Os recentes aumentos nos preços dos combustíveis no Brasil, anunciados num momento de queda nas cotações do petróleo nos mercados internacionais, vem causando indignação nos consumidores que se veem reféns da incompetência de gestores públicos que colocam interesses político-partidários acima da segurança energética do país, evidenciada pelo mar de escândalos de corrupção que vem engolindo a Petrobras. A prevalência da ignição por faísca em veículos leves, tanto para transporte de passageiros quanto de carga ou uso misto, acaba por agravar o impacto econômico em função de uma adaptabilidade a combustíveis alternativos mais restrita.
Restam poucas opções tecnicamente viáveis que podem ser conciliadas à ignição por faísca com relativa facilidade, mas acabam por esbarrar tanto na economia de escala quanto em códigos de zoneamento urbano e nas regulações esdrúxulas da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), como o etanol de microdestilarias, o biogás (ou "biometano" quando purificado) e até mesmo a "Maria Loca", uma espécie de aguardente artesanal normalmente feita por mendigos e presidiários a partir de sobras de alimentos que tenham algum teor de amido (pão e outros farináceos, arroz, cascas e talos de frutas, entre outros), e que pode ser também adotada como combustível veicular em situações de crise. Para que um álcool (tanto etanol quanto metanol, que pode ser obtido durante o processo de produção da "Maria Loca" por algum descuido ou mesmo deliberadamente) venha a servir satisfatoriamente como combustível num motor de ignição por faísca é necessário que esteja numa concentração de no mínimo 80% em volume (o etanol de posto fica em torno de 93 a 96%, sendo este último o padrão de referência) e, ao contrário da cachaça que normalmente é estandardizada a 40%, a "Maria Loca" pode igualar ou superar facilmente o teor alcoólico de 80%. No entanto, alcançar uma escala de produção caseira suficiente para abastecer um carro "popular" exclusivamente com "Maria Loca" já não é tarefa das mais fáceis...
Outro combustível "exótico" que já pode ser considerado economicamente viável no atual cenário brasileiro, mas esbarra numa aplicabilidade mais restrita ao ciclo Diesel, é o óleo vegetal. O mais habitual, tanto para rebater mais rapidamente o custo associado a eventuais adaptações que ainda se façam necessárias para garantir um funcionamento correto do motor quanto por uma questão de uso racional de recursos, é que seja reaproveitado como combustível após o uso culinário, muitas vezes combinado com vestígios de gorduras animais quando usado para fritar carnes (tanto vermelhas quanto brancas e pescados) e derivados, mas diante dos atuais preços do óleo diesel de baixo teor de enxofre (S-10) no varejo já se torna economicamente viável até mesmo usar diretamente o óleo vegetal virgem, que pode ser comprado a preços mais favoráveis no atacado ou no "atacarejo" (Makro, Maxxi, Sam's Club, Atacadão, entre outros). O maior cuidado a se tomar com o uso de óleo de cozinha reaproveitado é referente à filtragem para remover partículas em suspensão que possam entupir as linhas de combustível, servir como meio de cultura para contaminantes biológicos (principalmente algas e bactérias) e numa situação extrema danificar um bico injetor...
Ao contrário do etanol, principal biocombustível oferecido no mercado brasileiro e que depende quase exclusivamente da cana de açúcar como matéria-prima e tem a disponibilidade afetada não só pelos resultados das colheitas mas também pela prioridade dada à produção de açúcar em alguns momentos. Já os óleos vegetais são mais versáteis, podendo ser extraídos não apenas de oleaginosas com algum valor alimentício como a soja, o milho, o amendoim, o côco e o dendê mas também de outras mais apropriadas a fins industriais como a mamona e o pinhão-manso, e até outras espécies menos difundidas como a macaúba, e o processo de produção é mais simples que o do biodiesel por dispensar o uso de alguns reagentes como o metanol (ou etanol) e o hidróxido de sódio (soda cáustica) e ainda requerer menos energia. Quando não houver interesse em redirecionar a glicerina extraída do óleo para outras aplicações industriais, ou o transporte desse material se mostrar demasiadamente caro para justificar, o óleo vegetal se firma como um combustível com a melhor relação custo/benefício e o mais sustentável possível.
