domingo, 26 de agosto de 2018

Faixas de rotação de potência e torque: diferenças que se fazem notar no desempenho

Às vezes, motores com uma concepção muito distinta podem ter um desempenho até muito parecido em condições reais de uso, mesmo que os valores de potência e torque apresentem diferenças também muito significativas. Um dos motivos para isso está nas faixas de rotação de potência e torque, desde que seja considerada uma compensação nas relações de marcha para tentar manter a multiplicação do torque num parâmetro próximo. Apenas para tentar exemplificar, tomando como referência a Honda CBX 250 Twister (modelo antigo) e o Fusca 1200, o torque de 2,48kgfm a 6000 RPM na moto pode ser comparado aos 7,7kgfm a 2000 RPM do eterno pioneiro dentre os carros populares brasileiros. É natural que cause alguma estranheza mas, se as relações de marcha fossem exatamente as mesmas (o que já seria descartado até pelo fato da Twister ter um câmbio de 6 marchas contra 4 do Fusca), o uso de uma redução intermediária de 3:1 faria com que o pico de torque com o motor da Twister passasse a equivaler a um motor teórico que desenvolvesse 7,44kgfm a 2000 RPM. Apesar do Fusca ainda se manter em vantagem por 0,26kgfm nessa comparação, a teoria é simples e ao menos na aceleração o desempenho seria bastante próximo.
Claro, há de se levar em consideração também a faixa de rotação do pico de potência, e nesse caso a relação entre essas faixas é da ordem de 2,567:1 entre os 36cv a 3700 RPM do Fusca 1200 e os 24cv a 9500 RPM da Twister. Mantendo a mesma redução intermediária de 3:1 que teria como prioridade a entrega do torque, seria como se com o motor original do Fusca a 3166 RPM um eventual similar que fosse adaptado com o motor da moto já não tivesse o mesmo fôlego. Apesar da Twister originalmente ter a ignição programada para limitar a rotação do motor a 11000 RPM, manter a relação de 3:1 seria como competir com um Fusca às 3666 RPM mas ainda assim não seria tão vantajoso ao ter em conta que nesse regime o Fusca ainda teria uma pequena reserva de potência enquanto na Twister está já teria entrado numa curva descendente após ultrapassar o valor máximo. Apesar do exemplo usado ser meramente ilustrativo, desconsiderando aspectos como o câmbio da moto ser integrado ao cárter do motor e ficar portanto mais difícil de substituir por um mais adequado às especificidades da aplicação automotiva pode-se chegar à conclusão que de fato não é impossível alcançar médias de desempenho bastante próximas recorrendo a motores com especificações muito divergentes.

Devo confessar que, durante uma fase da minha vida em que eu dava menos importância à proposta de uma liberação do Diesel, cheguei a acreditar que pudesse até ser boa idéia tentar usar um motor de moto de 250cc num buggy, tendo em vista fatores como o tamanho mais compacto que o do motor de Fusca normalmente usado nesse tipo de veículo e a expectativa exagerada por uma eventual redução do consumo de combustível que pudesse ser alcançada. Diante da falta de perspectivas claras quanto ao fim das restrições ao Diesel para veículos que fujam à definição de "utilitários" hoje em vigor no Brasil, a idéia de um buggy com motor de moto não é algo que eu já desconsidere totalmente, até porque continuo gostando de buggy apesar do temor quanto à vulnerabilidade das capotas de lona que se usa normalmente neles se tornar um inconveniente caso viesse a ter um como único veículo que me atendesse no dia-a-dia. Não pretendo entrar no mérito da discussão em torno da disponibilidade de peças para manter um motor de Fusca sem gambiarras, muito menos na discussão sobre substituir por um motor mais moderno com refrigeração líquida, que também já seria outro bom pretexto para tratar da aparente obsessão pela potência que se observa hoje no mercado automobilístico e a meu ver tem fomentado críticas exageradas e muito superficiais aos projetos antigos.


