilidade no momento, também proporciona uma melhor propagação de chama nas câmaras de combustão no momento da centelha e diminui a formação de material particulado e a deposição de sedimentos carbonizados dentro do motor. Uma injeção suplementar de água, misturada com algum álcool como metanol ou o próprio etanol por ser mais comum no Brasil, tem efeito semelhante, requerendo ainda um menor volume de injeção comparado ao etanol puro e facilitando o armazenamento a bordo, e outro ponto a se destacar é a maior facilidade de produzir etanol comparada à síntese da uréia industrial usada na formulação do reagente AdBlue/ARLA-32/ARNOx-32 aplicado aos gases de escape de veículos equipados com SCR;

6 - aplicabilidade militar: pode não parecer tão promissor devido à massificação dos motores Diesel nas frotas operacionais militares de países alinhados à OTAN mas, em algumas circunstâncias, pode ser desejável valer-se da leveza e eventualmente da capacidade de sustentar regimes de rotação mais elevados normalmente mais comum em motores de ignição por faísca, mas a aptidão para usar um combustível com menos risco de explosão seja ainda mais valiosa. A bem da verdade, chega a ser surpreendente considerar que motores Hesselman não tenham sido amplamente usados em viaturas militares americanas na época da II Guerra Mundial como as Dodge WC que deram origem à Power Wagon civil, tendo em vista que modelos desse tipo de motor de 20 a 300hp foram produzidos entre 1932 e 1951 pela Waukesha Motor Company. E apesar de hoje a relação peso/desempenho não ser mais tão desfavorável aos motores turbodiesel em comparação a um de ignição por faísca, não há de se duvidar que algum cenário operacional específico pudesse fazer com que fique um tanto difícil ignorar eventuais vantagens que um motor mais leve e menos ruidoso torne um Hesselman adequado;

7 - falta de opções mais modernas para o segmento náutico leve: tanto em embarcações de pesca quanto outras adaptadas para transporte de passageiros em rotas turísticas, hoje é muito comum o uso de motores Diesel mais rudimentares como os Yanmar de 1 cilindro horizontal e as inúmeras cópias chinesas. Se por um lado ainda é uma alternativa bastante conhecida e cuja simplicidade se reflete em menos vulnerabilidades para a operação numa condição ambiental particularmente extrema, por outro há de se considerar desde o conforto que uma redução de ruído e vibração proporcione a passageiros até a capacidade de operar com combustíveis voláteis incluindo gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") num caso de extrema necessidade que só seria possível em função da ignição por faísca nos motores Hesselman ou numa eventual reinterpretação moderna. Uma relação peso/potência mais favorável também seria benéfica para melhorar a capacidade de carga.

A evolução tecnológica da metalurgia e em sistemas de combustível e ignição é capaz de oferecer novas oportunidades para que se atenda melhor a necessidades distintas de alguns operadores, que podem não estar tão satisfeitos com a oferta de motores Diesel em algumas faixas de potência mas também não teriam uma justificativa econômica para abrir mão por completo do uso de combustíveis pesados. Também vale destacar que a massificação da injeção direta junto à ignição por faísca, principalmente associada ao turbo em meio ao fenômeno do downsizing, vem sendo frequentemente enaltecida como uma alternativa para que se aproximem da maior eficiência energética atribuída ao Diesel. Portanto, com a possibilidade de conciliar as características mais desejáveis de configurações tão distintas, uma reinterpretação moderna do motor Hesselman ainda faria sentido.