domingo, 12 de novembro de 2017

Reflexão: até que ponto as restrições ao Diesel em veículos leves realmente acarretaram em algum benefício à segurança energética do transporte comercial e do setor agropecuário?

Num país tão atrelado ao setor agropecuário para geração de riquezas, e dependente de forma excessiva do modal rodoviário para escoamento da produção, parecia muito simples proibir sem muitos critérios técnicos o uso do óleo diesel convencional em veículos leves sob a premissa de causar menos prejuízos à oferta do combustível para aplicações mais essenciais. No entanto, com o distanciamento daquele período histórico que culminou numa medida tão drástica, faz-se necessário ponderar sobre a real eficácia de tal medida. Diga-se de passagem, fazendo um contraponto com a experiência do etanol nos automóveis e utilitários leves, não teria sido mais justo vislumbrar também outras medidas menos comodistas que pudessem de fato fortalecer a segurança energética no campo e nas estradas?

De fato, a onipresença do Fusca e de outros Volkswagens seguindo a clássica concepção do motor traseiro boxer refrigerado a ar na década de '70 à época dos primeiros choques do petróleo, bem como o histórico desinteresse pelo Diesel por parte de fabricantes de origem americana também instalados no Brasil, poderiam levar a crer uma restrição ao uso do óleo diesel convencional norteada somente pelas capacidades de carga e passageiros ou tração soaria irrelevante para a população. Considerando ainda a predisposição para gambiarras que caracteriza o brasileiro médio até a atualidade, bem como a alegada facilidade em adequar os motores de ignição por faísca para operar com etanol, criavam-se as condições mais oportunas para criar expectativas em torno do ProÁlcool como a "salvação" diante das oscilações nas cotações da gasolina predominantemente importada. Chega a ser no mínimo curioso que o mercado automobilístico brasileiro pudesse ter se aberto mais ao Diesel ainda durante a década de '60, quando a Rural então produzida pela Willys-Overland chegou a ter como opcional o motor Perkins 4-203 em alternativa ao BF-161 movido a gasolina, além do mais quando recordamos que o mesmo motor já era usado em alguns tratores, o que poderia facilitar a logística de reposição de peças e obtenção de assistência técnica.

Apesar de que a injeção direta já se consolidava em aplicações pesadas em função de uma maior eficiência no uso do óleo diesel convencional a partir das década de '60 e '70, e o processo de combustão em motores dotados dessa configuração se tornasse menos favorável ao uso direto de óleos vegetais como combustível alternativo, a injeção indireta ainda se fazia presente nos veículos leves, como alguns (poucos) Mercedes-Benz importados, e em '81 surgia no Brasil a Kombi Diesel usando o motor destinado a versões do Passat produzidas exclusivamente para exportação a países onde o Diesel tinha uma maior aceitação em automóveis. Problemas de refrigeração e o despreparo da rede de assistência técnica autorizada fizeram com que a Kombi Diesel se tornasse malvista no mercado e saído de linha já em '85, e de certa forma contribuído para perpetuar a imagem do Diesel como complexo e de difícil manutenção, e assim a combinação do etanol de cana à ignição por faísca permanecia consolidada em detrimento das vantagens que os óleos vegetais poderiam agregar no tocante a uma diversificação das matérias-primas e facilidade em integrar aos cultivares mais adequados às condições de cada região, bem como um impacto menor sobre o uso de terras agricultáveis para a produção de gêneros alimentícios. A crise do ProÁlcool, que atingiu a proporção mais crítica na safra '89-'90, tornou impossível ignorar que a política energética brasileira havia se consolidado em um modelo inseguro e que vinha se tornando insustentável.

Se por um lado a Kombi Diesel não foi tão bem acolhida pelo mercado, por outro o sucesso das adaptações do motor 1.6D na Saveiro mediante um relaxamento nas exigências de capacidade de carga para pick-ups durante a década de '80 serviu para provar que havia alguma receptividade por uma parte do público brasileiro ao Diesel em veículos leves. O menor consumo de combustível em comparação à gasolina, ao contrário do que ocorria com o etanol, era ainda mais significativo numa época em que os postos fechavam aos fins de semana sob a premissa de um "racionamento". Cabe salientar também que, muito antes dos "cowboys de posto" passarem a sonhar com uma Hilux para desfilar no estacionamento do shopping mais próximo, a moda das cabines duplas artesanais já fomentava a desvirtuação no uso de veículos comerciais para fins particulares e pondo em xeque o objetivo de proporcionar uma certa regularidade no fornecimento de combustível para o transporte pesado e aplicações agropecuárias, e nesse sentido uma pick-up pequena como a Saveiro acarretava de fato num impacto menor sobre a demanda pelo óleo diesel.