Do mesmo jeito que se observa como uma variação substancial entre as especificações nos motores de ignição por faísca podem ser menos relevantes em condições reais de uso, o mesmo já não se pode dizer quando a comparação é com o Diesel. Um caso emblemático é do Fiat Uno, cuja variedade de motores incluiu opções diversas de acordo com o mercado como os primeiros Mille brasileiros. À primeira vista pode parecer que diante dos motores Diesel "de trator" antigos até os modestos 48,5cv a 5700 RPM e o torque de 7,4kgfm a 3000 RPM conseguiriam fazer milagre diante de uma eventual comparação com o 1.3 Diesel de 45cv a 5000 RPM e 7,6kgfm a 3000 RPM que teve uma presença mais significativa nos mercados de exportação regional. Apesar da diferença pouco maior de 30% nas respectivas cilindradas, com 1301cc para o 1.3D e 994cc para o Mille durante a época que foi usado o motor Fiasa (passou a 999cc com o Fire), já levando em conta que os motores Diesel antigos eram bem mais rústicos, os picos de torque no mesmo regime de rotação já indicam que o Mille estava em desvantagem nesse aspecto ainda que por uma margem estreita. E mesmo o pico de potência num regime de rotação 14% mais alto resultava num aumento de potência mais próximo de meros 7%, de modo que em condições reais de uso o Mille estaria longe de ser efetivamente melhor.

Outro exemplo que poderia ser considerado, dessa vez da Volkswagen, é o Gol 1000 quadrado. Com a potência de 50cv a 5800 RPM e o torque de 7,3kgfm a 3500 RPM no motor CHT/AE que foi usado nessa versão, a comparação óbvia seria com o motor EA827 1.6D que também desenvolvia 50cv mas a só 4500 RPM e torque de 9,5kgfm a 3000 RPM que fez muito sucesso em países como a Argentina além de ter sido usado na Kombi Diesel e muito popular para adaptações na Saveiro no Brasil durante um breve período em que foi relaxada a exigência de capacidade de carga de uma tonelada para as pick-ups. Considerando que o motor 1.6D pudesse ser regularizado num Gol no Brasil, caso a relação final de transmissão fosse alongada em 16% para tentar compensar a diferença dos regimes de pico de torque, seria como se entregasse 8,1kgfm a 3480 RPM e portanto o motor Diesel permaneceria sendo mais vantajoso. Já no tocante às faixas de rotação de pico de potência, a diferença de pouco mais de 28,8% seria como se o 1.6D entregasse 64cv a 5800 RPM com esse fator de compensação, embora com a mesma compensação de 16% aplicada ao torque para não prejudicar o desempenho em aclive ou condições de carga mais pesada seria como 58cv a 5220 RPM. Mais uma vez, o brasileiro foi sabotado pelos burocratas do nosso próprio país, e isso para não entrar no mérito da possibilidade de usar óleos vegetais como combustível alternativo sem maiores intercorrências por conta da injeção indireta que o motor de Kombi Diesel usa.

Na prática, potência e torque isoladamente não servem para definir qual motor seria efetivamente o melhor sem considerar as especificidades de cada aplicação, nem a adaptabilidade a combustíveis alternativos quando desejável. Também não sobram dúvidas que as faixas úteis de rotação de cada motor influem, junto com um correto escalonamento das relações de marcha e de diferencial, para que tanto a potência mas principalmente o torque possam ser aproveitados da forma mais eficiente possível. No caso de motores Diesel, que antes da massificação do turbo ainda eram constantemente apontados como muito "amarrados" numa comparação direta a similares de ignição por faísca, o torque mais farto a baixas rotações já pode proporcionar acelerações satisfatórias, mas não se pode negar que a faixa de rotações normalmente mais estreita foi durante muitos anos um empecilho para a velocidade máxima. Enfim, por mais difícil que seja a procura por um motor equilibrado para atender às necessidades ou preferências de cada operador, é indispensável compreender como os picos de potência e torque podem influenciar no resultado final.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Ignição por faísca: sobrevida assegurada pela mediocridade?

