sábado, 9 de dezembro de 2017

Uma reflexão sobre o biogás e as deficiências do saneamento básico no Brasil

A pauta de hoje foi levantada em um comentário feito por Eduardo Eberhardt Campos em um post sobre a eventual aplicabilidade do biodiesel para promover uma solubilização entre o etanol e o óleo diesel convencional:

"No Brasil imperam os interesses de politiqueiros pilantras, porque se critérios técnicos fossem considerados até o biogás seria usado. Em um país onde o tratamento do esgoto cloacal é mínimo e a destinação do lixo doméstico em muitos lugares é feita equivocadamente, o uso do biogás como combustível poderia servir como estímulo a investimentos na área de saneamento."


A menção ao biogás foi até bastante pertinente, tanto no tocante à oportunidade de melhorar o serviço de saneamento básico quanto do aproveitamento de uma fonte de energia renovável que não deixa de ser eventualmente mais competitiva que o etanol. Considerando o caso de caminhões auto-vácuo, ou "limpa-fossa" como também são mais conhecidos, a proposta de se usar esgoto como matéria-prima para um biocombustível que possa ser produzido no destino final da carga transportada torna-se mais favorável em âmbito logístico, tanto ao se eliminar o custo e as emissões associadas ao transporte de um combustível produzido em outro local quanto o deslocamento do veículo para reabastecimento. Embora o biogás bruto não seja tão desejável como combustível veicular devido à presença de impurezas como alguns compostos de enxofre, vapor d'água e dióxido de carbono (CO² - o popular "gás carbônico"), purificá-lo para obtenção de biometano mais concentrado a patamares próximos do gás natural veicular comercializado regularmente nos postos de combustível ainda pode apresentar um custo competitivo. A possibilidade de usar sistemas de combustível para gás natural, já bastante difundidos no mercado, não deixa de ser outro ponto a favor do biometano.

Independentemente do biometano ser aplicado em conjunto ao óleo diesel convencional ou usado puro num motor de ignição por faísca, além de eventuais alterações no desempenho do veículo, cabe considerar a aplicabilidade de diferentes métodos de controle de emissões e uma eventual economia que eventualmente proporcionem nos processos de manutenção. O biometano, quando injetado no coletor de admissão, acaba sendo comparável ao de uma carga mais alta da recirculação de gases de escape (EGR - exhaust gas recirculation) em virtude de também reduzir a concentração de oxigênio disponível para o processo de combustão, apesar de ter um efeito diferente. Por ser combustível ao invés de um gás inerte, permite que uma quantidade menor de óleo diesel seja usada para desenvolver o mesmo desempenho, além de intensificar a propagação de chama (flame spread) nas câmaras de combustão e assim contribuir para uma menor formação de material particulado. Vale destacar, ainda, que o gás natural de origem fóssil permanece como a matéria-prima mais comum na síntese da uréia industrial usada para produção do fluido-padrão ARLA-32 (AdBlue/ARNOx-32/DEF) destinada ao controle das emissões de óxidos de nitrogênio em muitos motores turbodiesel veiculares modernos, e portanto o uso do biometano em complemento ao Diesel fica ainda mais justificável.

A complexidade da atual geração de dispositivos de controle de emissões aplicada aos motores Diesel também pode soar convidativa a uma maior participação do biometano aplicado isoladamente em motores de ignição por faísca. Sendo admitido no motor já em estado gasoso e portanto totalmente vaporizado, já faz com que a emissão de material particulado seja basicamente nula, e assim tornaria-se redundante um filtro de material particulado (DPF - Diesel Particulate Filter) e o processo de autolimpeza (também conhecido como "regeneração") desse dispositivo que pode se fazer necessário em alguns momentos inoportunos. A formação de depósitos de sedimentos carbonizados na carcaça da válvula EGR e no coletor de admissão passa a ser outro aspecto menos preocupante para os gestores de manutenção. Devido à maior resistência à pré-ignição do gás natural de origem fóssil e do biometano quando comparados ao etanol e à gasolina, ainda fica viável recorrer à injeção no coletor de admissão mesmo com uma mistura ar/combustível pobre, sem ter de aderir à injeção direta cuja aplicação a motores de ignição por faísca tem feito com que passassem a apresentar índices de emissões de NOx e até material particulado fino em proporções comparáveis às que são tratadas como um calcanhar-de-Aquiles dos motores Diesel...


