quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Motores a pistão: ainda tem espaço cativo no mercado aeronáutico?


Em virtude da relação peso/potência mais favorável, e da menor quantidade de peças móveis, os motores rotativos tipo turbina a gás, tanto turboélice quanto turbofan, tornaram-se até certo ponto onipresentes na aviação comercial. Por meio da sangria de ar dos compressores, também é possível suprir os sistemas de pressurização de cabine, climatização e ar condicionado, que viabilizam a operação em altitudes mais elevadas que proporcionam uma redução no consumo de combustível mas levariam passageiros e tripulação à morte se não houvesse a adequada pressurização da cabine e significativo desconforto em função das baixas temperaturas. Entretanto, as turbinas a gás não são exatamente simples, e requerem uma mão-de-obra mais especializada para a correta montagem e manutenção de modo a garantir uma operação segura. Uma simples palheta desbalanceada pode até derrubar um avião.

Vale destacar que, apesar do nome um tanto sugestivo, as turbinas a gás empregadas na aviação normalmente operam com querosene ao invés de combustíveis gasosos, e as duas principais fabricantes desse tipo de motor, mais especificamente a Rolls-Royce e a Pratt&Whitney, já desenvolvem projetos destinados à substituição total ou parcial do querosene de aviação tanto por bioquerosenes quanto por biodiesel e outros combustíveis mais direcionados ao uso em motores do ciclo Diesel. Considerando a presença maciça de motores Diesel em veículos e equipamentos usados nos serviços auxiliares do transporte aéreo, a logística simplificada pela adoção de um combustível único torna-se um dos principais atrativos sob um ponto de vista meramente comercial, sem entrar ainda no mérito das rígidas metas de controle e redução de emissões que vem sendo implementadas por autoridades aeronáuticas mundo afora e servindo de pretexto para restringir a operação de aeronaves consideradas "poluidoras" não apenas no tocante às emissões de gases mas também aos níveis de ruído.

Na aviação geral, o custo de aquisição mais baixo ainda leva a um uso mais amplo de motores alternativos, também conhecidos simplesmente como "motor a pistão", embora predominem o ciclo Otto e a gasolina AvGas (Aviation Gasoline), mais poluente que a gasolina destinada a aplicações automotivas devido ao teor de chumbo. Quando consideramos ainda as condições operacionais de aeronaves como o Embraer EMB-202 Ipanema, que voam a altitudes relativamente baixas para proporcionar um melhor controle da dispersão dos defensivos agrícolas a serem pulverizados, há diversos fatores que ainda favorecem os motores a pistão, desde a variação menos intensa na pressão atmosférica em função das altitudes menores até a saturação menos intensa do filtro de ar, além de uma diminuição nos riscos de danos inerentes à ingestão de objetos e partículas estranhas (FOD - Foreign Object Damage).
No entanto, pode-se dizer que há um oligopólio entre os fornecedores de motores a pistão para uso aeronáutico, com a Lycoming e a Continental despontando como as líderes de mercado. Fatores tão diversos quanto a preferência da aviação executiva pela imagem de sofisticação e modernidade atribuída à turbina a gás, bem como a maior dificuldade para suprir pressão pneumática em aeronaves equipadas com motor a pistão, os tornam menos desejáveis sob a óptica de muitos operadores tanto comerciais quanto privados. A prevalência de características mais primitivas, como a refrigeração a ar, também faz com que os principais motores a pistão homologados para uso aeronáutico sejam vistos com algum desdém. E apesar do custo de produção menor devido à ausência de radiador, bomba d'água e tubulações associadas à refrigeração líquida, não se pode ignorar que a refrigeração a ar acaba por ser menos homogênea, além dos níveis de ruído mais intensos e da maior dificuldade em redirecionar o ar de impacto aquecido pelo contato com o motor para aquecimento da cabine em função do elevado risco de saturação por monóxido de carbono (CO).
A adaptabilidade a combustíveis alternativos foi por muito tempo vista como excentricidade e tratada com algum descaso, mesmo diante da experiência bem-sucedida de uma versão movida a etanol do motor Lycoming IO-540 oferecida como opcional para o Embraer Ipanema, além de kits de conversão homologados por certificação suplementar de tipo para aplicação em aeronaves mais antigas equipadas com esse mesmo motor. E apesar do uso intenso de materiais leves, atualmente não apresentam relação peso/potência e potência específica (por um determinado volume de cilindrada, medida no Brasil usualmente em litros) muito superiores às de alguns motores automotivos mais recentes, além do gerenciamento eletrônico vir se mostrando confiável o suficiente para suplantar os carburadores e injeções mecânicas quando aplicáveis, levando a questionamentos em torno da coerência em permanecer usando um layout tão antigo que serviu de inspiração até mesmo para o rústico motor do Fusca.