Esse é um ponto bastante polêmico, e que ganhou certo destaque junto à eclosão do "Dieselgate" à medida que a dependência de alguns fabricantes tem pelos motores Diesel para assegurar uma boa participação de mercado principalmente na Europa. Além da própria Volkswagen, que no rescaldo do escândalo passou a dar uma ênfase maior tanto à tração elétrica quanto à inclusão de dispositivos de controle de emissões mais avançados mesmo nos modelos movidos a gasolina como o Tiguan de 2ª geração que incorporou o filtro de material particulado em mercados onde o motor 2.0TSI é ajustado para 190cv, outro fabricante que acabou sendo muito criticado por supostamente relegar os motores de ignição por faísca à mediocridade foi o grupo PSA (mais conhecido através das marcas Peugeot, Citroën/DS e que recentemente adquiriu da GM a divisão Opel/Vauxhall). Mas a bem da verdade, ao recordarmos fatores como o projeto de motores modulares que permitem alcançar um elevado grau de compartilhamento de componentes entre motores Diesel e os de ignição por faísca, já se reforça o quão injusto seria afirmar que estes últimos estivessem sendo tratados com relativo descaso pelos próprios fabricantes em razão da preferência do público pelos primeiros.
De fato, por muito tempo predominaram motores naturalmente aspirados para as versões com ignição por faísca nas linhas Citroën/Peugeot, principalmente em mercados como o argentino e o brasileiro, e não se pode negar que fatores tão diversos quanto a facilidade para fazer reparos precários ou adaptar gás natural não deixam de ter um peso nessa decisão estratégica. Assim, cabe observar o exemplo do Peugeot 308 que no Brasil contou inicialmente com o motor EC5 de 1.6L que nada mais era do que uma versão atualizada do antigo motor TU5 e o EW10 de 2.0L que compartilha o projeto básico com o DW10 turbodiesel oferecido em outros mercados, e depois teve introduzido o motor EP6 "Prince" de 1.6L numa versão denominada THP dotada de turbo e injeção direta que foi aos poucos tomando o espaço do EW10 até por fim ser consolidado como a única opção de motor para o modelo no Brasil algum tempo após o facelift. A situação é diferente na Argentina, onde o vetusto EC5 permanece em linha paralelamente ao EP6, com o turbodiesel DV6 também de 1.6L completando a linha de motores e atendendo a consumidores com preferências e/ou necessidades distintas. Tendo em vista que todos estão enquadrados nas normas de emissões Euro-5, pode-se dizer que a aposta em manter mesmo um propulsor tratado por alguns como "arcaico" pode parecer mais justificada.

Não se pode negar que a maior adesão ao turbo e à injeção direta em motores de ignição por faísca é uma das principais razões para que tenham se aproximado mais da eficiência geral do Diesel, e feito com que a desvantagem do etanol no consumo em comparação à gasolina seja atenuada nos veículos "flex" ao proporcionar condições mais propícias para que ambos os combustíveis possam ser usados sem maiores intercorrências com taxas de compressão mais altas normalmente consideradas melhores para o etanol. Porém, há alguns efeitos colaterais inerentes a essas condições, mais notadamente um incremento na emissão de óxidos de nitrogênio (NOx) devido às temperaturas mais elevadas que a combustão pode alcançar com uma proporção menor de combustível pela massa de ar de admissão e o maior aquecimento aerodinâmico resultante de uma compressão mais elevada, e até de material particulado em função do intervalo mais curto entre a injeção e a ignição levando a uma vaporização incompleta da gasolina e/ou do etanol quando aplicável. Assim, levando em conta a necessidade de conciliar um enquadramento às normas de emissões em vigor e o impacto sobre os custos iniciais e de manutenção, a estratégia conservadora da Toyota que se mantém fiel à aspiração natural e injeção convencional tanto em híbridos como o Prius quanto em modelos mais generalistas como o Corolla não deixa de chamar a atenção.

