sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Etanol ou biogás: qual representa uma concorrência mais pesada ao Diesel?

É impossível negar que a ignição por faísca ainda tem fãs incondicionais em diversos segmentos, não apenas em veículos terrestres mas também em equipamentos estacionários/industriais, embarcações, máquinas agrícolas e até mesmo aviões de pequeno porte, podendo-se atribuir grande parte do interesse de alguns operadores comerciais nas perspectivas de economia gerada pelo uso do gás natural, apontado como o mais viável substituto para o óleo diesel no transporte comercial. Não se pode esquecer, porém, que o etanol também encontra defensores entusiasmados por uma menor complexidade no manuseio por ser um combustível líquido, e portanto mais facilmente adaptável a uma infra-estrutura mais escassa.

No setor de transportes, os motores Diesel destinados a aplicações urbanas e rodoviárias estão cada vez mais refém de dispositivos de controle de emissões com um nível de sofisticação crescente e que acaba por trazer um impacto considerável tanto aos custos de aquisição quanto de manutenção da frota, e assim a percepção tanto do gás natural quanto do etanol como uma opção mais "limpa" ao óleo diesel convencional, e até mesmo ao biodiesel ou ao uso direto de óleos vegetais como combustível, leva a uma percepção dos mesmos como uma solução de fácil implementação e rápido retorno do investimento, não apenas em função da maior simplicidade no pós-tratamento de emissões mas também numa maior estabilidade dos preços de tais combustíveis em comparação a derivados de petróleo. Porém, antes de se tentar definir de forma arbitrária qual seria definitivamente o melhor, é importante observar atentamente algumas características mais específicas tanto do etanol quanto do gás natural...

O etanol já é largamente utilizado em veículos leves com motor de ignição por faísca em substituição à gasolina, e pode ser usado em motores de ignição por compressão (ciclo Diesel) e injeção direta sem a dependência de uma injeção-piloto de outro combustível para gerar a centelha, embora seja usual a mistura de um aditivo à base de nitrato de tetra-hidro furfurila (NTHF) especialmente formulado para aumentar o índice de cetano (indicativo da propagação da chama na câmara de combustão). Apesar da bem-sucedida experiência brasileira na aplicação em motores de ignição por faísca, o país que mais demonstrou interesse pelo etanol no transporte comercial pesado foi a Suécia, mas apostando na eficiência térmica superior inerente à ignição por compressão, tendo como exemplo mais notável os ônibus urbanos de Estocolmo.

Combustíveis gasosos começaram a chamar a atenção durante o período entre-guerras, em virtude do racionamento da gasolina para dar prioridade ao uso em viaturas militares, restando aos civis o uso do gás sintético proveniente do carvão mineral e disponibilizado regularmente em grande parte da Europa para fins majoritariamente estacionários que iam da iluminação pública ao aquecimento de ambientes internos, ou os "gasogênios" que eram instalados nos próprios veículos para gerar o gás combustível a bordo tanto pela queima de carvão quanto de materiais com algum teor de celulose (principalmente madeira). Como era um gás pobre, contendo muitas impurezas como monóxido de carbono (CO), o rendimento era baixo, e por ter também hidrogênio entre os principais componentes não poderia ser armazenado a grandes pressões em tanques metálicos, visto que o hidrogênio se dispersa pelas microfissuras na chapa de metal e o monóxido de carbono se degrada quando pressurizado. O gás natural veicular (GNV) também começou a despertar interesse nessa época, justamente pela viabilidade da compressão, ainda que ficasse inicialmente mais limitado à Itália e à Suécia.

O fim do racionamento e a crescente popularidade do Diesel em veículos europeus durante o pós-guerra levaram a um arrefecimento do entusiasmo por combustíveis gasosos em aplicações veiculares, que viria a retomar algum espaço na pauta de prioridades somente a partir do primeiro choque do petróleo em '73, mas a Alemanha ainda investia maciçamente no biogás produzido a partir da digestão anaeróbica de matéria orgânica, principalmente dejetos da criação de animais e resíduos agrícolas em geral de modo a firmar esse combustível como uma opção adequada a uma grande variedade de aplicações rurais, e hoje é líder no desenvolvimento de tecnologias para sistemas de produção e distribuição de biogás, que já é até vendido em alguns postos de combustíveis na Alemanha e na Suécia no lugar do gás natural de origem fóssil.

Além da experiência que os europeus já vinham desenvolvendo em torno da aplicação de combustíveis gasosos em motores estacionários/industriais desde o Século XIX, uma vantagem significativa diante do etanol era a menor dificuldade na partida a frio, tornando-os uma opção mais segura para a operação nos rigores do inverno no hemisfério norte. Lembremos que naquela época nem se falava no reservatório auxiliar de gasolina para partida a frio que viria a ser tão conhecido no Brasil a partir dos anos '70, tampouco em injeção direta para motores de ignição por faísca que só começaria a despertar algum interesse nos mercados desenvolvidos a partir dos anos '90 e que recentemente tem ganhado espaço em alguns motores "flex" a gasolina e etanol. Vale salientar também que o etanol apresenta uma maior corrosibilidade em comparação com a gasolina e os principais combustíveis gasosos disponíveis comercialmente hoje, tanto o gás natural e o biogás que são compostos principalmente de metano quanto o gás liquefeito de petróleo (GLP ou "gás de cozinha") que tem como componentes mais importantes o propano e o butano.