É natural que, dependendo de quantos reservatórios de gás sejam usados, de qual capacidade e onde forem montados no veículo, acabe ocorrendo um comprometimento não só na carga máxima em peso mas também em volume. Se em utilitários leves tal situação às vezes não é considerada tão incômoda a uma parte considerável do público que viu no gás natural uma opção para conciliar um custo menor do combustível em comparação à gasolina e uma menor propensão a roubos e furtos, além de alguns estados enquadrarem veículos convertidos a gás natural numa alíquota menos abusiva de IPVA, em caminhões e ônibus ainda ocorre um temor quanto à desvalorização mais acentuada que possam sofrer. Também há de se considerar que muitos veículos comerciais, principalmente ônibus, ao terem a vida útil prolongada em aplicações especiais passam a operar em condições muito diferentes das quais foram inicialmente desenvolvidos para atender, e portanto fica muito mais difícil convencer os operadores a abrir mão da maior facilidade de encontrar o óleo diesel convencional, ao menos enquanto não for aproveitado o biogás/biometano como uma alternativa para contornar a disponibilidade limitada do gás natural em algumas regiões.

Não se pode negar que interesses obscuros de alguns elementos de índole duvidosa bastante ativos na política brasileira tem um peso maior que critérios técnicos na tomada de decisões, e naturalmente o biogás/biometano também é subestimado. Um exemplo bastante claro dessa situação foi a vergonha que o Lula fez o Brasil passar quando aceitou passivamente a expropriação sem qualquer tipo de compensação das instalações e equipamentos da Petrobras na Bolívia, tratada pelo ditador Evo Morales como parte de uma "nacionalização" dos hidrocarbonetos naquele paiseco dependente da exportação de cocaína, batedores de carteira e mão de obra escrava para oficinas de costura. Se o Brasil fosse um país sério e que se desse ao respeito, a primeira providência a ser tomada imediatamente após abrir a temporada de caça aos boliguayos seria instituir um programa de substituição do gás natural de origem fóssil importado da Bolívia pelo biogás/biometano, podendo ainda ter a produção integrada a uma ampliação das redes coletoras de esgoto tanto em algumas áreas urbanas onde essa estrutura permanece aquém do necessário quanto em periferias e zonas rurais onde é praticamente inexistente.

Considerando ainda o risco de contaminação dos lençóis freáticos com coliformes fecais e outros resíduos nas chamadas "fossas negras" simplesmente escavadas no solo sem nenhuma forma de impermeabilização, relativamente comuns até em áreas urbanas onde a fiscalização e a burocracia para aprovação de projetos arquitetônicos deveria prevenir tal situação, o aproveitamento do biogás passa a ter mais um bom argumento a favor para a substituição tanto das "fossas negras" irregulares quanto de fossas sépticas por biodigestores. Além de ser um combustível "carbono-neutro", também há de se levar em consideração que o biogás pode atender a aplicações estacionárias no próprio local onde for gerado numa quantidade menor, como por exemplo para uso em fogões e aquecedores de água. Ao substituir combustíveis fósseis como o gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha"), o biogás já elimina também as emissões que seriam associadas à extração e refino do petróleo e ao transporte até a unidade consumidora. No caso de instalações onde o potencial de geração do biogás seja maior, e portanto a purificação para que se obtenha biometano torne-se economicamente viável, uma integração à rede canalizada atualmente em uso para distribuição de gás natural seria o ideal. E a bem da verdade, considerando as novas possibilidades de negociar créditos de carbono diretamente com distribuidoras de combustíveis fósseis através do recentemente aprovado RenovaBio, é ainda mais justificável investir no biogás/biometano.