O dilema entre a adesão ao turbo e injeção direta ou seguir a "tradição" do motor aspirado de injeção convencional atinge diversas proporções, não apenas no uso particular mas também em aplicações comerciais como nos táxis justamente pela preferência que o gás natural tem junto aos operadores em função do preço mais acessível numa comparação à gasolina e ao etanol. Vale tomar como exemplo o Volkswagen Virtus lançado ainda esse ano, oferecido com o motor 1.6 MSI naturalmente aspirado de 4 cilindros como opção de entrada enquanto o 1.0 TSI de 3 cilindros figura como o top de linha, que acaba evidenciando essa situação. Como no motor de injeção direta os bicos injetores originais ficam expostos diretamente à frente de propagação de chama, se faz necessário manter ao menos uma parte do fluxo de injeção do combustível original para mantê-los refrigerados ao rodar com o gás natural que seria injetado no coletor de admissão, o que de certa forma diminui a esperada redução de custos operacionais do veículo em comparação a um similar dotado de injeção sequencial nos pórticos de válvulas de admissão. É importante também salientar que o gás natural apresenta maior resistência à pré-ignição, tendo em vista tanto a compressibilidade quanto a faixa de temperaturas mais estreita em que se inicia a combustão comparado tanto à gasolina quanto ao etanol, suportando melhor condições de mistura ar/combustível pobre sem ter de recorrer à injeção direta, e assim com uso mais constante do gás em detrimento dos combustíveis líquidos é até previsível a preferência pela tecnologia mais antiga.

Outro aspecto a se considerar é a obsessão por motores de alta cilindrada entre os apreciadores das barcas americanas, como a Ford Explorer de 5ª geração que tem de acordo com as preferências ou as políticas de diferentes mercados uma variedade de motores turbo com injeção direta em complemento à opção pelo V6 aspirado de injeção convencional. Em modelos anteriores ao facelift de 2016, houve em versões de tração somente dianteira até a disponibilidade do mesmo motor 2.0 Ecoboost usado no Ford Fusion, que se enquadraria numa alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) mais favorável em comparação ao 2.3 Ecoboost atualmente oferecido também para versões 4X4 em alguns países ou ao 3.5 V6 caso fosse importada oficialmente para o Brasil. Mas esse é também um daqueles casos em que a aptidão de um motor menor a fatores de carga mais elevados é contestada sob o ponto de vista da durabilidade, além daqueles questionamentos em torno do quão efetiva seria a redução de consumo e emissões a ser proporcionada pelo downsizing. Nesse contexto, além do resfriamento da carga de ar de admissão durante a vaporização da gasolina ao ser injetada nos pórticos de válvula na fase de admissão no motor maior e à primeira vista apontado como tecnicamente inferior por alguns que se deixam levar pelos encantos do marketing, também permanece relevante destacar que há uma menor retenção de calor sob o capô caso se faça a opção pelo aspirado. Aqueles vídeos no YouTube mostrando caminhoneiros usando a parte quente (turbina) do turbocompressor para assar carne podem parecer loucura, mas o fundamento é praticamente o mesmo...

