sábado, 17 de fevereiro de 2018

Refletindo sobre os desafios que as turbinas a gás teriam de enfrentar para suplantar os motores convencionais fora do setor aeronáutico

Motor Pratt&Whitney Canada PT-6A, este exemplar já se encontra não-aeronavegável e serve apenas para ensino
Com uma aplicabilidade mais consagrada na aviação que em outros segmentos, embora também seja relativamente comum em navios e centrais geradoras de energia elétrica (nesse caso principalmente no exterior), as turbinas a gás já foram alvo de muitas especulações diante das transformações que o mercado automobilístico vem sofrendo nas últimas décadas. Seja pela percepção de uma manutenção mais simples em função da menor quantidade de peças móveis, ou por aspectos mais práticos como a adaptabilidade a uma grande variedade de combustíveis tanto líquidos quanto gasosos ou a suavidade do funcionamento quase livre de vibrações, as esperanças depositadas em função dos mais variados motivos como o recrudescimento de normas de emissões e os aumentos nos preços do petróleo não fizeram com que a turbina a gás se tornasse tão relevante no mercado automobilístico ou mesmo em aplicações estacionárias. Mas em meio a algumas vantagens que já levaram a uma presença maciça num contexto tão crítico em termos de confiabilidade como o da aviação, como explicar que as turbinas a gás pareçam tão distantes de encerrar a hegemonia dos motores a pistão tanto na ignição por faísca quanto no ciclo Diesel em outros segmentos?
Não se pode ignorar o aspecto financeiro, tendo em vista que os motores são hoje os componentes de custo mais elevado num avião comercial moderno e, por mais que alguns mecânicos aeronáuticos mais experientes de vez em quando digam o contrário, a manutenção não parece muito mais simples em comparação a um motor convencional que possa proporcionar um desempenho semelhante. É inegável a vantagem no peso e volume principalmente ao considerarmos os jatos modernos, que já nem costumam ser "jato puro" e tem grande parte do fluxo de ar admitido circulando ao redor do núcleo (core) do motor, no chamado fluxo secundário ou "bypass" (desvio). Na prática, o chamado "turbofan" recorre a uma espécie de hélice carenada de passo fixo, sem variação no ângulo das pás (blades), mas acaba gerando a maior parte da tração por meio de um fluxo de ar que não é aplicado ao processo de combustão como também é o caso dos turboélices que costumam recorrer ao chamado "passo variável" para ajustar o ângulo das pás de acordo com a incidência do vento relativo ao invés de variar a aceleração do motor, e assim possibilitando que este permaneça operando o máximo possível em regime de rotação constante de modo a assegurar uma maior eficiência.
As necessidades específicas da aviação comercial moderna, que vão além da questão do custo e disponibilidade do querosene mais favoráveis que os da gasolina de aviação (AvGas) e passam também por aspectos como a sangria de ar do próprio compressor nas turbinas a gás para uso no sistema de climatização (que opera por ciclo de ar ao invés do ciclo de vapor usado em equipamentos de ar condicionado comuns) e pressurização da cabine visando aumentar o teto operacional (altitude máxima de voo) a temperaturas confortáveis e sem a necessidade de recorrer a oxigênio suplementar para passageiros e tripulação, fazem com que nenhum outro tipo de motor ofereça hoje uma relação custo/benefício competitiva. Nesse sentido, cabe destacar a redução de peso e volume não apenas nos motores mas também nos conjuntos de ar condicionado e no sistema de pressurização, tendo em vista que se tornam desnecessários compressores de acionamento mecânico adicionais imprescindíveis caso fossem usados motores convencionais na mesma aplicação. É importante frisar também que em altitudes mais elevadas o ar menos denso acaba favorecendo a economia de combustível, visto que oferece uma menor resistência (atrito) ao deslocamento do avião e possibilita o uso de um volume de combustível menor para manter a proporção ar/combustível correta para uma combustão mais completa e limpa.