Embora o etanol hoje seja muito aclamado pela "sustentabilidade", e conte com generosos subsídios nos Estados Unidos e na Suécia, o biogás não fica atrás nesse quesito. Pelo contrário: enquanto o etanol depende mais de matérias-primas com alto teor de açúcares ou amido (predominando cana de açúcar, beterraba açucareira, milho, sorgo, bagaço de uva), ou de celulose (por exemplo lascas de madeira, palha, bagaço de cana e cascas de frutas e legumes) no caso do chamado "etanol de 2ª geração", o biogás pode ser obtido a partir desses e de qualquer outro material orgânico, desde lixo doméstico e esgoto até restos de abate e processamento industrial de carnes (sangue, penas de aves, peles e vísceras de baixo valor comercial) e também a vinhaça da produção de etanol. Assim, qualquer impacto do biogás sobre a disponibilidade de terras agricultáveis para o cultivo de gêneros alimentícios é muito inferior ao do etanol.

Até alguns players tradicionais no mercado internacional do petróleo, como a Venezuela e Abu Dhabi, já dão passos em direção ao biogás. A cota mínima de 50% do mercado de veículos 0km para modelos aptos a rodar com gasolina e gás natural imposta pelo então ditador venezuelano Hugo Chávez em abril de 2009 tinha como principal argumento liberar mais gasolina e óleo diesel para exportar a preço de mercado ao invés de vender dentro da própria Venezuela a preços fortemente subsidiados de modo a equilibrar as delicadas contas da estatal petrolífera PDVSA, valendo-se ainda do menor custo operacional no downstream do gás natural (que por já ocorrer naturalmente na fase gasosa em que é utilizado não depende do refino como os derivados de petróleo) e de perspectivas para incorporar também o biogás na rede de distribuição. Já em Abu Dhabi, onde veículos movidos a gás liquefeito de petróleo não chegam a ser incomuns em serviços urbanos, passou a ser dada maior ênfase ao gás natural nas frotas de algumas repartições públicas e ao mesmo tempo vem sendo desenvolvido um programa de recuperação e tratamento do biogás proveniente da principal estação de tratamento de esgoto do emirado visando o uso como combustível automotivo.

Mesmo que a instalação de cilindros de gás imponha prejuízos à capacidade de carga (tanto em peso quanto volume), é uma opção que vem atraindo muitos consumidores europeus em virtude da tributação mais leve aplicável a veículos movidos a gás, principalmente em localidades onde tem ganhado espaço uma mentalidade anti-Diesel junto ao poder público, como é o caso de Londres e Paris. Há de se levar em conta também que uma transição do gás natural de origem fóssil para o biogás chega a ser mais fácil que a da gasolina para o etanol, e portanto torna-se mais conveniente para fabricantes de veículos que atualmente questionam a obrigatoriedade de misturas de etanol à gasolina oferecer veículos já configurados diretamente de fábrica para operar com o GNV. Fiat/Iveco, Volkswagen, Mercedes-Benz e GM/Opel estão se dando bem nesse filão de mercado na Europa.

Até o segmento náutico está mais receptivo aos combustíveis gasosos, tendo como maior motivo as normas de poluição mais rígidas que vem sendo implementadas em alguns dos portos mais movimentados a nível mundial, como o de Cingapura e o de Rotterdam. Além do uso de gás natural liquefeito (GNL) de forma suplementar ao óleo cru pesado (heavy crude oil - HCO) em motores do ciclo Diesel, e até mesmo da incorporação do sistema SCR em alguns navios cargueiros, turbinas a gás já vem ganhando espaço em sistemas de propulsão naval devido às baixas emissões, e à possibilidade de usar em caráter emergencial qualquer combustível que possa ser vaporizado sem maiores dificuldades. Mesmo em embarcações recreacionais leves, nas quais o peso de uma instalação de gás seria mais problemático, já começa a despertar o interesse de uma parte considerável do mercado em função da maior estabilidade química do combustível em comparação a gasolina, etanol, óleo diesel convencional e biodiesel, que se deterioram mais rapidamente quando armazenados por muito tempo.

A situação delicada pela qual passa o setor sucroalcooleiro também coloca em xeque a viabilidade futura do etanol como combustível automotivo no Brasil, visto que tem menos competitividade não apenas diante do biogás mas também com a recente euforia em torno do petróleo do "pré-sal" que parece não ter arrefecido mesmo em meio aos escândalos de corrupção na Petrobras. Já o biogás não é tão prejudicado por esses cenários, havendo até um projeto em andamento para recuperação e purificação desse combustível no aterro sanitário Dois Arcos, localizado na cidade de São Pedro da Aldeia, região dos Lagos do Rio de Janeiro, tendo em vista aplicações automotivas. Experiências anteriores conduzidas pela Sanepar com uma frota de Fiat 147 em Londrina na década de '80 e pela extinta CMTC (Companhia Municipal de Transporte Coletivo) em São Paulo durante a gestão de Luíza Erundina dão prova da viabilidade dessa alternativa e de uma posição mais privilegiada diante do etanol na disputa com o Diesel pela preferência de operadores comerciais e de serviços diversos...

2 comentários:

  1. Era até bacana quando tinha ônibus a gás em São Paulo na época da Erundina, mas é o tipo de coisa que não dá certo se não tiver uma política a nível nacional já que ônibus velhos normalmente são revendidos para ser usado no interior ou transportar operários em canteiro de obra até se acabar. A facilidade de carregar um galão de etanol já é vantagem contra o gás para quem passe numa região onde os postos de combustível ficam mais afastados um do outro, mas de qualquer jeito eu não acredito que o óleo diesel vá deixar tão cedo de ser o preferido para serviço pesado.

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  2. Nunca vi nenhum carro híbrido usando só álcool, nem mesmo o Prius ou o Fusion híbridos mesmo usando motores que em outros carros já são flex, mas já andei num Prius táxi convertido para gás em Barcelona. Se tivesse que escolher eu apostaria no biogás mesmo, principalmente por já ter posto na Alemanha vendendo normalmente.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html