É importante levar em consideração também que os motores Diesel para aplicação em veículos leves apresentaram uma evolução muito rápida nos últimos 20 anos, não somente no tocante ao controle de emissões mas sobretudo para alcançar um desempenho mais comparável aos similares de ignição por faísca que ainda eram pouco contestados como uma opção mais óbvia para quem tivesse pretensões mais esportivas. Mas como nem tudo são flores, a modernização acabou por fazer com que a imagem de robustez e simplicidade associadas ao Diesel ficasse comprometida diante de fatores tão diversos quanto a massificação do gerenciamento eletrônico e do turbocompressor com respectivas tubulações e conexões, intensificando-se em antecipação à entrada em vigor das normas Euro-3 no ano 2000 no mercado europeu e ao mesmo tempo exercendo influência em outros países onde o Diesel tinha certo prestígio no setor automotivo como ainda era o caso da Argentina. O contraste entre a rusticidade e a alta tecnologia pode ser facilmente constatado lançando um olhar sobre o Peugeot 306, que manteve o motor DW8 de 1.9L naturalmente aspirado com injeção indireta simultaneamente ao DW10 de 2.0L já dotado de turbo e injeção direta eletrônica do tipo common-rail de alta pressão, ao passo que no sucessor 307 o DW8 dava lugar ao já mencionado DV6. Logo, não causaria grande surpresa que a ignição por faísca despertasse novamente algum interesse de uma parte do público se vale de uma evolução comparativamente mais lenta dos motores a gasolina para fazer gambiarras com peças de modelos mais antigos ou até de motos no caso da adaptação de carburador em carros originalmente equipados com injeção eletrônica como ainda se faz muito na Argentina.
Não importa se é um modelo de concepção mais tradicional ou um híbrido, a eventual preferência por motores de ignição por faísca e uma argumentação que os apresente como uma opção mais racional à complexidade da atual geração de motores Diesel chega a ser ao menos em parte influenciada por um grau de mediocridade. Por mais que exista um profundo abismo entre o ato de adaptar um carburador e ignição de pontos fixos num Peugeot 307 e o encantamento pela aura "sustentável" que se formou em torno do Toyota Prius, na prática se vê a mesma intenção de tentar negar que o Diesel ainda pode fazer sentido em condições operacionais semelhantes. Os tempos são outros e, se antes a ignição por compressão era vista com relativo desdém por não ser tão convidativa a altas velocidades e remeter mais às reações de um motor de trator, hoje pode-se afirmar categoricamente que a procura pela zona de conforto tem partido de princípios opostos. Enfim, se antes mexer numa bomba injetora rotativa de motor Diesel leve ao invés de se ver às voltas com carburador, distribuidor e bobina de ignição soava como a escolha mais lógica, hoje a lei do mínimo esforço está sendo aplicada do lado contrário e vale até se aventurar com softwares de diagnóstico de falhas compatíveis com um smartphone...

domingo, 19 de agosto de 2018

Observações sobre como a ênfase na potência afeta a oferta de motores Diesel mais simples

Por volta de 20 anos atrás, em mercados onde o uso do Diesel em veículos leves não sofria restrições, um carro médio como o Citroën Xsara apresentar ao menos uma opção de motor potência menor que 60cv não era algo que chegasse a causar tanto espanto. No caso específico do motor TUD5 de 1.5L e 58cv, que nesse modelo chegou a ser usado em poucos mercados com uma tradição agropastoril mais forte como Portugal e Uruguai, era bastante previsível que a simplicidade inerente à injeção indireta e à aspiração natural ainda o tornasse desejável aos olhos de uma parte considerável dos consumidores. Hoje com a presença mais consolidada do turbocompressor alcançando não apenas todos os motores Diesel veiculares mas também ganhando espaço junto à ignição por faísca para cumprir novas metas de redução de consumo de combustível e emissões, a realidade é outra não só no tocante à facilidade de manutenção que ficou para trás mas veio acompanhada de novas exigências de desempenho com o intuito de conquistar um público mais amplo que não estivesse restrito a aplicações utilitárias.
Além de um custo de fabricação reduzido que podia atender bem tanto a quem trata como prioridade o espaço interno de um modelo como a Citroën Xsara Break quanto aos que prefiram um compacto como o Peugeot 106, um motor mais rústico não deixa de soar atrativo para quem não dispunha de um acesso fácil à assistência técnica especializada que um motor mais moderno pode requerer caso ocorra uma avaria. Outra característica a se considerar é uma maior adaptabilidade à operação com combustíveis alternativos, resultante da menor quantidade de dispositivos de controle de emissões e até mesmo do tipo de injeção. No caso específico do motor TUD5, a injeção indireta favorece o uso direto de óleos vegetais como combustível, tanto pelas temperaturas usualmente mais elevadas em comparação a um motor Diesel mais moderno de injeção direta quanto pelo processo de combustão mais lento iniciado nas pré-câmaras proporcionar uma queima mais completa. Por mais que a injeção direta leve vantagem quando consideramos o uso do óleo diesel convencional e do biodiesel, convém não ignorar que a injeção indireta chega a proporcionar médias de consumo mais contidas quando se usa óleos vegetais, que não deixam de ser uma boa opção tendo em vista que já elimina a necessidade de insumos químicos necessários à produção do biodiesel e também não requer tanta energia quanto o refino do petróleo. E assim, não deixa de fazer algum sentido considerar também esse aspecto também como um possível contraponto às propostas de retirar de circulação em algumas localidades os veículos considerados "velhos" como já está sendo levado adiante em algumas partes da Europa.
De fato, ao observar especificações desse motor, a comparação do desempenho com os motores 1.0L de ignição por faísca usados nos carros "populares" é inevitável, e um exemplo apropriado para fazer comparações é justamente o Peugeot 106 que contou no Brasil com o motor TU9 de 1.0L mas no exterior teve uma maior variedade de motores a gasolina até 1.6L e para quem preferia o Diesel manteve o TUD5 até o fim da produção em 2003. Não se pode desconsiderar também a importância da seleção de relações de marcha corretas para conciliar um desempenho satisfatório em condições de uso normais com as expectativas pela economia de combustível que leva à preferência pelo Diesel. Para fazer uma comparação talvez até mais pertinente à realidade brasileira, convém observar o caso da Volkswagen com o motor boxer refrigerado a ar que na versão de 1.6L ainda despertou algum interesse de parte do público brasileiro no breve relançamento do Fusca entre 1993 e 1996, apesar do desempenho mais modesto mesmo em comparação com automóveis "populares" de concepção mais recente que tinham um perfil notadamente mais urbanóide em contraponto à capacidade de incursão fora-de-estrada que fazia do Fusca "Itamar" até mais apreciado em zonas rurais em detrimento da pouca procura por consumidores com um perfil mais urbano à época.

