terça-feira, 4 de março de 2014

Curiosidade: ignição de tubo quente

Durante épocas mais primordiais na evolução dos motores de combustão interna, antecedendo tanto a ignição por faísca quanto o que atualmente se conhece como ciclo Diesel (ignição por compressão), já reinou um sistema que pode ser até considerado uma espécie de intermediário entre ambos os sistemas atualmente consolidados: a ignição por tubo quente. Inicialmente, em função dos perfis de refino que priorizavam a obtenção de hidrocarbonetos pesados como o querosene, amplamente usado para iluminação antes que a luz elétrica se popularizasse, não era tão fácil vaporizar essas frações mais pesadas do petróleo num carburador, portanto se recorria à injeção mecânica, mas junto ao ar na fase de admissão. Um tubo de formato esférico (como o bulbo de uma lâmpada incandescente) embutido no cabeçote e que deveria ser previamente aquecido por intermédio de uma lamparina  por alguns minutos imediatamente antes da partida garantia o calor necessário para que o combustível fosse queimado, e a superfície metálica retinha calor da combustão inicial para que ocorresse a ignição nos ciclos de combustão subsequentes. A taxa de compressão numa faixa de 3:1 era irrisória mesmo diante dos motores de ignição por faísca que começaram a aparecer em 1902 com a introdução das primeiras velas de ignição "modernas" pela Bosch.

Não tolerava tão bem faixas de giro acima de 300 RPM, mas já se credenciava a substituir motores a vapor como a principal fonte de força motriz em aplicações estacionárias, agrícolas e náuticas. Para algumas aplicações onde uma faixa de rotações mais ampla e variável fosse desejada, como em automóveis, houve outro sistema com o uso de um tubo alongado, de comprimento entre 6 e 12 polegadas, feitos normalmente de metal ou cerâmica, com uma tampa metálica na face interna à câmara de combustão, que permitia alterar o posicionamento junto ao do elemento aquecedor (normalmente uma lamparina a querosene) de forma a variar o "avanço" da ignição de acordo com a faixa de rotação mas, tanto pela necessidade de um aquecimento mais prolongado quanto pela baixa durabilidade desses tubos logo sucumbiu à ignição por faísca, enquanto os motores que usavam o tubo de formato esférico chegaram a disputar mercado com os pioneiros do Diesel.

Convém destacar que uma injeção-piloto de algum combustível líquido não era necessária ao operar com combustíveis gasosos nesse tipo de motor, ao contrário do que ocorre no ciclo Diesel. Também apresentava resultados satisfatórios ao operar com combustíveis inusitados que iam de banha de porco pura até o creosoto, um óleo que pode ser obtido da combustão incompleta da madeira (nesse caso é conhecido também como "alcatrão vegetal") e do carvão mineral, muito conhecido pelas propriedades medicinais e aplicações na indústria alimentícia substituindo o processo tradicional de defumação na conservação de carnes, e dando o sabor característico ao conhaque de alcatrão São João da Barra.

Apesar da consolidação do óleo diesel como combustível mais usado nesse tipo de motor a partir da misteriosa morte do Dr. Rudolf Diesel em 1913, não é tão apurado se referir aos mesmos como "motores a (óleo) diesel", e uma rápida observação do layout predominante já é suficiente para evidenciar diferenças: para simplificar o processo produtivo, o mais comum era que os motores de ignição por tubo quente fossem 2-tempos, como em motocicletas e motosserras com motor de ignição por faísca, mas dispensava o compressor mecânico  (popularmente conhecido como "blower" ou "supercharger") essencial para gerar a pressão de admissão necessária a um motor Diesel 2-tempos como os conhecidos Detroit Diesel lançados em 1938.

Entre aplicações notáveis, um dos exemplos mais emblemáticos era o motor 2-tempos dos tratores alemães Lanz-Bulldog, cuja produção foi licenciada também à fábrica polonesa de tratores Ursus (que ainda segue em atividade mas hoje não faz mais motores de ignição por tubo quente, usando motores Diesel tradicionais), à francesa SNCAC (Société Nationale de Construction Aeronautic du Centre) e à estatal argentina I.A.M.E. (Industrias Aeronáuticas y Mecânicas del Estado), além de uma sucursal espanhola que seguiu produzindo o Bulldog até 1963, quando a John Deere, que havia incorporado a Lanz em 1956, acabou por sepultar a lendária marca que tanto contribuiu desde 1921 para a mecanização da agricultura alemã.