Mas ainda pode-se dizer que há esperança para os motores a pistão no mercado aeronáutico, e o Diesel figura como protagonista nesse cenário. Por mais que predomine a imagem de motores excessivamente pesados e com faixas de rotação mais estreitas, outras características e peculiaridades inerentes ao projeto de cada motor devem ser levadas em consideração. Por exemplo, os regimes de rotação mais modestos acabam por dispensar em alguns casos o uso da caixa de engrenagens de redução entre o motor e a hélice, além do sistema de arrefecimento do motor servir também como provisão para aquecimento da cabine sem depender de um aquecedor suplementar, diminuindo a diferença de peso da instalação completa e efeitos sobre o centro de gravidade quando montado na aeronave. O ritmo de trabalho mais suave também tende a prolongar a durabilidade, podendo refletir em intervalos mais amplos entre revisões de motor ou procedimentos mais complexos como um overhaul. Ou alguém ainda duvida que o motor 2.0 MultiJet2 que equipa o Fiat Jeep Renegade fosse servir bem a um Cessna 172?

O motor Mercedes-Benz OM640, usado na 2ª geração do Mercedes-Benz Classe A, chegou a ter homologada para uso aeronáutico pela FAA e pela EASA uma versão modificada pela Thielert, atual Tecnify Motors, e comercializada pela Continental como CD-155. Esse motor já é oferecido no Cessna 172 Turbo SkyHawk JT-A, mas a homologação ainda é para o uso do querosene Jet-A como combustível ao invés do óleo diesel convencional. Além da provisão para aquecimento da cabine, e de contar com o turbocompressor que acaba por reduzir o decréscimo de potência em altitude, outras vantagens práticas são o menor consumo e a maior segurança contra incêndios e explosões devido ao ponto de fulgor mais alto do querosene em comparação com a gasolina. E mesmo custando mais que o óleo diesel convencional, o querosene hoje é disponível com mais facilidade em comparação à AvGas na maioria dos aeródromos.

Enfim, por mais que hoje estejam relegados a algumas operações bastante peculiares, que vão desde voos de instrução até a aviação agrícola, e em algumas regiões mais remotas servindo também ao transporte aeromédico apesar da ausência de pressurização da cabine, os motores a pistão ainda encontram espaço no mercado aeronáutico em nichos nos quais o alto custo, condições dos aeródromos e a manutenção um tanto complexa das turbinas a gás não as tornam tão convidativas...
Nota: a distorção na posição das pás da hélice deve-se ao fato do motor estar em operação na hora da foto

Autor das fotografias: Daniel Girald - Proibida a reprodução total ou parcial das imagens aqui expostas sem autorização prévia do autor. Para solicitar autorização, mandar mensagem reservada pelo formulário de contato disponível na barra direita da página.

3 comentários:

  1. Minha filha mais nova tem muito medo de avião. Mas já que motor a pistão é parecido com o do carro, será que é mesmo mais seguro?

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    1. A princípio sim. Não que seja 100% à prova de falhas, mas só de minimizar as chances de um despalhetamento de turbina (que ainda poderia ocorrer num motor a pistão com indução forçada por turbocompressor) já me parece bom.

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    2. O problema dos motores a pistão é que não fica tão fácil pegar um suprimento de ar para pressurizar a cabine, então não seria tão adequado às necessidades da aviação comercial. Até tem uns aviões pequenos com motor a pistão e compressor mecânico para pressurizar a cabine, mas acaba sendo uma coisa a mais para dar manutenção e vai roubar potência do motor.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

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http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html