sábado, 17 de agosto de 2019

Uma reflexão sobre o biometano e oportunidades perdidas para consolidar como um combustível de integração do Mercosul

Tanto a nível do Brasil quanto da Argentina, que bem ou mal acabam exercendo grande influência em outros mercados de exportação regional, é comum se deparar com utilitários de pequeno porte como a Fiat Strada e o Renault Kangoo equipados com kit de conversão para gás natural, eventualmente disposto sob o assoalho do compartimento de carga para minimizar intrusões que possam caracterizar alguma interferência sobre a capacidade volumétrica. O impacto do peso agregado por esse recurso, é no entanto inevitável, podendo se tornar um estorvo no caso do combustível alternativo não estiver disponível para reabastecimento ao longo de uma determinada rota. Há de se considerar ainda o custo inicial da conversão para gás natural, bem como a diminuição da vantagem no preço em comparação à gasolina nos últimos anos, mas diante de dificuldades que surgiram em veículos leves não só diante das restrições burocráticas ao uso de motores Diesel no Brasil mas também da crescente sofisticação técnica que também tem se refletido na diferença de custo dessa opção em segmentos de entrada na Argentina, bem ou mal o gás natural a ser complementado pelo biometano tem perdido oportunidades para ser consolidado como um combustível de integração do Mercosul.

Dada a oferta do gás natural ainda um tanto restrita geograficamente e concentrada em alguns centros regionais, somando-se a um aparente desinteresse dos fabricantes de veículos em expandir a oferta de motores Diesel mesmo em modelos que poderiam ter essa opção como seria o caso das versões 4X4 de alguns SUVs compactos como o Renault Duster, já faz ainda mais sentido destacar que o Brasil e a Argentina como potências agropecuárias acabam tendo uma quantidade considerável de resíduos que poderiam muito bem ser aproveitados como matéria-prima para a produção de biogás/biometano e até valer-se dessa opção tanto para suprir uma demanda que poderia surgir em localidades sem acesso direto a ramais dos principais gasodutos quanto para complementar a oferta do gás natural importado principalmente da Bolívia. Naturalmente, nem todos os operadores iriam estar plenamente satisfeitos com a opção por um combustível gasoso, não só devido ao acréscimo de peso e eventuais impactos na capacidade de carga dos veículos mas também por não ser tão fácil de efetuar procedimentos como transferir um gás sob alta pressão de um reservatório eventualmente improvisado para o tanque de combustível como se faz frequentemente com gasolina, óleo diesel e etanol. E mesmo que possa estar longe de ser incontestavelmente a melhor opção para todas as condições operacionais, não deixa de ser compreensível que a posição consolidada do gás natural como um quebra-galho para economizar diante de restrições ao Diesel baseadas nas capacidades de carga e passageiros e no sistema de tração já pudesse ser mais reconhecida como um pretexto válido para que o biometano conquiste espaço no mercado brasileiro.

Além de resíduos agropecuários e esgoto, outras oportunidades de promover uma redução nos custos de combustíveis a serem destinados a serviços essenciais são literalmente jogadas no lixo. A matéria orgânica contida no lixo doméstico, cujo manejo em aterros sanitários devidamente licenciados reduz os riscos de contaminações do solo e lençóis freáticos, é outra importante fonte de biometano que já é aplicada comercialmente ao menos no estado do Rio de Janeiro e em fase de implantação no Ceará, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Para as condições operacionais de caminhões de coleta de lixo, e recordando também que a Mercedes-Benz do Brasil chegou a produzir motores a gás natural para uso em caminhões e ônibus, bem como o fato da Cummins ter versões movidas a gás baseadas no mesmo bloco de alguns motores turbodiesel que eram fornecidos para a Ford usar na linha de caminhões que era fabricada até pouco tempo atrás no Brasil, chega a ser no mínimo intrigante que poucos esforços tenham sido direcionados a essa alternativa que poderia representar economia e um fechamento mais efetivo dos ciclos do carbono e do nitrogênio na atmosfera. A possibilidade de reabastecer durante as paradas para descarga no local de destinação final dos resíduos, onde também ocorreria a produção do biometano, acabaria otimizando a operação dos veículos, além do fato de predominar a injeção do gás no coletor de admissão formando mistura ar/combustível e as taxas de compressão menores em comparação à de um motor Diesel já dispensarem a complexidade de sistemas de controle de emissão de óxidos de nitrogênio (NOx) como o SCR usado tanto nos Mercedes-Benz Atego Bluetec5 quanto na última geração brasileira do Ford Cargo, para não entrar no mérito do gás natural de origem fóssil ou da eventual substituição por biometano já serem supridos ao motor na fase de vapor, minimizando ao máximo as condições para formação de material particulado. Eliminando também a necessidade do DPF, constantemente apontado como o principal empecilho para que se venha a usar proporções de biodiesel acima de 20% (B20) nas novas gerações de motores Diesel em função de dificuldades na vaporização de uma quantidade de combustível a ser injetada diretamente nesse filtro para promover a autolimpeza forçada ou "regeneração", é uma opção que não deixa de ser competitiva para diminuir a pressão sobre a disponibilidade do óleo diesel convencional para aplicações utilitárias.

