quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Caso para reflexão: Peugeot e-2008, eletrificação impositiva e a glamurização de utilitários

Um modelo que pode ser considerado emblemático da transição dos SUVs entre veículos efetivamente utilitários até tornarem-se basicamente um artigo de luxo, o Peugeot 2008 de 2ª geração tem chegado ao Brasil oficialmente apenas na versão e-2008 puramente elétrica, e mesmo nos países onde se oferecem motores de combustão interna é inegável esse viés menos austero. Em que pese ser anunciado o alcance de até 310km com uma carga completa da bateria pelo protocolo de testes WLTP atualmente em vigor na União Européia, bem como a infra-estrutura de pontos de recarga com uma grande área de cobertura em alguns países, é inegável que os veículos totalmente elétricos só podem atender satisfatoriamente a um público mais "especializado" que pode se dar ao luxo de planejar rotas com mais antecedência para ter acesso a recargas expressas, além da dificuldade em armazenar mais energia elétrica em comparação à flexibilidade que um veículo dotado de motor de combustão interna proporciona para o transporte de combustível adicional em vasilhames caso a rota a ser trafegada exija alcance adicional entre postos de abastecimento. Alguns podem até alegar que o SUV, que vem para o Brasil importado da Espanha, faça sentido diante da atual dinâmica "SUVista" que tomou conta dos principais mercados automobilísticos, e o controle de tração Advanced Grip Control com posições selecionáveis de acordo com o terreno seja comparável a outros recursos mais primitivos para tentar compensar a falta de tração 4X4 propriamente dita, mas convenhamos que o temor de ficar num mato sem cachorro longe de qualquer gerador portátil movido a gasolina ou óleo diesel para recarregar uma bateria exaurida por tentativas frustradas de sair de um atoleiro desencorajaria o uso mais arrojado que o marketing constantemente atrelava aos SUVs de gerações anteriores que mantinham uma maior proximidade das raízes utilitárias da categoria.
Tendo chegado ao Brasil já com uma defasagem de 3 anos diante de países vizinhos como o Uruguai, e que já recebiam as versões a gasolina do 2008 europeu de 2ª geração embora por motivos tributários as versões turbodiesel estejam ausentes do mercado uruguaio, a intenção de oferecer no Brasil somente o e-2008 da atual geração enquanto o modelo antigo segue em linha com motores flex e ainda exportado para países vizinhos em versões a gasolina como "2008 Mercosur" marcando uma teórica inferioridade, que por sua vez confere um maior prestígio tanto ao modelo mais recente em si quanto a uma proposta pretensamente "moderna" ou "revolucionária" que se tem atribuído à tração elétrica mundo afora. Seria exagerado atribuir unicamente ao Peugeot 2008 o peso de uma eletrificação impositiva que vem sendo empurrada mundo afora, mas o viés "sofisticado" e a aura de uma falsa superioridade atribuída a essa abordagem é facilmente perceptível, além do mais que o Peugeot 2008 de 2ª geração até compartilha a plataforma CMP com o 208 de 2ª geração feito na Argentina e que até oferece versões com motor 1.0 de origem Fiat para valer-se da tributação menor para a categoria dos "populares", e se fosse o caso de oferecer uma versão turbo desse mesmo motor em substituição ao 1.2 THP das versões a gasolina do 2008 de 2ª geração já seria meio caminho andado. Enfim, mesmo que pareça algo sem nexo à primeira vista, uma maior percepção de prestígio vinculada aos SUVs modernos parece servir como uma ponta de lança para tornar a eletrificação impositiva mais palatável ao público generalista, em que pesem as limitações operacionais e outras inconveniências que um veículo puramente elétrico tende a apresentar.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Questionamentos acerca do downsizing em motores de ignição por faísca tomando o Fiat Pulse como referência

