sábado, 27 de junho de 2015

Rebatendo mais um discurso anti-Diesel do Fernando Calmon

Já não é de hoje que o jornalista Fernando Calmon, atuante no segmento automotivo desde 1967, se mostra radicalmente contrário a uma eventual liberação do Diesel em veículos leves no mercado brasileiro. Usando as alegações mais diversas que vão desde o custo inicial superior até as polêmicas em torno do impacto ambiental, passando pela questão do déficit na produção de óleo diesel para atender às necessidades do transporte pesado e aplicações estacionárias/industriais, agrícolas e náuticas, é uma das vozes que infelizmente perpetuam conceitos que se mostram cada vez mais distantes da profunda evolução tecnológica que atingiu os motores Diesel nas últimas duas décadas. Na edição do dia 23 de junho de 2015 da coluna Alta Roda, não foi diferente.

A questão da poluição é sempre muito controversa, indo além do dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico") e passando também pelos óxidos de nitrogênio e pelo material particulado, sendo os dois últimos o calcanhar-de-Aquiles do Diesel. Com relação ao primeiro composto, o único recurso para que veículos com motor de ignição por faísca se equiparem a um Diesel similar tem sido o uso de um sistema híbrido com tração suplementar elétrica, envolto em questionamentos acerca da composição química de uma bateria tracionária, saldo energético de todos os processos logísticos e industriais necessários e eventuais danos ambientais associados a um descarte inadequado da mesma. O custo inicial de um híbrido chega a ser até mais elevado que o de um Diesel, tornando portanto inconsistente um dos principais argumentos de Calmon.

Os óxidos de nitrogênio são um grande desafio devido à formação associada às altas temperaturas atingidas pelo ar ao ser comprimido dentro da câmara de combustão e da proporção estequiométrica ar/combustível pobre, mas motores de ignição por faísca também padecem desse mal quando dotados de um mapeamento "lean burn" e/ou de injeção direta, tanto que alguns já contam com injeção dupla direta e indireta para que a temperatura da carga de ar da admissão seja reduzida mediante a vaporização de uma pequena porção do combustível em uso, truque que infelizmente não funciona com o óleo diesel convencional e outros combustíveis pesados. Já o material particulado, a infame fuligem em suspensão na fumaça preta visível constantemente associada ao Diesel no imaginário popular e frequentemente apontado como cancerígeno, é cada vez menos frequente devido à maior precisão em sistemas de injeção modernos, e também sofre influência significativa da qualidade do combustível, principalmente o índice de cetano (usado para quantificar a propagação da chama na câmara de combustão). De fato, a qualidade dos insumos disponíveis no mercado brasileiro deixa a desejar, mas condenar um bom motor pela incompetência que se instalou na Petrobras é muita mediocridade.

Cabe salientar que o ciclo Diesel é uma excelente plataforma para experimentos com combustíveis alternativos sem alterações significativas no desempenho do veículo, não só o biodiesel criticado por Calmon devido à predominância da soja como matéria-prima no Brasil (e nesse ponto eu não tiro a razão dele) mas também o etanol defendido com entusiasmo pelo veterano jornalista. Porém, seria de se esperar que reconhecesse os méritos do Diesel no tocante à eficiência térmica superior à ignição por faísca, principalmente ao lembrarmos que ele é formado em Engenharia. Outros pontos constantemente destacados são a consolidação do downsizing e a presença cada vez mais maciça do turbocompressor e da injeção direta nos motores de ciclo Otto modernos, recursos que já são lugar-comum nos motores Diesel para aplicações automotivas nos mercados mais exigentes. Na prática, a única grande vantagem da ignição por faísca é a adaptabilidade ao uso de combustíveis gasosos sem a necessidade da injeção-piloto de algum combustível líquido.

Calmon toma por referência França e Bélgica, países com grande participação do Diesel nos respectivos mercados automotivos e que recentemente passaram a impor algumas restrições, mas tal situação está longe de ser um bom exemplo, principalmente ao lembrarmos que muitos motores Diesel mais antigos apresentam boa adaptabilidade até mesmo ao uso de óleos vegetais brutos como combustível sem a necessidade de processos químicos dispendiosos nem o grande consumo de energia requerido pelo fracionamento do petróleo. Além de se desperdiçar uma grande oportunidade para agregar valor à produção agropastoril/agroindustrial com um fomento ao biodiesel e outros substitutivos ao óleo diesel convencional, que viria a calhar num país fortemente dependente do agribusiness como é o Brasil, comete-se um grande erro estratégico ao negligenciar as vantagens num contexto de segurança nacional e auto-suficiência energética.