CAP-4 "Paulistinha", derivado do clássico Piper Cub normalmente usado para voos de instrução
Já na aviação leve, com destaque para os segmentos de treinamento/instrução e agrícola, a vantagem em termos de peso e volume do conjunto motopropulsor não é tão expressiva para as turbinas a gás, de modo que os motores convencionais permanecem reinando soberanos. A manutenção notadamente simples para quem cresceu familiarizado com motor de Fusca pesa a favor, e mais recentemente tem ganhado espaço principalmente na aviação agrícola a possibilidade de operar com etanol. Diga-se de passagem, hoje no Brasil ao menos na aviação agrícola é uma minoria que ainda usa a cada vez mais cara AvGas, e mesmo aviões de projeto mais antigo podem ser adaptados com relativa facilidade para funcionar com etanol. No entanto, uma característica que chama a atenção em boa parte dos aviões de motor convencional é o uso da hélice de passo fixo, muito mais simples que uma de passo variável e portanto menos complexa no tocante à manutenção. Mas se por um lado a hélice de passo fixo agrega uma boa redução nos custos de manutenção ao eliminar os ajustes do governador hidráulico presente nas de passo variável, por outro exige que o piloto altere os regimes de rotação do motor na manete de aceleração para evitar perda de tração, o que evidencia a maior aptidão do motor convencional a alterações nos regimes de rotação ao longo da operação.
Piper Pawnee C


Levando em consideração a dificuldade das turbinas a gás em operar com uma variação mais intensa das condições de carga, até poderia-se especular sobre uma viabilidade das mesmas em veículos com câmbio do tipo CVT como o usado no Honda Civic de 10ª geração, que conta com infinitas relações de marcha entre a mais reduzida e a mais longa mediante o uso de polias cônicas e correias, ao invés de uma quantidade fixa de marchas definidas por engrenagens em um câmbio manual, automático convencional ou automatizado. Nesse caso, o câmbio acabaria por assumir uma função análoga ao governador de hélice em aviões ou ao "cíclico" dos helicópteros, tornando-se o controle primário da velocidade do veículo com o intuito de manter o motor sempre "cheio", mas mesmo assim já não seria tão vantajoso recorrer às turbinas a gás num carro ao considerarmos o anda-e-para tão frequente ao trânsito urbano pesado. Na melhor das hipóteses, poderia servir a modelos híbridos como o Toyota Prius ou até mesmo pesados como o ônibus Volvo B215RH. Tendo em vista algumas peculiaridades dos sistemas híbridos, como o desligamento do motor a combustão durante paradas e desacelerações eliminando a operação em marcha-lenta (idling) e a possibilidade de variar a aceleração dos motores elétricos visando emular o funcionamento de um câmbio CVT no caso do Prius, já poderia soar mais plausível incorporar turbinas a gás em substituição aos motores convencionais num veículo híbrido.

A bem da verdade, ainda seria mais provável que as turbinas a gás pudessem conquistar espaço em equipamentos estacionários como grupos geradores ao invés de aplicações automotivas justamente em função da diferença nos regimes de rotação aos quais os motores estariam sujeitos. Também cabe recordar a possibilidade de valer-se da co-geração de energia elétrica e aquecimento de água, com o intuito de aproveitar melhor um calor residual que seria simplesmente descartado numa quantidade até mais intensa por esse tipo de motor. O custo novamente não deixa de constituir um empecilho para a aceitação das turbinas a gás, bem como a eventual escassez de mão-de-obra qualificada para fazer a manutenção e mais concentrada no mercado aeronáutico em contraste com o que se observa com motores Diesel que permanecem numa posição confortável em aplicações tão diversas quanto máquinas agrícolas e de construção, embarcações, veículos utilitários e nos já mencionados grupos geradores. Até não seria de se ignorar que a certificação de competência para mecânicos ocorrendo sem tanta influência de regulamentações da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) em outros segmentos possa atrair profissionais interessados em prestar assistência técnica em turbinas a gás em aplicações terrestres ou marítimas.