O vídeo abaixo, mais uma riqueza do YouTube, mostra como era dada a partida num Lanz-Bulldog, onde se pode notar o inusitado uso do volante e da coluna de direção para girar o volante do motor ao invés de recorrer a uma manivela como era mais usual...
Alguns tratores Lanz-Bulldog e Ursus com motor de ignição por tubo quente chegaram a operar comercialmente no Brasil até a década de 80, mas a consolidação dos motores Diesel no mercado e a falta de peças de reposição em um cenário de economia fechada e pesadas restrições à importação de componentes mecânicos contribuiu para a decadência dos mesmos, apesar dos esforços de alguns entusiastas em manter exemplares preservados em plenas condições operacionais.

Embora a partida a frio pudesse ser considerada um tanto trabalhosa, foi um sistema muito popular também nos países escandinavos, sendo a Suécia um reduto de fabricantes devotados a esses motores, como a Bolinder (detentora de 80% do mercado mundial de motores náuticos durante os anos 20, e incorporada pela Volvo em 1950) e a Pythagoras, que produziu motores com as marcas Fram para o mercado interno sueco e Drott mais voltada à exportação, entre 1908 e 1979, sendo portanto o último fabricante desse tipo de motor em escala comercial. Podendo funcionar por horas e até dias a fio logo após a partida, ainda era muito apreciado para uso em grupos geradores e embarcações. Vale destacar que ainda há até mesmo alguns barcos antigos ainda em operação com motores de ignição por tubo quente já centenários mantendo o motor original, o que acaba por atestar a confiabilidade desses hoje exóticos engenhos.

Vale recordar que antes mesmo do Dr. Rudolf Diesel concluir o primeiro protótipo do que hoje se conhece como "motor Diesel" em 1897, os britânicos Richard Hornsby e Herbert Akroid Stuart fizeram experiências com motores de ignição por tubo quente convertidos à ignição por compressão e injeção direta no ponto morto superior entre 1890 e 1893, mas desistiram por considerar o custo demasiadamente elevado e os recursos técnicos da época pouco confiáveis para garantir o nível de precisão adequado caso decidissem pela produção seriada do motor a óleo pesado que desenvolviam.

7 comentários:

  1. A alguns anos atrás cheguei a ver um motor de Lanz Bulldog adaptado para ser usado num gerador. O trator mesmo já nem existia mais, só sobraram o motor e o volante usado para dar a partida.

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  2. Meu avô materno já havia me falado sobre um trator polonês parecido com esse Lanz Bulldog, mas que tinha uma vela para dar a partida com gasolina e depois passava para o diesel. Diz ele que já chegou a ver um rodando com botijão de gás P-45 e depois da partida ainda continuava funcionando mesmo quando a vela era desenergizada.

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  3. Kamikaze, excelente texto, muito rico e esclarecedor, além de conciso. Gosto muito do assunto "motores", sejam eles de qualquer tipo. Pouco se fala nos motores de ignição por tubo quente, ao menos no Brasil, e esses motores tiveram um papel muito importante no desenvolvimento dos motores de combustão interna, nas áreas industrial, agrícola e dos transportes. Foi uma boa surpresa encontrar seu blog. Valeu!

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    1. Não é incomum que os motores de tubo quente sejam confundidos com os do ciclo Diesel, e por isso acaba se falando pouco neles por aqui. Eu mesmo já cheguei a ver motores de tubo quente identificados incorretamente como Diesel 2-tempos num museu que faz parte do instituto de engenharia duma universidade federal, onde seria de se esperar que primassem mais pelos detalhes...

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  4. Muito bom o texto! Eu sou um desses "entusiastas" que você cita. No meu canal do youtube tem alguns vídeos de Ursus e Lanz, reforma e funcionamento. https://www.youtube.com/user/lucassburn/videos

    Vale lembrar que além da Lanz, ouve marcas como Landini (italiana), Vierzon, Le percheron, Field Marshall entre outras, todas com o mesmo sistema de motor.

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    1. Pelo que eu me lembre, o Field Marshall na verdade usava um motor Diesel mesmo. Quanto ao Le Percheron, era uma versão feita sob licença de um projeto da Lanz.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html