Por mais que a produtividade das lavouras de cana-de-açúcar tenha vivenciado um salto desde o início do ProÁlcool, valer-se de uma monocultura como principal matéria-prima para o principal biocombustível disponível regularmente no mercado é uma estratégia muito arriscada diante de oscilações nos custos de outras commodities, como é o caso do açúcar com relação ao etanol. Já com o biodiesel, por outro lado, muitas matérias-primas hoje subestimadas pelo setor agroenergético como o pequi (pequeno fruto nativo do Cerrado) e o coco (principal matéria-prima do biodiesel nas Filipinas e usado há mais de 2000 anos para produção de açúcar na Indonésia) podem atender tanto a um quanto ao outro sem grandes prejuízos até mesmo ao aproveitar resíduos da extração dos óleos vegetais caso o etanol celulósico venha a ser efetivamente levado a sério pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, e pode também proporcionar uma destinação adequada para grandes quantidades de gordura corporal proveniente do abate de animais para produção de carne.

Caso o etanol fosse menos dependente da cana-de-açúcar e o gás natural tivesse uma distribuição mais adequada não apenas em grandes centros mas também em zonas rurais, eventualmente complementado por biometano que pode ter a produção mais regionalizada, talvez uma maior refração ao Diesel pudesse soar menos relevante para alguns mas, como isso não ocorre, é um enorme contra-senso insistir em restrições ao uso de um tipo de motor que apresenta a maior adaptabilidade a uma infinidade de combustíveis alternativos adequados às diferentes realidades regionais brasileiras.

domingo, 14 de junho de 2015

EGR: teria alguns aspectos positivos?

Um dos sistemas adotados nas mais recentes gerações de motores Diesel que ainda suscita algumas polêmicas, o EGR (Exhaust Gas Recirculation - recirculação de gases de escape) tem como função principal o controle das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) através do redirecionamento de parte do fluxo de gases pós-combustão de volta à admissão. No entanto, é comum apontar um ligeiro aumento no consumo de combustível quando o motor é equipado com esse dispositivo, além do acúmulo de sedimentos no coletor de admissão e, em casos mais extremos, até nas palhetas da carcaça quente do turbo, quando material particulado em suspensão no fluxo redirecionado pelo EGR aderem a vapores de óleo provenientes da ventilação positiva do cárter (PCV - Positive Crankcase Ventilation). Para evitar tais problemas, muitos usuários optam por desabilitar, bloquear por meio de juntas cegas, ou até remover fisicamente a válvula e o cooler do EGR.

Outro ponto polêmico refere-se a efeitos sobre a adaptabilidade a combustíveis alternativos e a resiliência frente a variações na qualidade do óleo diesel convencional. Como o EGR reduz o calor total liberado nos processos de combustão, uma queima incompleta da glicerina ao usar óleos vegetais brutos como combustível é mais crítica não só pela polimerização mas também pela possível formação de acroleínas, um composto alegadamente cancerígeno. Não se pode esquecer dos teores de enxofre no óleo diesel convencional e outros combustíveis pesados derivados do petróleo como o querosene iluminante, querosenes de aviação e óleos combustíveis industriais ("óleo para caldeira") a serem usados como último recurso facilmente disponível, principalmente para fins militares, pois levam a um aumento na formação de compostos sulfúricos corrosivos e danosos ao motor, tanto que o EGR é incomum em frotas operacionais militares embora possa ser visto em viaturas logísticas e administrativas. Ainda, quanto maior o teor de enxofre no óleo diesel, a propagação de chama na câmara de combustão (aferida pelo índice de cetano) tende a ficar mais lenta, levando a uma combustão incompleta, menos eficiente e com maior formação de material particulado (fuligem em suspensão na fumaça preta visível), sobretudo nas atuais gerações de motores turbodiesel de alta rotação e injeção direta.