Um carro que expõe muito bem algumas incoerências do downsizing no âmbito dos motores de ignição por faísca, o Fiat Pulse foi lançado inicialmente com os motores Firefly 1.3 aspirado e 1.0 turbo flex no Brasil, e só a gasolina em mercados de exportação, sendo que em alguns países como o México apenas o motor 1.3 foi oferecido. Naturalmente o motor 1.3 aspirado acabou sendo um tanto subestimado pelo público generalista, embora para alguns segmentos como o dos táxis possa ser vantajoso tanto por ser mais austero quanto pela maior facilidade de implementar uma conversão para gás natural, embora esse procedimento tenha perdido bastante popularidade entre os operadores em cidades como Florianópolis em anos recentes. E apesar do desempenho um tanto mais modesto, além da ausência de modernidades como a injeção direta e o comando de válvulas com controle eletro-hidráulico das válvulas de admissão que poderia até possibilitar uma eliminação da borboleta de admissão (throttle-plate) mantida somente como uma provisão de vácuo para os freios, o motor de concepção mais tradicional até tem apresentado médias de consumo mais favoráveis tanto com gasolina quanto com etanol, lembrando que em função das normas de emissões que passaram a vigorar em 2022 o tanquinho de partida a frio foi eliminado nos carros e utilitários flex e o pré-aquecimento elétrico nos bicos injetores tem sido usado como auxílio na partida a frio em motores flex desprovidos de injeção direta.
Enquanto o motor 1.0 turbo na prática só se justifica em função da tributação mais favorável incidente sobre essa faixa de cilindrada para atender ao segmento de carros "populares", e o downsizing seja uma aplicação da Lei de Gérson em segmentos teoricamente mais prestigiosos, o motor 1.3 já se justificava sob um aspecto estritamente técnico desde quando ainda era oferecido somente com aspiração natural e injeção sequencial, embora uma versão turbo com injeção direta também tenha chegado ao Fiat Pulse na versão Abarth de pretensões declaradamente esportivas. Apesar de ser possível atribuir a presença do turbocompressor também a um favorecimento no tocante às alíquotas de IPI escalonadas de acordo com faixas de cilindrada, tendo em vista que um motor 1.3 turbo recolhe um percentual menor comparado a um motor 2.4 aspirado que proporcionaria um desempenho semelhante, é previsível que seja despertado um fascínio simplesmente pela presença desse componente, e a injeção direta permitindo que se recorra a uma proporção ar/combustível menos enriquecida diante do aquecimento aerodinâmico mais intenso das cargas de admissão mesmo com a presença de um intercooler realmente se revela favorável visando uma melhoria no consumo de combustível, tal qual se pode constatar observando que a massificação do turbo e da injeção direta foi crucial para os motores Diesel décadas atrás. Ainda assim, para uma parcela mais austera do público, soa excessivamente inconveniente lidar com algumas peculiaridades como o maior rigor em alguns aspectos da manutenção preventiva como a observância das especificações do óleo lubrificante para assegurar uma durabilidade do motor e mais especificamente do turbocompressor que é um componente caro e particularmente sensível devido à exposição direta às altas temperaturas dos gases de escape e ao risco de formação de borra de óleo nos mancais do eixo principal que conecta a turbina e o compressor.
Também é importante lembrar que, embora a ignição por faísca ainda proporcione uma certa facilidade para controlar os índices de emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) somente pelo enriquecimento da proporção ar/combustível, com a injeção direta a formação de material particulado também se torna um ponto a considerar no tocante ao pós-tratamento dos gases de escape, e portanto tem marcado presença nos motores mais recentes desenvolvidos de acordo com preceitos do downsizing um filtro de material particulado, análogo ao DPF já amplamente usado nos motores turbodiesel modernos. Se para alguns perfis de operação ao menos teoricamente especializados como num carro esportivo pode parecer mais fácil assimilar alguns graus de complexidade técnica, em contraste com a forma que motores de ignição por faísca mais modestos e eventualmente referenciados como "à prova de burro" se contrapõem a uma percepção de maior complexidade técnica que acabava até mesmo afastando uma parte expressiva do público tradicional dos motores Diesel que o viam essencialmente como uma ferramenta de trabalho, já é questionável uma atribuição de vantagens absolutas ao downsizing sem avaliar as condições de uso. Enfim, apesar de ter sido até apontado em alguns momentos como um eventual pretexto para minimizar a importância que uma liberação do uso de motores Diesel em veículos leves poderia ter, o downsizing aplicado a motores de ignição por faísca pode ser menos coerente nesse sentido do que se alega.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Caso para reflexão: Hyundai Staria

Com uma aparência de espaçonave dos Jetsons, que acaba desviando consideravelmente da aparência mais austera de outros utilitários comerciais que se levam a sério, a linha de vans Hyundai Staria chama a atenção facilmente, podendo até induzir ao erro de crer que se trate de algum projeto mirabolante para um modelo de propulsão elétrica. Contando com as opções pelo motor turbodiesel de 2.2L e 4 cilindros que é o único oferecido no Paraguai, ou um V6 de 3.5L a gasolina também disponibilizado em versão a gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") em algumas regiões, e opção de câmbio manual de 6 marchas para o turbodiesel em alguns países ou o automático de 8 marchas disponível para ambos os motores, até pode levar a crer que esteja mais voltado a um uso essencialmente recreativo/turístico que como um utilitário de trabalho, além do mais que compartilha de uma mesma arquitetura com SUVs de proposta essencialmente generalista. E a bem da verdade, convém salientar que uma carroceria tipo van pode ser até mais conveniente em contraste com a moda de SUV que tem tomado conta dos principais mercados automobilísticos, embora alguns países fronteiriços com o Brasil preservem uma cultura mais receptiva a furgões como veículo particular a exemplo da Argentina e até do Paraguai.

