
Já não é de hoje que a fabricação do próprio motor é questão de orgulho para diversas empresas no setor automobilístico, incluindo algumas já encerradas como a Gurgel que deu um passo importante rumo à "independência tecnológica brasileira" com o motor Enertron de 2 cilindros opostos (boxer) a gasolina com refrigeração líquida que equipou o BR-800. Tal iniciativa é apontada constantemente como um pretexto para teorias de conspiração muito difundidas entre admiradores da histórica fábrica de capital 100% brasileiro que se notabilizou por utilitários derivados de conjuntos mecânicos da Volkswagen antes de se aventurar numa inauguração do segmento hoje conhecido como o dos "carros populares", mas oferece um bom pretexto para reflexão num contraste com a maior receptividade ao outsourcing no mercado de caminhões e mesmo em outros segmentos onde o Diesel prevalece. Quem nutre uma admiração especial por fabricantes nativos pode tomar como exemplo a Agrale, que já chegou a oferecer um motor Diesel de fabricação própria em caminhões da antiga série TX paralelamente a um motor Chevrolet a etanol e um Diesel MWM.


De certa forma não se deve ignorar uma influência exercida pelo mercado de caminhões dos Estados Unidos, que por muito tempo favoreceu uma maior modularidade e variedade de motores e câmbios de diferentes fornecedores para um mesmo modelo. Essa situação está mudando, com uma maior receptividade ao uso de motores próprios de empresas associadas a cada fabricante de caminhões, embora a exclusividade ainda dê margem a algumas desconfianças por parte de proprietários e operadores. Enquanto modelos antigos como o International 4700 sofreram alguma rejeição ao contar apenas com um motor do próprio fabricante, outros como o Freightliner Argosy não repetiram o erro ao manter a opção por motores Cummins paralelamente aos Detroit Diesel hoje oferecidos exclusivamente em produtos da Daimler Trucks. Também seria prematuro descartar outros fatores que levaram a essa dinâmica observada no mercado americano, desde os altos custos de pesquisa e desenvolvimento de soluções para o controle de emissões até a maior intercambialidade de componentes com motores das mesmas linhas destinados a outras aplicações, trazendo economia aos processos logísticos tanto durante a produção quanto nas operações de manutenção e reposição de peças.


Não
se pode esquecer que, enquanto o Diesel detém amplo respaldo em uma
infinidade de segmentos além das aplicações veiculares, a ignição por
faísca ainda encontra pretextos para uma continuidade principalmente em
função de veículos leves nos quais os custos de fabricação e aquisição
são críticos, e em alguns equipamentos portáteis que tem foco na redução
de peso para a escolha do motor mais adequado. Nesse contexto, por mais incrível que
possa parecer, até mesmo aquele motor 4-tempos de pistões opostos
projetado na
startup americana Pinnacle Engines
ainda enfrenta alguma resistência mesmo diante de uma previsão de
incrementar somente de 2,5 a 3% no preço final de uma moto de baixa
cilindrada ou de um triciclo utilitário daqueles muito populares no
sudeste asiático e oferecendo uma eficiência energética comparável à dos
sistemas de tração híbrida gasolina-elétrica notadamente mais caros,
complexos e pesados. Uma característica interessante desse projeto da
Pinnacle Engines é o uso das camisas de cilindro como válvulas, podendo
ser feita uma analogia ao sistema desenvolvido por Charles Knight e
amplamente usado tanto em automóveis americanos e europeus como também
em motores aeronáuticos por eliminar a ocorrência de recessão de sedes
de válvula de escapamento quando ainda nem se falava em gasolina com
chumbo ou no preenchimento de hastes de válvulas com sódio visando uma melhor refrigeração. Na prática, como os motores de pistões opostos ao menos
aparentam ter uma boa tolerância às variações de inclinação que possam
ser submetidos, até que não seria de se estranhar que começassem a
aparecer em substituição aos motores 2-tempos que hoje ainda são o
padrão nas motosserras...

Embora a cultura predominante na indústria automobilística em geral
permaneça um tanto refratária a tecnologias desenvolvidas por terceiros,
não faltam boas oportunidades em outros segmentos. A bem da verdade,
não se deve esquecer que o ciclo Diesel ganhou notoriedade em aplicações
náuticas e estacionárias/industriais antes que fosse levado a sério
como uma alternativa para veículos terrestres. Portanto, não seria de se
estranhar que projetos como o desenvolvido pela
startup americana Achates Power,
proponente de uma reabilitação dos motores Diesel 2-tempos com pistões
opostos no segmento veicular, num primeiro momento conquistassem uma
maior receptividade para o uso em embarcações e grupos geradores.
Guardadas as devidas proporções, pode-se considerar o sistema de injeção
direta desenvolvido pela empresa australiana Orbital Corporation para
motores 2-tempos de ignição por faísca como um precedente favorável
tendo em vista que, após toda a empolgação em torno de eventuais
aplicações automotivas que no fim foram engavetadas, acabou
consolidando-se como uma alternativa adequada tanto às particularidades
de motores marítimos quanto de outros produtos especiais como
snowmobiles, além de ser compatível com o uso de combustíveis alternativos como o etanol, o gás natural, e também o querosene de aviação e o óleo diesel convencional em algumas aplicações militares.