Não se pode esquecer que um incremento nas emissões de material particulado provoca uma saturação mais intensa do DPF, filtro de material particulado (Diesel Particulate Filter - "filtro de partículas"), e mais ciclos de "regeneração" se fazem necessários para reduzir as obstruções ocorridas no filtro, e tal processo necessita de calor. Assim, a presença do EGR pode ser apontada como um empecilho. A grosso modo, a redução dos particulados é comparável à queima do carvão numa churrasqueira, e respectiva redução a cinzas. Com o motor operando a faixas de giro constantes por períodos prolongados, condição não por acaso apontada como ideal para extrair a máxima eficiência de um motor Diesel e no uso veicular ocorre sobretudo no tráfego rodoviário, normalmente a temperatura dos gases de escape (EGT - Exhaust Gas Temperature) é suficiente para induzir a "regeneração", mas em operações intermitentes como as do tráfego urbano e trajetos curtos conhecidos como "ciclo da dona-de-casa" pode ser necessária a pós-injeção junto aos gases de escape para que o calor residual neles contido seja complementado por uma pós-combustão e assim a fuligem sofra a devida redução. Muitos motores dependem da pós-injeção nos cilindros por não virem com um bico injetor dedicado à "regeneração" na carcaça do DPF, que propicia uma vaporização mais intensa do combustível e tolerância a teores mais altos de biodiesel. Ao contrário de motores sem DPF que podem funcionar até com biodiesel puro (B100), a maioria absoluta dos motores dotados do dispositivo não tem ultrapassado 20% de mistura com biodiesel (B20) para não acarretar problemas ao mesmo.

No entanto, há de se considerar alguns aspectos benéficos que o EGR apresenta, mais notadamente no gerenciamento térmico: com os gases de escape recirculados passando por um cooler conectado ao sistema de refrigeração do motor antes de retornarem à admissão, uma grande quantidade de calor é retida, o que é particularmente útil nos primeiros momentos após uma partida a frio para promover uma rápida estabilização da marcha-lenta, e os gases readmitidos ainda conservam algum calor vestigial mesmo após o resfriamento, ficando portanto menos densos e mais facilmente compressíveis, reduzindo a compressão dinâmica e por conseguinte as "perdas por bombeamento" decorrentes do tempo de compressão, facilitando o aumento das rotações até que seja atingida a marcha-lenta para qual o motor esteja ajustado. Também é conveniente salientar que a carga imposta ao sistema elétrico torna-se menos severa, mesmo que não se recorra a complexos mecanismos descompressores como auxiliares de partida para aliviar o esforço do motor-de-arranque, e reduzir a demanda sobre dispositivos como as velas pré-aquecedoras montadas diretamente no cabeçote em cada cilindro (glowplugs) ou algum elemento aquecedor único montado no coletor de admissão (grid-heater) que eventualmente permaneçam momentaneamente em uso após a partida de modo a preservar a durabilidade de tais componentes.

Se por um lado a reinserção de gases inertes é usada para reduzir a quantidade total de calor liberada durante a combustão, por outro a retenção de uma parte do calor mostra-se favorável à eficiência geral do motor, ainda que possa receber aprimoramentos. Tendo em vista toda a revolução que atingiu os motores Diesel nos últimos 15 anos em mercados mais desenvolvidos onde o uso em veículos leves é liberado, deixando para trás algumas soluções técnicas hoje apontadas como "arcaicas" para atingir elevados padrões de sofisticação tecnológica e sobressair como uma das respostas mais coerentes e de fácil implementação para atender à demanda por um incremento na eficiência energética das frotas automotivas, náuticas de trabalho leve e de lazer, e ganhando aceitação até mesmo em aplicações aeronáuticas, não há dúvidas de que muito ainda está por vir e, apesar de sofrer alguma resistência inicial, eventualmente ter aspectos favoráveis que não devem ser subestimados.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Uma reflexão sobre os japoneses e o Diesel

Um país considerado como uma referência no desenvolvimento tecnológico, o Japão teve nos motores Diesel um importante aliado para a reconstrução do pós-guerra. Caminhões, ônibus e maquinário de construção pesada valiam-se da eficiência superior em comparação aos motores de ignição por faísca, além de embarcações pesqueiras e equipamentos agrícolas para fortalecer a segurança alimentar, e posteriormente começavam a ganhar espaço em aplicações automotivas leves não apenas para fins comerciais mas também em veículos particulares.

Ainda hoje, veículos leves de fabricantes japoneses equipados com motor Diesel ocupam posição de destaque em mercados internacionais, não apenas entre os 0km mas também importados já usados do Japão como é o caso da Toyota HiAce Regius da foto acima e do Toyota Land Cruiser Prado abaixo, ambos equipados com o motor Toyota 3L de 2.8L que foi usado na Hilux de 5ª geração até o facelift de 2000, embora o Diesel não goze mais do mesmo prestígio no mercado doméstico (JDM - Japanese Domestic Market) que tem dado preferência à ignição por faísca combinada a combustíveis gasosos (mais notadamente o gás liquefeito de petróleo - GLP ou "gás de cozinha" - e mais recentemente o gás natural já estabelecido no mercado brasileiro) principalmente em veículos comerciais ou nos híbridos movidos a gasolina com assistência elétrica.