Assim como a moda de SUV foi impulsionada à medida que a categoria passou a ter participação mais expressiva dos modelos tipo crossover, que se aproximavam tecnicamente mais de carros compactos ao invés de preservar características técnicas "de caminhão", o mesmo pode ser dito da Hyundai Staria que até apresenta suspensão independente nas 4 rodas mesmo nas versões de tração somente dianteira, além de oferecer a opção de tração 4X4 para versões de passageiros mais luxuosas em alguns países. Apesar do brasileiro médio se empolgar mais facilmente por um SUV ou por uma pick-up que por um furgão, e portanto um eventual posicionamento de mercado para vans de luxo no Brasil pareça muito mais difícil de justificar para fabricantes generalistas, o simples fato de já haver em países vizinhos uma opção pelo câmbio automático em modelos que em função do peso bruto total abaixo de 3500kg e capacidade para até 9 assentos podem ser conduzidos por detentores de CNH categoria B é algo a ser levado em conta, e mesmo em aplicações utilitárias efetivamente profissionais pode ser mais adequada. Assim como hoje o uso de motor transversal já está bastante desmistificado em utilitários com tração dianteira efetivamente destinados ao trabalho, e até mesmo em alguns modelos 4X4 mais voltados ao off-road recreativo, nada parece caracterizar um impedimento de ordem estritamente técnica para furgões mais sofisticados terem uma presença de mercado que abrangesse também o Brasil, além do mais considerando como pick-ups e SUVs emergeram de uma condição de mera ferramenta de trabalho um tanto desprestigiada aos olhos do público urbano para serem alçados a sonho de consumo da classe média.

Tendo em vista até o fato da única motorização a gasolina oferecida na linha Hyundai Staria ser V6 com injeção sequencial, embora seja mais fácil de adaptar para combustíveis gasosos que motores turbo com injeção direta e até 4 cilindros cada vez mais comuns em outras categorias de veículos menos voltadas a um uso comercial, outro ponto a se destacar é como um motor turbodiesel com "só" 4 cilindros já pode se manter confortavelmente junto a outro que seria tratado como inerentemente mais prestigioso apenas com base na quantidade de cilindros. E mesmo considerando diferentes especificações de controle de emissões em cada região, com o Paraguai sendo bem menos exigente que a Europa ou a própria Coréia do Sul onde o modelo é fabricado, e portanto alguns dispositivos como filtro de material particulado (DPF) e SCR possam ser dispensados, o simples fato do câmbio manual permanecer disponível em algumas versões turbodiesel mais austeras a depender de cada mercado é outro fator que leva a crer que a versatilidade desse tipo de motorização ainda tem um lugar assegurado. Enfim, mesmo que à primeira vista parecesse não ter nada a ver com necessidades e/ou preferências de qualquer segmento do público brasileiro, a Hyundai Staria fomenta algumas reflexões bastante pertinentes.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

5 bons motivos práticos sob uma perspectiva generalista para justificar um eventual retorno de motores Diesel 2-tempos

Uma abordagem que já chegou a ser testada no Brasil pela General Motors, quando era a detentora da marca Detroit Diesel e produziu alguns motores da série 53 para equipar caminhões como o D60, mas a linha de pick-ups tenha seguido uma abordagem mais conservadora somente com motores 4-tempos em modelos como a D10 equipada com um motor Perkins Diesel, convém lembrar como os motores Diesel 2-tempos ainda tenham eventualmente alguns méritos. Atualmente mais restrito à propulsão naval e a outras aplicações extremamente pesadas, mas ainda tendo como grandes vantagens a eficiência geral e a potência específica, é natural que seja reacendido um interesse pelo ciclo Diesel 2-tempos também para veículos mais leves. Ao menos 5 fatores podem ser elencados entre possíveis facilidades para ressurgir um interesse por motores Diesel 2-tempos no segmento veicular:

1 - melhoria das especificações do combustível: tomando por referência os motores Turner L40 de 2 cilindros e L60 de 3 cilindros que chegaram até a ser oferecidos em kits para adaptação nos Land Rover Series I, cujas faixas de rotação de potência máxima e até de corte chegavam antes da potência máxima do primeiro motor Diesel 4-tempos oferecido regularmente em um Land Rover. Considerando também a maior rapidez inerente ao processo de combustão em um motor Diesel 2-tempos, principalmente com a injeção direta que já era usada nos Turner L40 e L60 com as câmaras de combustão nos cabeçotes que às vezes podem ser confundidas com as pré-câmaras de um motor de injeção indireta, as especificações do óleo diesel convencional e mais especificamente a propagação de chama nas câmaras de combustão mensurada através do índice de cetano proporcionariam condições mais favoráveis a um retorno desse ciclo termodiâmico a motores de produção em série para aplicações veiculares;

2 - evolução dos sistemas de combustível: tomando como referência novamente a Land Rover, apesar de tratar-se de um modelo que foi oferecido sempre com motores 4-tempos quando já soava improvável sugerir que um motor Diesel 2-tempos tivesse vantagens, o Defender passou por diferentes estágios de evolução dos sistemas de combustível, abrangendo desde a injeção indireta até sistemas common-rail, passando pela injeção direta mecanicamente governada até mesmo com injetores de duplo estágio, além do sistema de injeção unitária no motor Td5 que o Defender nunca chegou a usar no Brasil. Da mesma forma como uma maior precisão no controle da injeção permitiu tanto incrementos na economia quanto uma redução nas emissões de material particulado, problema que era especialmente crítico na época áurea dos motores Diesel 2-tempos em utilitários consideravelmente mais pesados que um Land Rover, é de se esperar que os mesmos benefícios também possam ser alcançados com uma incorporação dos mesmos aperfeiçoamentos aos sistemas de injeção que venham a ser destinados a um eventual motor Diesel 2-tempos novo;
3 - menos partes móveis: considerando especialmente motores com loop-scavenging, que só usam janelas para admissão e escape sem depender de válvulas, já é uma vantagem. Apesar de motores Diesel 2-tempos usarem sempre um compressor mecânico para gerar pressão de admissão, cujo acionamento pode ser feito tanto por engrenagens quanto por correia ou corrente do mesmo modo que aconteceria com o(s) eixo(s) de comando de válvulas em um motor 4-tempos, a ausência de todo o mecanismo para acionamento das válvulas acaba compensando. Embora alguns dentre os motores Diesel 2-tempos mais famosos no uso veicular tivessem válvulas de escapamento, de forma que a imprescindível presença do compressor aparentemente anule essa vantagem, também cabe considerar que sempre geram potência em ambos os cursos descendentes, de modo que um motor com a metade da quantidade de cilindros e portanto menos pistões, bielas e válvulas já seria suficiente para determinadas aplicações;

4 - simplificação do controle de emissões: agora que até uma pick-up média como a Ford Ranger faz uso do SCR além do EGR para diminuir as emissões de óxidos de nitrogênio (NOx), é pertinente frisar que esses compostos costumam ter uma formação menos intensa em motores Diesel 2-tempos, em que pese a idéia de emitirem invariavelmente uma proporção maior de material particulado em parte porque foram privados de algumas das evoluções no tocante a sistemas de combustível observadas em motores 4-tempos como os usados nas caminhonetes modernas. Considerando uma eventual variabilidade que possa ser aplicada à velocidade de um compressor mecânico em proporção ao virabrequim de um motor Diesel 2-tempos a depender do tipo de acoplamento que se use, também é possível proporcionar efeito análogo ao EGR sem tanta complicação adicional nem apresentar problemas com acúmulo de detritos carbonizados na admissão;

5 - melhor aproveitamento de cilindradas mais limitadas: um caso que logo vem à mente é o motor DV6 de 1.6L muito usado em diversos veículos Peugeot e Citroën, também conhecido como DLD-416 quando usado pela Ford que manteve uma colaboração com a antiga PSA (atual Stellantis) no projeto de motores turbodiesel. Considerando como uma incidência de impostos mais alta sobre motores Diesel com cilindrada acima de 1.6L em carros na União Européia fomentou essa faixa de cilindrada até em utilitários como o Citroën Jumpy, que mesmo também tendo a opção pelo DW10 de 2.0L em alguns países chegou ao Brasil inicialmente com o DV6 e mais recentemente o DV5 de 1.5L sendo oferecido sempre um único motor no país, num primeiro momento pode parecer excessivamente restritiva essa política européia que acaba replicada em outros mercados. Embora a própria evolução do turbo nas últimas décadas já tenha favorecido motores 4-tempos como os DV6 e DV5 por exemplo, é inegável que o fato de um motor 2-tempos gerar potência a cada rotação ao invés de cada duas rotações já seria um bom argumento para esse aproveitamento de um motor originalmente destinado a carros menores em uma caminhonete ou furgão.