Também seria justo refletir sobre a inércia do setor do transporte comercial diante da necessidade de minimizar a dependência pelo óleo diesel convencional. Mesmo o biodiesel, cuja aplicabilidade teria sido até mais fácil diante da simplicidade dos motores Diesel mais primitivos da época e podendo contar com gorduras animais descartadas do beneficiamento industrial de carnes como matéria-prima além dos óleos vegetais, sempre foi subestimado no Brasil. É conveniente trazer à discussão o caso do gás natural, cuja utilização no Brasil durante a década de '80 também estava reservada a veículos pesados, antes que em '91 fosse regulamentado o uso em táxis e frotas de serviço e finalmente fosse autorizado o uso em veículos particulares em '96. Por mais que o uso do gás natural em caminhões soasse pouco convidativo, sobretudo em função das longas distâncias e da imprevisibilidade das condições de algumas rotas, não deixa de ser um tanto surpreendente que a aplicação em ônibus urbanos e intermunicipais não tenha recebido grandes incentivos mesmo diante da facilidade para implementar em frotas destinadas a operações estritamente regionais e com retorno a pontos de apoio fixos onde poderiam contar com infra-estrutura para reabastecimento. Levando em consideração ainda o domínio da Mercedes-Benz no mercado de veículos pesados do país à época, e o fato de que o fabricante chegou a oferecer motores de ignição por faísca justamente com a proposta de fomentar o uso do etanol em caminhões e do gás natural em ônibus, chega a causar alguma surpresa que algumas das propostas tidas como "milagrosas" tanto no Brasil quanto no exterior fossem tratadas como uma mera curiosidade ou relegadas a uma quantidade de cenários operacionais menor do que a que pudesse ser realmente beneficiada.

Naturalmente, em algumas aplicações como viaturas militares fica difícil abrir mão de fatores como a adaptabilidade a combustíveis alternativos e eventualmente menores alterações de desempenho diante de alterações na qualidade do óleo diesel, querosene ou outros combustíveis pesados disponíveis num local conflagrado. Por sua vez, outras que também podem ser reputadas imprescindíveis, como a coleta de lixo, até oferecem pretextos para introduzir o uso de outros combustíveis de modo a reduzir a demanda pelo óleo diesel convencional. No caso específico da coleta de lixo, a exemplo do que já ocorre em algumas regiões dos Estados Unidos, chega a ser ainda mais coerente recorrer ao biogás/biometano devido ao deslocamento do veículo para efetuar a descarga em aterros sanitários, podendo já aproveitar para abastecer com o gás proveniente da decomposição da matéria orgânica depositado naqueles ambientes, cuja extração e eventuais processos de filtração e purificação para uso como combustível veicular podem ser efetuadas com o devido controle. Tendo em vista que o dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico") resultante da combustão tem uma meia-vida mais curta na atmosfera em comparação ao metano cru, recorrer a esse combustível proporciona uma efetiva contribuição para o fechamento do ciclo de carbono.

Vale destacar que o mesmo biogás/biometano pode ser obtido por outras fontes de matéria orgânica além do lixo doméstico, incluindo resíduos agropecuários e/ou de manejo florestal. Justamente pela importância do produtor rural para a economia brasileira, bem como a recente implementação de normas de emissões para máquinas agrícolas no país, o momento se revela oportuno para que essa alternativa seja avaliada com mais atenção tanto pelo poder público quanto por potenciais usuários. A relativa facilidade para instalar um biodigestor na propriedade rural, que além de viabilizar o uso de um combustível mais barato ainda produz fertilizante agrícola, parece ter um futuro promissor. Talvez pelas condições operacionais numa pequena propriedade, além da baixa velocidade que normalmente se aplica a tratores causar um arrasto aerodinâmico mais próximo do desprezível, até não seria de se estranhar que viessem a ser usados sistemas de baixa pressão com armazenamento do gás em bolsões de tecido emborrachado (ou simples sacos plásticos) montados sobre o teto como se usou na Europa durante a II Guerra com gás de carvão em veículos e posteriormente com biogás em menor escala na Alemanha, e na província chinesa de Sichuan chegou a ser usado com gás natural de origem fóssil ao menos até a década de '90, em função do custo menor que os cilindros de pressão mais elevada atualmente usados em tratores e empilhadeiras movidos a gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") e carros movidos a gás natural.





Por mais que a intenção de resguardar o suprimento de combustíveis para aplicações essenciais fosse louvável, e de fato os caminhões e ônibus movimentem a economia brasileira enquanto os tratores incrementam a produtividade agrícola e assim contribuem para fortalecer a segurança alimentar, uma simples restrição ao uso do Diesel em veículos leves deixou de contemplar outras medidas que talvez pudessem ser mais efetivas nesse sentido. Privar a liberdade que o cidadão de bem deveria ter acesso na hora de escolher um combustível para o veículo particular acabou se revelando menos eficaz na prevenção de um desvio do óleo diesel convencional para fins particulares. Enfim, talvez até por não ter incentivado a busca por uma diversificação da matriz energética do transporte comercial e do maquinário agrícola, essa medida teve uma contribuição aquém do esperado no âmbito da segurança energética.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html