Se por um lado o gás natural é uma opção relativamente segura, e proporcionaria uma transição fácil para o biogás/biometano, por outro tem limitações em função do volume que ocupa e do acréscimo de peso, fatores que proporcionam uma redução na capacidade de carga do veículo, e devem ser analisados com o devido critério antes de definir qual é a melhor alternativa para uma determinada aplicação. Já o gás liquefeito de petróleo, além da origem fóssil, não é tão seguro quanto os japoneses acreditam. No que tange aos híbridos, a composição química das baterias torna-se um contratempo devido à complexidade dos processos de descarte seguro e reciclagem. Portanto, fica evidente que as principais opções que vem sendo disponibilizadas ao consumidor japonês que deseje um automóvel mais eficiente estão longe de ser aquela 8ª maravilha...

A geografia japonesa, com alguma escassez de recursos naturais, já seria um pretexto mais do que suficiente para que a eficiência e a confiabilidade do Diesel prevalecessem diante de percepções equivocadas no tocante às emissões poluentes. Nem mesmo o comprometimento da maior parte da terra agricultável japonesa dedicada à produção de gêneros alimentícios deveria ser encarado como um empecilho ao desenvolvimento de biocombustíveis para substituir o óleo diesel convencional tido como "sujo", quando lembramos que a principal fonte de proteína animal consumida no Japão são os pescados: no caso de peixes brancos, como o linguado e a merluza, a maior parte da gordura corporal está concentrada no fígado, o que facilita a extração para ser aproveitado como matéria-prima na produção de biodiesel. Não se pode esquecer, também, da possibilidade de desenvolver o cultivo de algas oleaginosas em algumas porções do mar territorial japonês, podendo ser integrada à criação de peixes em tanques-rede. E para quem gosta de McFish sakaná-furai, tonkatsu, chicken-katsu, karaage ou pastel harumaki, também é possível usar o óleo de fritura saturado diretamente como combustível num Corolla velho como esse XLD de 6ª geração equipado com o motor 1C de 1.8L e injeção indireta que eu vi ano passado no Uruguai...

Em que pesem as diferenças entre os consumidores de diferentes raças e nacionalidades, a maior responsabilidade pelo decréscimo na participação de motores Diesel no mercado japonês a partir de fins da década de 80 até 2004 deveu-se principalmente à estratégia dos fabricantes que, ao invés de modernizar a oferta, mantiveram uma linha desatualizada que só interessava àquela parcela mais tradicional e apegada ao caráter essencialmente utilitário mas dificilmente atrairia um público cada vez mais exigente não apenas no tocante à economia de combustível mas também no desempenho. E se por um lado o europeu estava mais disposto a pagar por um motor turbodiesel com injeção direta do tipo common-rail em nome de um desempenho mais vigoroso, entre os japoneses ainda prevalecia um interesse em economizar não só no consumo e manutenção mas também no custo inicial, favorecendo a permanência da vetusta injeção indireta em veículos leves ao invés de arriscar um investimento elevado na modernização da oferta de motores Diesel para atender a um market-share que já vinha sofrendo um profundo declínio.

Exemplificando esse contexto de estagnação tecnológica, o último motor Diesel usado no Corolla japonês até 2004 para o mercado interno e até 2013 para exportação foi o vetusto 2C de 2.0L naturalmente aspirado e com injeção indireta. Embora tida pelo público em geral como antiquada, ainda apresentava vantagens que hoje são pouco reconhecidas em mercados desenvolvidos, entre as quais a maior resiliência diante de variações na qualidade do combustível, um funcionamento suave e relativamente silencioso, e ainda um processo de combustão mais completo apto a proporcionar uma menor emissão de material particulado, e também menos resíduos resultantes da polimerização da glicerina ao usar óleos vegetais e gorduras animais como combustível alternativo. Por mais que a injeção direta e o turbocompressor de geometria variável hoje onipresentes em motores Diesel veiculares destinados ao mercado europeu, o velho 2C ainda seria adequado às condições japonesas.

Ainda que a Mazda tenha nadado contra a correnteza com os motores SkyActiv-D que fizeram ressurgir algum interesse pelo Diesel junto ao público japonês, o cenário mostra-se difícil de entender. Considerando ainda a grande dependência do Japão em fontes de energia importadas, como o gás natural liquefeito importado da Malásia e o petróleo cujo preço acompanha a volatilidade do cenário geopolítico das principais regiões produtoras, é incoerente que o Diesel não tenha mais reconhecidas as vantagens no tocante à adaptabilidade a combustíveis alternativos de origem renovável que oferecem um bom potencial para fortalecer a segurança energética japonesa. Será que os japas estão esperando um ataque do Estado Islâmico para abrir os olhos?