Como seria de se esperar, fabricantes de veículos da Índia e da China ainda considerados pequenos diante dos principais conglomerados americanos, europeus, japoneses e sul-coreanos e ainda muito dependentes da transferência de tecnologia proveniente tanto dos fabricantes mais tradicionais quanto de consultorias independentes oferecem uma possibilidade mais promissora para os outsiders. Entre os fatores que podem influenciar nessa perspectiva, a rápida expansão das frotas locais e também em mercados de exportação onde o custo baixo garante uma certa competitividade aos veículos indianos e mais recentemente chineses, bem como a necessidade de conciliar a manutenção da vantagem no preço com o cumprimento de normas de emissões mais rigorosas e metas de redução de consumo de combustíveis que se fazem necessárias para ir além dos mercados periféricos na Ásia, África, América Latina e Oriente Médio. Não se pode esquecer da competição com os carros usados exportados diretamente do Japão e da Coréia do Sul em países onde tal prática é permitida, e a larga escala que a hibridização tem atingido na frota japonesa impõe um desafio no tocante à manutenção e ao descarte de componentes como as baterias tracionárias ao final da vida útil operacional, e assim alguns projetos desenvolvidos fora das indústrias automobilísticas mais tradicionais podem vir a se mostrar mais adequados tanto à realidade dos mercados emergentes quanto dos subdesenvolvidos. No caso específico de alguns carros fabricados na China, onde ainda predomina entre os fabricantes locais o costume de copiar motores antigos da Mitsubishi, Toyota e Isuzu nem sempre com o devido licenciamento, há de se levar em consideração eventuais restrições à exportação a alguns mercados que levam o respeito à propriedade intelectual mais a sério.

Mesmo a questão ambiental, que em alguns momentos parecia dificultar exponencialmente o atendimento a normas de emissões cada vez mais rigorosas sem acarretar prejuízos tanto ao desempenho e à economia de combustível quanto à durabilidade, acaba por proporcionar situações antes consideradas praticamente impossíveis mas que reforçam tanto a viabilidade futura do ciclo Diesel em diversos cenários operacionais quanto da incorporação de tecnologias fornecidas pelos outsiders. Por exemplo, quem poderia supor que a Cummins, notabilizada por nunca ter oferecido um motor 2-tempos como resultado da decepção do fundador Clessie Cummins com um protótipo danificado durante uma corrida, iria algum dia desafiar a tradição e estabelecer um convênio com a Achates Power visando exatamente o desenvolvimento de um motor Diesel 2-tempos a ser inicialmente destinado ao uso em viaturas militares? Também não é possível ignorar a eficiência térmica superior inerente ao ciclo Diesel em comparação à ignição por faísca, sendo portanto um importante aliado na promoção de uma utilização mais racional de recursos energéticos e ainda oferecendo uma boa relação custo/benefício diante de alguns problemas inerentes aos sistemas híbridos como o maior gasto de energia aplicada aos processos produtivos e a utilização mais intensa de alguns minerais destinados à fabricação de ímãs para os motores elétricos e de compostos químicos presentes nas baterias.

É importante levar em consideração os efeitos de um maior rigor em normas de emissões que vem sendo implementadas em aplicações que até pouco tempo atrás sofriam menos restrições nesse âmbito, como equipamentos de construção e manejo de materiais, que eventualmente possam ter o desempenho e a operacionalidade afetados de forma mais prejudicial com alguns dos métodos de controle de emissões aplicados pela indústria automobilística. Tomando como referência alguns equipamentos do tipo skid-steer, para os quais não é incomum que a marca BobCat seja usada incorretamente como um sinônimo, as dimensões compactas tornam indispensável que o conjunto motriz e respectivos periféricos também não sejam demasiadamente volumosos ou pesados, e nesse sentido fica evidente uma oportunidade para a aplicação de algumas tecnologias que eventualmente o setor automobilístico ainda venha tratando com descaso enquanto se vê dependente de métodos um tanto problemáticos como o SCR por pura teimosia em desprezar soluções mais práticas e eficientes simplesmente por serem oferecidas por outsiders. Ou alguém em sã consciência ficaria satisfeito em ter que atrasar um serviço para fazer a "regeneração" de um filtro de material particulado (DPF) entupido, por exemplo?


Enquanto os sistemas híbridos como o usado no Toyota Prius são frequentemente alardeados como uma "salvação" para a ignição por faísca no médio a longo prazo, levando até a uma certa acomodação por parte de alguns grupos que rejeitam algumas soluções com uma relação custo/benefício mais favorável ao usuário final apenas por terem sido propostas por outsiders, ainda há oportunidades para integrar aperfeiçoamentos desenvolvidos de forma independente em motores Diesel sem uma dependência tão forte por uma iniciativa da indústria automobilística. Portanto, não seria de se duvidar que aplicações estacionárias/industriais, como grupos geradores, comprovem a viabilidade e eficácia de tais desenvolvimentos antes que finalmente vençam resistências no tocante ao uso veicular. Enfim, por mais que surjam desafios cada vez mais críticos principalmente com relação a normas ambientais e metas de incremento na eficiência energética, a cultura que se formou em torno dos motores Diesel ainda os credencia a um futuro promissor enquanto a ignição por faísca corre o risco de perder competitividade em função de estratégias de mercado um tanto medíocres.