Até mesmo em veículos comerciais de porte médio a grande, onde a diferença nos custos de produção e na suavidade de funcionamento entre um motor Diesel de injeção indireta e outro com uma geração mais antiga da injeção direta se tornaram menos sensíveis diante da maior eficiência da injeção direta para operar com óleo diesel convencional a partir dum momento em que os processos de refino do petróleo foram se tornando mais sofisticados e incrementando o índice de cetano (que quantifica a velocidade de propagação da chama na câmara de combustão) do óleo diesel, ainda se encontra uma quantidade expressiva de utilitários como o Fiat Ducato em versões equipadas com motor de injeção indireta, que devido ao processo de combustão mais lento e às temperaturas operacionais mais elevadas proporciona uma combustão mais completa do óleo vegetal, inclusive da glicerina, reduzindo a formação de resíduos que possam se acumular dentro do motor e provocar danos. No caso específico do Fiat Ducato, as versões equipadas com versões de aspiração natural do motor IVECO-Sofim 8140 (8140.67 de 2.5L e 8140.63 de 2.8L) contam com injeção indireta, enquanto o mesmo motor dispõe de injeção direta nas versões com turbo original de fábrica.
Com motores de injeção indireta, um pré-aquecimento do óleo vegetal torna-se menos crucial no tocante ao desempenho e à durabilidade, mas não deixa de ser recomendável em função da maior suavidade, estabilidade da marcha-lenta, e mesmo da partida a frio no caso de veículos que não disponham de um sistema com 2 tanques independentes para operar com óleo diesel convencional durante a fase fria (com o pré-aquecimento do óleo vegetal dependendo da troca de calor com o sistema de refrigeração do motor após a partida e estabilização da temperatura operacional) e a purga antes do motor ser desligado. Como o pré-aquecimento do cabeçote por meio das glowplugs já é um fator bastante crítico para a partida a frio num motor Diesel de injeção indireta, outros recursos não são considerados tão relevantes. Nada impede, no entanto, a instalação de um elemento aquecedor elétrico no tanque (ou no "pescador") como é até popular em outros países onde o inverno é mais rigoroso.
Um modelo ainda muito valorizado por quem deseja um veículo leve com motor Diesel para uso particular é a Saveiro quadrada, mesmo considerando que exemplares devidamente regularizados já estejam rondando os 30 anos, considerando que entre '86 e '89 a própria Volkswagen comercializou alguns exemplares no mercado brasileiro. Refletindo o direcionamento ao uso privado/familiar, muitas foram adaptadas para cabine dupla. Mesmo considerando as limitações do motor 1.6D de aspiração natural e 50cv, bem como a aerodinâmica comparável a um tijolo, médias de consumo entre 16 e 21 km/l ainda são um forte atrativo. Considerando também a maior eficiência numa ordem de 20 a 30% ao operar com óleos vegetais como combustível, valores entre 19 e 27 km/l se tornam ainda mais convidativos...
Vale lembrar que o motor 1.6D é baseado na série EA827, mais conhecida no Brasil como "AP", portanto tem uma grande intercambialidade de componentes com motores em outros modelos da Volkswagen, como a antiga Santana Quantum (que inclusive chegou a usar o 1.6D em versões destinadas à exportação), facilitando a montagem dos chamados "misto-quente" usando o bloco de um motor de ignição por faísca com o cabeçote e sistema de injeção do Diesel.
Também é digno de nota o fato dos motores Volkswagen EA827 serem ainda bastante populares para adaptações em veículos de outros fabricantes, tanto em modelos com um layout relativamente moderno como o Ford Escort Mk.6 (mais conhecido no mercado brasileiro como "Zetec" em função do motor inicialmente oferecido, cuja complexidade e dificuldade na reposição de peças tornam-se um empecilho à medida que o tempo vai passando) quanto outros de concepção mais vetusta como o Lada 2105 "Laika", e mesmo na configuração "misto-quente" ainda proporciona um desempenho aceitável na maioria dos veículos que não são legalmente aptos ao uso do Diesel no mercado brasileiro.
Outros motores que também apresentam um conceito de modularidade e intercambialidade de componentes entre versões de ignição por faísca são o TU3 usado no Peugeot 206 (e posteriormente nos modelos 206+/207 Compact/207 Passion/Hoggar e em versões de entrada do Peugeot 208 brasileiro, bem como no Citroën C3 e C3 Picasso) que usa o mesmo bloco do TUD3 oferecido no Peugeot 106 e no Citroën AX em outros mercados, mudando além do cabeçote e sistema de injeção apenas as camisas de cilindro, e o XU8 usado no Peugeot 306, que tem intercambialidade de componentes com motores da série XUD (XUD8/XUD9) usados também no próprio 306 no exterior e com o DW8 que foi produzido na Argentina até pouco tempo atrás para equipar a Partner.