A presença mais maciça do turbocompressor em motores convencionais em aplicações diversas também pode fomentar discussões quanto à viabilidade de uma transição para as turbinas a gás, tendo em vista a aparente simplicidade desse dispositivo. Naturalmente o uso de um compressor de fluxo centrífugo e estágio de compressão único acaba por reforçar essa imagem, além de ter um custo menor que os compressores do tipo axial de múltiplos estágios que se tornaram padrão na aviação. A evolução das câmaras de combustão, que deixaram para trás o formato "caneca" enquanto as câmaras anelares vão se consolidando em virtude de fatores como o menor volume externo em proporção ao interno e a propagação de chama mais uniforme, também pode ser apontada como um pretexto para que as turbinas a gás venham a ter maior aceitação ou ao menos despertem alguma curiosidade por parte de potenciais novos usuários. No entanto, as temperaturas extremamente altas em comparação aos motores convencionais também requerem atenção para evitar danos ao motor, valendo-se de uma parte do fluxo de ar turbilhonando de modo a refrigerar e evitar que a chama entre diretamente em contato com as paredes das câmaras de combustão. O risco do fogo se alastrar para a turbina propriamente dita e chegar a queimá-la também não pode ser desconsiderado. Justamente em função das temperaturas mais altas e de operar com chama constante (ciclo Brayton) ao invés das explosões controladas observadas em motores convencionais, a ocorrência de superaquecimento em turbinas a gás pode-se tornar ainda mais danosa e exigir reparos mais caros ou eventualmente a substituição de toda a seção quente (câmaras de combustão, turbinas e seção de escapamento).


É natural que o fascínio causado pela aviação, desde a época dos motores convencionais usados em ícones como o Douglas DC-3/C-47 Skytrain "Dakota" até os atuais jatos como o best-seller Boeing 737, fomente especulações quanto à viabilidade de trazer para veículos mais presentes no nosso dia-a-dia algumas soluções consagradas na indústria aeronáutica. No entanto, as condições operacionais nem sempre se revelam tão ideais para que esse intercâmbio tecnológico venha a ser um sucesso, e o caso das turbinas a gás acaba sendo emblemático nesse sentido. É particularmente difícil replicar nas ruas um controle tão estrito como o que se observa em áreas de segurança para operação de pouso e decolagem de aeronaves, de modo que uma almejada vantagem na eficiência energética ficaria longe da expectativa. Enfim, por mais que tenham provado um valor incomensurável para o progresso da aviação, as turbinas a gás ainda tem desafios a enfrentar até que eventualmente estejam consolidadas em outras aplicações, que podem abranger até mesmo serviços auxiliares do transporte aéreo...

5 comentários:

  1. Turbina a gás chegou a ser usada até em tanque de guerra, mas parece que andou dando problema lá no Iraque. Já tem planos para trocar por motor a diesel mesmo, e até a Norinco chinesa quando projetou uma espécie de concorrente do Abrams já escolheram motor a diesel desde o início.

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    1. Ingestão de partículas estranhas é um problema até mais comum nas turbinas a gás em comparação aos motores convencionais.

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  2. Não acredito que as turbinas a gás possam chegar a ser viáveis para uso em carros tão cedo, mas pelo que eu vejo elas só chegaram ao atual sucesso quando se começou a usar o turbofan ao invés de depender só dos gases de escape para gerar tração.

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    1. Pois é. Em comparação aos jatos puros, mesmo que o tamanho e a área frontal de um turbofan seja muito maior por uma mesma quantidade de tração que vá ser gerada, pelo menos consegue economizar combustível e ter uma melhor supressão de ruídos.

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  3. Lindo demais esse C-47, pena que não é mais aeronavegável. De vez em quando até me dá uma vontade de ir no interior da Colômbia só para fazer a viagem num desses que ainda opera comercialmente.

    Se nem nos aviões as turbinas a gás são unanimidade, tanto que ainda existe mercado para motores a pistão com uma concepção bastante arcaica, fica ainda mais difícil supor que possam ser consolidadas de curto a médio prazo no mercado automobilístico. Só mesmo como gerador para veículos com tração elétrica, como propõe a Wrightspeed para uso em caminhões e ônibus. Só para constar, a uns anos atrás a extinta fábrica de motores canadense Orenda chegou a tentar adaptar um motor V8 big-block da Chevrolet para ser usado no lugar da PT6 em alguns aviões como o King Air.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html