No caso do Uruguai, ainda dependente majoritariamente de fontes de energia importadas mesmo com o destaque na produção agropastoril que a princípio poderia suprir uma parte expressiva da demanda por combustíveis, o gás natural não é usado normalmente para fins veiculares, de modo que desde a imposição de sobretaxas a automóveis com motores Diesel houve uma concentração excessiva sobre a gasolina como se alegava haver anteriormente com relação ao óleo diesel convencional. Diga-se de passagem, tomando por referência o Renault Mégane III que teve entre as opções de motor em outros mercados o K4M de 1.6L a gasolina também usado no Uruguai e o K9K turbodiesel de 1.5L sendo que ambos compartilham um bloco com o mesmo projeto básico, a princípio poderia ser interessante valer-se do menor consumo de combustível em volume proporcionado por um motor turbodiesel em comparação à ignição por faísca, embora não se possa negar que a compressibilidade superior do gás natural até mesmo comparado ao etanol pudesse se tornar atraente como um pretexto para manter um motor a gasolina ou "flex" obsoleto em linha e abusar do empobrecimento da mistura ar/combustível para aumentar o rendimento em km/m³. E dada a força da pecuária no Uruguai, que é o país com o maior consumo de carne per capita, seria até bastante justificável que fosse fomentada a produção de biometano de forma análoga ao que se fez com o etanol durante a vigência do ProÁlcool no Brasil, embora restrições arbitrárias ao Diesel possam vir a se tornar um tiro no pé em algum momento. E a afinidade cultural com a Argentina, que é historicamente um dos mercados mais importantes a nível mundial para o gás natural veicular apesar da lembrança ainda muito viva de motores Diesel rústicos como o Indenor XD2 que aparentava predominar em clássicos como o Peugeot 504 durante os verões em Santa Catarina até poucos anos atrás, chega a ser até certo ponto surpreendente que a experiência argentina com o gás natural não tenha exercido ao menos por enquanto alguma influência sobre o mercado uruguaio.

Há ainda que se considerar diferentes abordagens tanto de governos quanto de fabricantes no tocante ao gás natural, destacando o caso de modelos como a atual geração do Volkswagen Polo que tem na Europa a opção por versões configuradas de fábrica com o motor 1.0 TGI otimizado para operar com o gás natural como combustível primário e com apenas uma pequena reserva de gasolina para uso em emergências ou deslocamentos até o posto de abastecimento de gás mais próximo. Semelhante ao 1.0 TSI que no Brasil é usado em versões flex, a princípio seria pouco provável que chegasse a ser usado tanto localmente quanto em mercados de exportação regional que atualmente dispõem somente do 1.6 MSI calibrado para operar somente com gasolina, e a isso pode-se atribuir principalmente o custo inicial que mantém a competitividade do motor maior e à primeira vista mais defasado em virtude de não dispor do turbo e da injeção direta presentes no TSI e no TGI. Lembrando do escalonamento das alíquotas de alguns impostos de acordo com a cilindrada no Brasil, acabam não tendo o mesmo efeito em outros países do Mercosul como é o caso da Argentina e do Uruguai, então não seria exatamente uma surpresa que prevalecesse o MSI e um simples empobrecimento da mistura ar/combustível caso venha a ser replicada a estratégia de oferecer versões de algum modelo configuradas para uso do gás natural e eventual substituição pelo biometano.

Naturalmente, nem todos os segmentos seriam beneficiados tão significativamente por uma expansão do gás natural devido a especificidades operacionais mesmo que a viabilidade técnica exista, como por exemplo ônibus de turismo e viaturas de bombeiros. Por exemplo, apesar de tanto Scania quanto MAN/Volkswagen usarem blocos idênticos aos dos motores Diesel nos de ignição por faísca focados na operação com gás natural, o peso e volume dos reservatórios impacta a capacidade de carga e pode representar desde a inconveniência do menor volume dos bagageiros num ônibus turístico até mesmo a diferença entre a vida e a morte caso falte espaço para transportar algum insumo ou equipamento num caminhão de bombeiros. Teoricamente poderia ser convidativo o uso do gás natural liquefeito (GNL) por proporcionar a capacidade de armazenar uma mesma quantidade de combustível em peso num volume menor em comparação ao gás natural comprimido (GNC), mas a necessidade de manter o gás refrigerado (normalmente valendo-se de uma camada de nitrogênio líquido entre o reservatório do GNL e o invólucro externo) torna as operações de abastecimento mais complexas enquanto a necessidade de ventilar diretamente à atmosfera tanto os vapores de combustível quanto dos fluidos criogênicos usados para preservá-lo em baixas temperaturas a bordo representam um maior risco de explosão que é indesejável ao transportar passageiros leigos sem familiaridade com procedimentos de segurança e inaceitável num veículo de emergência que vá precisar operar junto a focos de incêndio.

Novos desafios tem feito com que o Diesel seja posto em xeque em determinados segmentos, mesmo que em outros permaneça praticamente incontestável, tomando por exemplo versões regionais do SUV compacto Peugeot 2008 feitas no Brasil que não oferecem nem sequer para exportação a opção pelo motor 1.6 HDi que equipa similares de fabricação européia enquanto no caso do furgão de porte médio Peugeot Expert montado no Uruguai esse seja o único motor oferecido. Nesse caso é evidente a consolidação em poucas faixas de cilindrada como uma estratégia para assegurar a sobrevida do Diesel apoiando-se numa otimização da escala de produção tanto de motores quanto dos sistemas de controle de emissões associados, em contraste a uma maior variedade que ainda persiste na ignição por faísca motivada principalmente pelos custos menores de produção de motores básicos. Enfim, em meio à crise argentina que dificulta a aquisição de um motor mais caro e sofisticado, o gás natural e o biometano teriam perspectivas de crescimento atendendo a motores rústicos como um combustível de integração regional para o Mercosul, mas não convém descartar logo de antemão os motores Diesel...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja bem-vindo e entre na conversa. Por favor, comente apenas em português, espanhol ou inglês.

Welcome, and get into the talk. Please, comment only either in Portuguese, Spanish or English.


- - LEIA ANTES DE COMENTAR / READ BEFORE COMMENT - -

Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html