domingo, 25 de agosto de 2019

Seriam os motores 2-tempos de ignição por faísca tão injustiçados quanto os Diesel?

Tendo marcado época em automóveis como a DKW-Vemag Vemaguet e em motocicletas, destacando por exemplo as Yamaha RD 135 e DT 180, os motores 2-tempos de ignição por faísca também foram demonizados em função das emissões como hoje ocorre com os Diesel. Com características técnicas mais simples, dispensando por exemplo toda a parafernália referente a válvulas de admissão e escape de acionamento mecânico, não se pode negar uma eventual dificuldade em estabelecer algum grau de controle mais preciso de parâmetros do funcionamento em comparação a um motor 4-tempos também de ignição por faísca (ciclo Otto), além de serem mais otimizados para operar em regimes de rotação mais estreitos de acordo com o dimensionamento dos pórticos de admissão, transferência e escape em contraponto à possibilidade de variar a duração de abertura das válvulas que tem proporcionado mais elasticidade a alguns dos novos motores 4-tempos. Mas será que a simplicidade construtiva beirando o extremo nos motores 2-tempos de ignição por faísca pode mesmo ser considerada um motivo para que passassem a ser vistos como uma ameaça ao meio-ambiente de forma análoga à que hoje se trata os motores Diesel?

Mesmo que pareça desafiador tentar fazer com que um motor 2-tempos permaneça competitivo frente às exigências mais recentes de um público generalista desacostumado por exemplo com a brutalidade de uma Yamaha RD 350 LC, não faria tanto sentido ignorar os méritos que alguns sistemas aplicados a esse tipo de motor estejam de todo obsoletos e incapazes de proporcionar alguma adaptabilidade às condições operacionais modernas. Tomando por exemplo o YPVS que modula a abertura dos pórticos de escapamento de acordo com a faixa de rotação, favorecendo o torque em baixos e médios regimes, já se pode considerar eventuais benefícios no tocante à elasticidade tão desejável que fez dos motores 4-tempos uma solução hegemônica em veículos mais modernos. Outro ponto bastante controverso em relação aos 2-tempos é a lubrificação, que podia ser feita tanto por mistura do óleo à gasolina quanto com dispositivos automáticos para injeção do óleo no cárter em proporções variáveis com relação ao combustível como o que a Yamaha denominava Autolube. Em caso de falhas no Autolube, ou ainda se o proprietário optasse por desabilitar o sistema para aproveitar a tomada de força da bomba de óleo para adaptar acionamento mecânico do YPVS no lugar do original eletrônico, um motor 2-tempos era capaz de permanecer operando com o chamado "premix" de gasolina e óleo mais próximo do normal.

Há de se destacar também outros fatores como a adaptabilidade ao uso de combustíveis alternativos, destacando o etanol e o gás natural como os mais relevantes junto à ignição por faísca de um modo geral. É bastante comum o uso de etanol ou até metanol em aplicações esportivas como a arrancada, não sendo diferente no tocante a motores 2-tempos, e a melhor miscibilidade do etanol com os óleos lubrificantes de base vegetal normalmente recomendados para kart em comparação a outros de base mineral ou alguns sintéticos se torna especialmente atrativa. No entanto, o mais frequente nesse caso é que o óleo seja misturado diretamente ao combustível, até mesmo para evitar o peso adicional do Autolube e o arrasto causado pela bomba sobre o motor que por menor que seja ainda pode fazer uma diferença em aplicações de alto desempenho. Não é viável ser tão categórico para afirmar que valha a pena suprimir o sistema de lubrificação automática em todas as condições de uso nos motores mais antigos, mesmo que eventuais preocupações com a diferença no teor de etanol misturado à gasolina comum sejam legítimas, além do mais que numa competição em pista fechada onde ao menos em teoria vá haver tanto uma operação num regime de rotação mais constante quanto um controle mais rigoroso das especificações do combustível as condições tornam-se um tanto mais previsíveis diante do que se observaria no uso normal de um veículo semelhante em vias públicas onde a maior variação das condições de tráfego e das velocidades médias faça com que a variabilidade da dosagem de óleo seja desejável para usar o lubrificante da forma mais eficiente e também reduzir uma emissão exagerada da fumaça azulada característica do uso de um óleo de especificações mais modestas numa proporção mais alta do que o necessário em determinadas condições.

Já com o gás natural, um motor 4-tempos permanece mais fácil de alcançar resultados satisfatórios, o que pode ser atribuído em grande parte à duração menor do chamado "cruzamento" entre as fases de escapamento de um ciclo e de admissão subsequente em preparação para o próximo. Mesmo que seja um motor mais antigo como o Thriftpower Six argentino que a Ford ofereceu na F-1000 com injeção multiponto na 2ª geração do modelo, também é relevante destacar que em motores 4-tempos a fase de escapamento ocorre num curso ascendente dos pistões, enquanto a admissão é em curso descendente, ao contrário do que ocorre num 2-tempos em que a transferência de mistura ar/combustível e óleo faz a transferência do cárter para os cilindros durante um curso ascendente simultaneamente à fase de escapamento e contribuindo para gerar uma pressão de "lavagem" de modo a expelir gases resultantes da combustão anterior. Dada essa característica, mesmo um kit de conversão para gás natural de 5ª geração com injeção sequencial e injetores individuais para cada cilindro montados no coletor de admissão se torna incapaz de minimizar esse efeito num motor 2-tempos, enquanto num 4-tempos já é viável programar a injeção para ocorrer apenas após o fim do "cruzamento" quando a(s) válvula(s) de escape se encontrem fechadas, com menos perda de mistura.