O turismo também pode ser beneficiado por uma integração entre saneamento básico e a produção do biogás, e uma situação que merece destaque é a condição imprópria para banho em algumas partes da orla marítima de Florianópolis tanto na ilha quanto no continente. Chega a ser surpreendente que uma cidade anunciada como a "capital turística do Mercosul" não tenha uma única praia de destaque na região central, e a porção continental da orla também seja pouco aproveitada para fins turísticos, e de fato a poluição desencoraja qualquer mergulho numa "praia do cagão" tanto pelo risco de contrair alguma doença quanto pelo mau cheiro. Sob o ponto de vista logístico, a presença de uma estação de tratamento de esgoto no Centro já seria de pressupor que o biogás poderia ser facilmente distribuído para pontos comerciais, residências e hotéis, contribuindo não só para o fechamento do ciclo do carbono mas também para reduzir a quantidade de caminhões para transporte de GLP em circulação.

Além do esgoto cloacal, também deve ser considerado o potencial de outros resíduos orgânicos como matéria-prima para o biogás. Um caso que merece destaque é o da usina de tratamento de biogás do aterro sanitário Dois Arcos, primeira a operar comercialmente com o biometano no Brasil. Embora já estivesse produzindo o combustível alternativo desde 2014, só esse ano recebeu a autorização da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) para comercialização do "gás natural renovável". De certa forma, não se pode desconsiderar que a burocracia e a dependência de autorização da ANP para venda do combustível podem desencorajar um investimento de porte semelhante, o que acaba favorecendo a estagnação do setor de energias renováveis e assim favorece a manutenção do monopólio da Petrobras onde tantos corruptos mamam confortavelmente nas tetas do governo enquanto o cidadão de bem fica refém do efeito das maracutaias sobre os preços da gasolina e do óleo diesel, já considerando o etanol carta fora do baralho na maioria dos estados.

É importante considerar também a importância que o biogás/biometano pode ter para agregar valor a resíduos agropecuários, capilarizar mais o acesso ao gás pelas regiões de interior onde o etanol já não é mais competitivo frente à gasolina, e promover uma destinação mais adequada ao esgoto e ao lixo doméstico que ainda sofrem com desgaste irregular em muitas localidades rurais que ainda contam com acesso deficiente inclusive a serviços essenciais como a coleta de lixo. Um projeto inspirador é o da usina de biometano instalada em Montenegro-RS pelo Consórcio Verde Brasil, formado pela cooperativa agrícola Ecocitrus e a empresa Naturovos, produzindo gás com concentração de 96% de metano, portanto com qualidade similar ao gás natural importado da Bolívia. O biometano gerado em Montenegro já é adquirido pela Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás), que também registrou a marca GNVerde. Nesses tempos em que até máquinas agrícolas passam a sofrer um controle mais rígido de emissões, e a disponibilidade do óleo diesel S10 (com 10ppm de enxofre) e do ARLA-32 permanece um empecilho para a renovação de frota no transporte rodoviário alcançar todos os rincões desse país, também não é de se duvidar que o biogás/biometano possa ser mais integrado com o biodiesel e o etanol ou até ser tratado como substitutivo para o óleo diesel convencional por alguns operadores.

Diante da caça às bruxas que se faz em torno do Diesel nos últimos anos, fica cada vez mais evidente que faz mais sentido buscar a integração de uma maior variedade de biocombustíveis ao invés do atual contexto de procurar um bode expiatório. Não se pode negligenciar outras fontes poluidoras, bem como ações que possam tanto mitigá-las quanto contribuir para uma renovação da matriz energética. Enfim, o biogás/biometano pode efetivamente tornar-se um pretexto não só para que se procure diminuir a defasagem na cobertura das redes coletoras de esgoto e na gestão de resíduos sólidos no Brasil, mas ao mesmo tempo diminuir a pressão sobre o óleo diesel convencional como principal combustível para o transporte de carga e passageiros.