A aplicabilidade de motores Diesel rústicos com pouca potência em veículos particulares se mostrava coerente diante da realidade brasileira ao olharmos outro exemplo na linha Volkswagen, no caso das adaptações de cabine dupla na Saveiro quadrada que eram até mais comuns em exemplares equipados com o mesmo motor 1.6D de 50cv usado na Kombi Diesel. Paradoxalmente, esse mesmo motor não foi muito bem-sucedido na Kombi devido à refrigeração um tanto deficiente, tanto que por um bom tempo após o fim da produção das versões Diesel a Kombi permaneceu valendo-se somente do antigo boxer refrigerado a ar nas versões a gasolina e álcool/etanol mesmo diante da concorrência que surgiu no mercado brasileiro durante a reabertura das importações no início da década de '90, motivando entre poucas alterações a tardia adoção da porta lateral corrediça e da tampa traseira mais larga. E por mais que o motor Volkswagen 1.6D tenha sofrido não apenas com a bomba d'água subdimensionada que levava à formação de um calço de vapor no cabeçote devido à baixa pressão da recirculação da água.

No caso da Kombi, nem mesmo a troca do motor boxer refrigerado a ar por um "flex" com 4 cilindros em linha e refrigeração líquida em 2006 visando atender à norma equivalente à Euro-3 teria servido de pretexto para a Volkswagen oferecer novamente ao menos uma opção de motor Diesel. Porém, ao lembrarmos que o motor 1.9 SDI de 64cv já era produzido no Brasil e usado em versões destinadas à exportação em modelos como o Golf de 4ª geração, ainda poderia ter feito algum sentido oferecê-lo também na Kombi para atender ao mercado brasileiro e assim eliminar uma desvantagem que tinha diante de utilitários mais modernos na visão de uma parte considerável do público que eventualmente não aceitasse recorrer ao gás natural como um paliativo para compensar o alto custo da gasolina e/ou a sazonalidade do etanol. Em que pese o custo mais elevado normalmente associado à opção pelo motor Diesel, e que o projeto rústico da Kombi fizesse qualquer eventual incremento no preço inicial tomar uma proporção mais significativa, naturalmente o aspecto meramente utilitário permaneceria convidativo. Já no caso de um carro que no mercado brasileiro foi considerado "de playboy" como costuma ocorrer com todas as gerações do Golf, embora tal situação não viesse a ser um impedimento para atrair também uma parcela do público mais conservadora e que já se daria por satisfeita com as versões de desempenho mais modesto, não seria nenhuma surpresa uma eventual preferência pelas versões TDI se fosse permitida a oferta de motores Diesel para o Golf no mercado interno.