Dentre as fábricas instaladas no Brasil, a Fiat é a que mais se destacou na luta pelo reconhecimento em âmbito político e homologação do óleo vegetal como combustível veicular junto ao Inmetro e à ANP e, após as experiências com óleo de mamona nos anos '80, voltou a apostar nessa área entre 2007 e 2010, valendo-se do uso dos óleos vegetais como pretexto para derrubar as restrições arbitrárias ao uso de motores Diesel em veículos com capacidade de carga inferior a uma tonelada, sem tração 4X4 e com acomodações para menos de 9 passageiros além do motorista. O motor TD70 de 1.7L, que equipava a Palio Adventure Locker em versões de exportação, era o escolhido para o projeto. Ficaria na medida para o uso como táxi, valendo-se não apenas da maior eficiência do ciclo Diesel e do uso de um combustível renovável mas também por evitar a redução na capacidade de carga causada pelos sistemas de gás natural atualmente usados numa grande parte dos táxis brasileiros, principalmente nos grandes centros urbanos.
Considerando ainda uma particularidade brasileira que é a militarização dos bombeiros e da polícia, a adoção dos motores Diesel como padrão nas frotas militares dos países-membros da OTAN já seria uma justificativa plausível também para se pensar na aplicação dos óleos vegetais como combustível para as viaturas, valendo-se da adaptabilidade às matérias-primas mais adequadas às condições de cada região, simplificando a logística, e como o ponto de fulgor dos óleos vegetais é mais elevado que o do etanol e da gasolina atualmente usados também há uma notável melhoria a nível da segurança operacional.
Um fator que tem dificultado a transição para os óleos vegetais é referente às normas de emissões que acabam por privilegiar cada vez mais a injeção direta, e pode ser observado tomando por referência a Toyota Hilux SW4: a atual geração tem no mercado brasileiro como única opção de motor Diesel o 1KD-FTV de 3.0L com injeção common-rail ainda mantém em outros países com normas de emissões menos restritivas o 5L-E também de 3.0L mas com injeção indireta que chegou a ser usado na geração anterior do modelo. Outro motor de injeção indireta na mesma faixa de cilindrada aplicado à Hilux SW4 antiga era o 1KZ-TE. A grosso modo, as diferenças que mais saltam aos olhos entre o 1KD-FTV e o 1KZ-TE são o cabeçote (além das pré-câmaras presentes no 1KZ-TE, tem apenas 8 válvulas com comando simples enquanto o 1KD-FTV tem 16 válvulas e comando duplo) e o tipo de turbocompressor usado (geometria variável no de injeção direta e fixa no de indireta).
No entanto, nada impede que um veículo com motor Diesel de injeção direta, hoje predominante em veículos de transporte em massa e maquinário pesado a nível mundial e também em veículos leves nos mercados mais desenvolvidos, seja otimizado para operar de forma segura com óleos vegetais. Nesse caso, o pré-aquecimento do óleo deixa de ser apenas recomendável e passa a ser imprescindível visando preservar a durabilidade do equipamento. Tratando-se de bens de capital, que estariam operando num ritmo mais intenso, bem como pelo grande volume de combustível a ser consumido, o retorno do investimento na preparação do veículo para o uso de óleos vegetais como combustível é mais rápido, e portanto facilmente justificável.
Considerando o transporte coletivo de passageiros, que no Brasil depende quase exclusivamente do óleo diesel convencional e portanto cada aumento no preço desse combustível tem um impacto significativo no custo operacional e que acaba sendo repassado aos usuários, é outro segmento que viria a ser beneficiado com o uso de óleos vegetais. No caso específico de Porto Alegre, com um limite de 15 anos para a idade dos ônibus em circulação, já se tem tempo de sobra para amortizar o custo de adaptação e ainda incrementar a rentabilidade ao longo da vida útil operacional dos veículos.
Mesmo para o cidadão que vá utilizar um veículo particular adaptado para operar com óleo vegetal, por mais que o investimento inicial tanto no motor Diesel que normalmente já é mais caro quanto nos sistemas de filtragem e pré-aquecimento, a tranquilidade de poder usar um combustível que não dependa de uma única matéria-prima e assim tenha fácil disponibilidade por todo o território nacional e mais protegido contra quebras de safra ou oscilações no mercado de algumas commodities já pode ser considerada uma boa justificativa...
Tinha que implantar isso pra ontem, mas tem muito interesse em jogo por trás disso.
ResponderExcluirTem hora que dá uma tristeza vendo as chances que o brasileiro perde, e ter um carro movido a óleo de fritura velho é uma delas.
ResponderExcluireu estou numa dessas fotos, hehe!
ResponderExcluirSou a favor do óleo vegetal como combustível, se fosse liberado eu seria um dos primeiros a correr para adaptar meu carro.
ResponderExcluirA hora de usar óleo de fritura velho como combustível limpo já chegou faz tempo, e a brasileirada perdeu o bonde mais uma vez.
ResponderExcluirÉ o tipo de coisa que vale a pena, mas aqui no Brasil o governo tem o dom de ferrar com quem ainda insiste em produzir alguma coisa no país.
ResponderExcluir