10 comentários:

  1. Não imaginei que um simples comentário poderia gerar um post tão esclarecedor... Muito obrigado pela atenção.

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    1. Eu que agradeço pela colaboração, em trazer à tona esse tema tão pertinente.

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  2. Em uma cidade como Porto Alegre,por exemplo, a coleta de resíduos sólidos (feita pelo DMLU ) é transportada para aterros sanitários em outras cidades, a dezenas de quilômetros da origem, o que por si só já gera gastos com a logística, não se considerando que é preciso pagar ao outro município pelo uso do aterro... Também hâ de se considerar que o saneamento na capital do RS é municipalizado (DMAE). No outro lado há a Companhia Carris Porto-Alegrense, (empresa de transporte público em que a Prefeitura de PoA detém 99% das ações) e que vem registrando prejuízo há alguns anos, sendo uma das alegadas causas do prejuízo o preço extorsivo na aquisição do diesel. Em um país decente esses problemas se anulariam: a produção de biogás serviria de combustível para transporte urbano de passageiros, o lixo não precisaria "passear" de camimhão e os recursos gastos com essa logística poderiam ser aplicados em outras áreas, como escolas e postos de saúde, por exemplo. Como seria um combustível "quase gratuito" também poderia haver redução nas tarifas de ônibus. Quanto à sobrevida dos veículos, ônibus com motores diesel já vão sofrer uma "caça às bruxas" com a regulamentação da Inspeção Veicular, prevista para iniciar em 2019, aqueles que forem Euro I, Euro II e principalmente, Euro 0 serão impedidos de rodar. Da buRRocracia estatal brasileira pode se esperar de tudo...

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    1. A gestão dos aterros sanitários atualmente tende a ser feita por empresas privadas, que poderiam até ser mais motivadas para implementar o biometano como uma forma de incrementar a rentabilidade dessa operação. Também já vi caminhões de empresas privadas (contratadas pelo DMLU) para fazer a coleta do lixo. No caso do saneamento, por ser municipalizado, a princípio dependeria só da prefeitura mesmo, mas como a distribuição de gás canalizado é monopolizada por empresas estaduais (no nosso caso a Sulgás) talvez a ANP ainda pudesse causar problemas caso o gás fosse distribuído diretamente das estações de tratamento de esgoto até a Carris por um gasoduto municipalizado. Para não gerar conflitos com o monopólio da Sulgás, os veículos a serem movidos pelo biometano teriam que ser abastecidos nas próprias usinas.

      No caso da inspeção veicular, a princípio não vai poder tirar de circulação os modelos classificados em normas de emissões obsoletas, a não ser que apresentem índices de emissões acima dos limites especificados para os respectivos anos de fabricação.

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  3. Mas será que o biogás pode eventualmente até ameaçar a hegemonia do etanol entre os biocombustíveis para motores do ciclo Otto?

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  4. Faz sentido mesmo. Não sei como preferem deixar o pinicão da casan só empesteando a entrada da ilha sem ao menos aproveitar o biogás para algo de útil. Agora imagina, se já é um sufoco achar vaga para estacionar de carro no centro, o sufoco que é para manobrar um caminhão de gás, mas sem gás ninguém faz nada, ou se não depender de lenha (inviável num apartamento) ou de comida pronta para requentar no microondas

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  5. Até hoje eu só vi biogás em algumas fazendas, extraído do esterco de vaca e usado em fogões ou em aquecedores para galinheiros.

    Mas o que é aquilo onde o cachorrinho está em cima? E qual é a raça dele?

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    1. Aquilo onde a minha cadela estava em cima é uma âncora, e eu peguei ela a título de vira-lata mesmo.

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  6. Se ainda fosse fabricado caminhão a gasolina como tem nos Estados Unidos, seria bem mais fácil fazer isso.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
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