Naturalmente, além de eventuais preferências mais subjetivas, outros fatores como o enquadramento em diferentes normas de emissões de acordo com os mercados onde estivessem inseridos e alíquotas de impostos menos punitivas a faixas de cilindrada mais altas também contribuíam para favorecer os motores de projeto mais rústico. Um bom exemplo dessa situação foi o uso do motor DW8 de 1.9L e 69cv não só num modelo médio como o Peugeot 306 mas também no compacto 206 nas versões feitas na Argentina. Enquanto no 306 esse motor substituiu apenas a versão naturalmente aspirada do XUD9 de 1.9L (1905cc contra 1868cc do DW8), ao passo que quem não abria mão do turbo se via obrigado a passar para o DW10 de 2.0L que também já incorporava injeção direta do tipo common-rail, no 206 o fogo amigo partia não só do DW10, mas ainda dos pequenos DV4 de 1.4L com potências entre 55 e 68cv e do DV6 de 1.6L que vai de 75 a 120cv e passaram a ser favorecidos na Europa. Hoje, em países onde não há restrições pelas capacidades de carga, passageiros ou tração para autorizar o uso do Diesel em veículos, é até possível encontrar modelos tão diversos quanto o compacto 208 e o furgão médio Expert fazendo uso do mesmo motor, no caso o DV6 que ao incorporar o filtro de material particulado passou a enquadrar-se nas normas Euro-5 e mais recentemente com a inclusão do sistema SCR (ARLA-32/AdBlue) já é oferecido com certificação Euro-6.

Por mais que a modernidade tenha viabilizado a produção de motores turbodiesel na faixa de 800cc pequenos o bastante para servir a modelos como o Smart Fortwo e o Suzuki Celerio mas com desempenho suficiente para dar conta de carros de tamanho mais convencional, não deixa de ser no mínimo intrigante que esses mesmos avanços não tenham sido aplicados também para atender a quem não dá tanta importância à obsessão por alta potência. E apesar da presença não só do turbo mas também da eletrônica e de dispositivos de controle de emissões causarem um impacto no preço inicial, características como a menor quantidade de cilindros nos motores que o Smart (3 cilindros) e o Celerio (2 cilindros) usaram nas respectivas versões turbodiesel não deixam de ser interessantes sob o ponto de vista da redução do custo de produção ao requerer menos peças e também uma menor quantidade de matérias-primas. Enfim, a busca por potência não é o único fator que tem afastado o Diesel de uma parte do público mundo afora, mas não deixa de ser relevante nesse sentido.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Caso para reflexão: comparando tamanho do Toyota Bandeirante e do Corolla E140

Não há dúvidas quanto à presença marcante do Toyota Bandeirante no mercado brasileiro, onde foi por muitos anos a principal referência quando se falava em utilitários off-road. Também suscita algumas polêmicas, tendo em vista que a equivalência teórica entre uma 1ª marcha do tipo "crawler" e a dupla velocidade da caixa de transferência em um veículo 4X4 assegurou a possibilidade de permanecer usando motor Diesel mesmo com a capacidade de carga nominal inferior a uma tonelada e a caixa de transferência de velocidade simples. No caso da versão de chassi curto e teto rígido, para fins de comparação, a capacidade de 420kg é equivalente à de alguns carros normais. A bem da verdade, com um comprimento de 3.835mm, o Toyota Bandeirante de chassi curto pode até ser mais prático que alguns compactos atuais mesmo em uso urbano, além do mais que a distância entre-eixos de apenas 2.285mm permite um diâmetro de giro menor que pode auxiliar ao manobrar em espaços mais apertados.

Já a versão de uso misto é 47cm mais longa com um comprimento de 4.305mm, e um acréscimo da mesma medida na distância entre-eixos totalizando 2.755mm, dimensões comparáveis às de alguns sedans apontados como mais práticos para uso urbano e/ou rodoviário. A bem da verdade, se por um lado o motor em posição longitudinal torna mais difícil um aproveitamento da extensão da plataforma que seria possível com a configuração de motor transversal mais usada em veículos modernos, e que a carroceria com apenas duas portas é de fato menos prática, por outro o formato mais quadradão acaba por proporcionar uma boa capacidade volumétrica tanto na cabine quanto no compartimento de bagagens caso consideremos uma acomodação da carga até a altura máxima interna, além da capacidade de carga nominal de 640kg o aproximar de algumas pick-ups pequenas derivadas de carros de passeio e furgonetas modernas. Portanto, não é de se causar estranheza que ainda se veja até em área urbana como por exemplo no centro expandido de Porto Alegre uma quantidade razoável de exemplares do Toyota Bandeirante, isso para não entrar no mérito da péssima situação da pavimentação das ruas e estradas Brasil afora que por sua vez é convidativa à preferência por veículos mais robustos e também serve de subsídio para o modismo dos SUVs.
Vale recordar que o Bandeirante, derivado da geração J40 do Toyota Land Cruiser, foi projetado com vistas a se manter dentro de um limite de comprimento até 4,70m e largura máxima de 1,70m visando evitar a incidência de impostos anuais mais altos aplicáveis a veículos "de luxo" no Japão. O modelo fechado enquadra-se com folga nesse requisito, com folga de 39,5cm no comprimento e uma largura de 1.665mm que o mantém 3,5cm abaixo do limite, beneficiando não só na passagem por trechos mais estreitos numa trilha ou acesso secundário em algum lugar do interior como também facilitando o estacionamento em vagas cada vez mais apertadas ou o tráfego por vielas estreitas tanto num centro histórico quanto nas periferias. Somando-se esse fator à possibilidade de usar motor Diesel legalmente no Brasil em função da tração 4X4, acaba sendo mais um pretexto para crer que um jipão old-school ainda tem espaço até mesmo eventualmente num uso diário. E apesar da concepção mecânica mais pesada que não é exatamente a mais favorável à eficiência geral, um Bandeirante ainda pode ser tentador mesmo diante de um sedan como o Toyota Corolla.
Como a geração E140, imediatamente anterior à atual, foi a primeira a trazer uma diferença mais significativa no tamanho entre as versões mundiais e as restritas ao mercado japonês, é o alvo da observação. Desconsiderando uma comparação de alturas, a distância entre-eixos de 2.600mm acaba sendo a única medida externa em que o Corolla seria mais compacto mesmo na comparação ao Bandeirante de uso misto que tem 15,5cm a mais nesse parâmetro. O modelo mundial, que chegou a ser feito no Brasil, teve comprimentos de 4.540mm até o modelo 2010 e 4.572mm do 2011 em diante, e largura de 1.760mm, sendo portanto de 23,5cm a 26,7cm mais comprido e 9,5cm mais largo que o jipão. Já o Corolla Axio E140 japonês, que ainda se enquadra na limitação de comprimento e largura, mesmo com 4.390mm de comprimento e 1.695mm de largura, por incrível que pareça também é maior por fora apesar das diferenças de tão somente 8,5cm no comprimento e 3cm na largura.

Por mais louco que possa inicialmente soar sugerir que um veículo reconhecido pela aptidão ao uso off-road pesado também não seja de todo inadequado para uso urbano diante de outro dotado de uma plataforma mais leve e beneficiada por avanços mais significativos no tocante à aerodinâmica que por sua vez teriam vantagens a serem demonstradas no tráfego rodoviário, uma comparação de tamanho entre o Toyota Bandeirante e o Corolla E140 só reforça o quão estúpido é supor que uma restrição ao uso do Diesel baseada em capacidades de carga, passageiros ou nesse caso tração possa efetivamente assegurar que a oferta de óleo diesel convencional permaneça em função de atividades "utilitárias" de trabalho e transporte pesado e por conseguinte beneficiar a segurança energética.