A discreta presença da injeção direta junto aos motores 2-tempos, mais concentrada nos motores de popa para pequenas embarcações, também é digna de nota sobretudo devido a aplicações militares da tecnologia E-TEC aplicada aos motores Evinrude para prover alguma adaptabilidade para a operação com combustíveis alternativos. Por mais que nos motores civis não seja especificada essa importante característica, tendo em vista que acabam não estando sujeitos a protocolos de segurança que vetam o embarque de gasolina a bordo de embarcações da Marinha dos Estados Unidos dado o maior risco de explosão, poucas são as alterações efetuadas no hardware do sistema de injeção para habilitar o uso de querosene como combustível primário e eventualmente até óleo diesel convencional por períodos curtos em caso de extrema necessidade, podendo até ser traçado um paralelo com a solução adotada nos motores Hesselman valendo-se justamente da injeção direta para conciliar o uso de combustíveis pesados à ignição por faísca num motor 4-tempos. Mesmo que toda a expectativa fomentada durante as décadas de '80 e '90 em torno da solução proposta pela empresa australiana Orbital Engines tenha sido deixada de lado no segmento automotivo, apesar do entusiasmo inicialmente demonstrado por fabricantes como a Ford após pelo menos duas sequências de testes na Europa e na Austrália, no fim das contas são inegáveis as contribuições para redução do consumo de combustível e das emissões de hidrocarbonetos crus, além da lubrificação automática sendo imprescindível aos motores 2-tempos de injeção direta também minimizar contaminações referentes ao óleo tanto no ar quanto nos ambientes aquáticos considerando as aplicações náuticas.

Outro aspecto a se considerar seria uma eventual aplicabilidade a automóveis híbridos como o Toyota Prius C, tendo em vista não só a expectativa por uma economia de combustível que estaria de acordo com os avanços da injeção direta no tocante à redução do consumo e eventuais vantagens que possam se destacar na operação mais intermitente do motor a gasolina nesse tipo de veículo em meio a um trânsito mais travado. Só de lembrarmos que o circuito de lubrificação por recirculação num motor 4-tempos precisa ser pressurizado para que o óleo chegue às partes mais altas, já seria de se considerar a maior simplicidade de um motor 2-tempos cuja lubrificação não deixa de ser mais instantânea tendo em vista que se concentra em partes mais baixas, ainda que o óleo precise ser reposto periodicamente em função de ser consumido durante a combustão. E mesmo essa situação aparentemente incômoda pode ser facilmente justificada até com o viés ecológico normalmente atribuído aos híbridos, afinal de contas eliminaria o risco de um descarte incorreto de óleo lubrificante usado que possa contaminar o solo e lençóis freáticos. Outro ponto de extrema relevância a se considerar seria a maior facilidade para a partida com etanol ao se recorrer à injeção direta, dispensando a necessidade de pré-aquecer os injetores como já se faz em veículos "flex" convencionais com injeção sequencial nos pórticos de válvula e estaria em análise para incorporação em modelos híbridos à medida que a Toyota tem considerado a viabilidade futura do etanol.

A consolidação da injeção direta no mercado automobilístico brasileiro, com destaque para modelos como o Volkswagen Virtus cujo motor 1.0TSI encontrou boa receptividade com o público generalista mas permanece uma raridade em aplicações específicas como táxis devido à dificuldade na conversão para o gás natural que ainda é bastante apreciado nesse segmento, leva a crer que a competitividade pudesse ser nivelada e facilitar uma quebra da hegemonia dos motores 4-tempos. No entanto, o fato da injeção direta na linha Volkswagen estar mais associada ao turbo por dispensar um enriquecimento da mistura ar/combustível que de outro modo seria essencial para contornar o risco de pré-ignição traz um possível contraponto devido à lubrificação por recirculação do óleo fazer com que motores 4-tempos sejam os únicos dentre os de ignição por faísca aptos a recorrer ao turbocompressor devido às características desse dispositivo impossibilitarem que se recorra à lubrificação por salpico com uma pequena quantidade de óleo independente do circuito principal de lubrificação do motor. Um possível cenário em que a competitividade ficaria mais equilibrada pode ser analisado ao observarmos o fato da Ford ter insistido na aspiração natural quando passou a usar injeção direta no motor Duratec de 2.0L que hoje no Brasil é oferecido somente no EcoSport Storm, e portanto a viabilidade técnica para que um motor 2-tempos mais compacto e leve proporcione desempenho idêntico em condições de uso variadas estaria bastante convidativa.
Deixando um pouco em segundo plano a questão da injeção direta, mas considerando o comando de válvulas duplo com variação tanto na admissão quanto no escape usado no motor Duratec, convém traçar um paralelo entre o efeito de um "EGR interno" proporcionado por alterações no "cruzamento" de válvulas forçando de forma imediata a recirculação de uma parte dos gases de escape já durante o curso de admissão num motor 4-tempos e a contrapressão provocada num 2-tempos pela presença de uma câmara de expansão no escapamento, ainda que nesse caso a intenção seja mais de forçar um retorno de mistura crua para os cilindros antes que os pistões cubram os pórticos de escapamento. Na prática, mesmo que a geometria das câmaras de expansão seja fixa e otimizada para melhor resposta em algum regime de rotação específico, cabe retomar o exemplo da Yamaha RD 350 e do sistema YPVS que de certa forma acaba complementando o que se poderia esperar de algo análogo à função do comando de válvulas variável num motor 4-tempos. É justo considerar também a possibilidade de uma restrição variável ao fluxo pelos pórticos de escape possa de certa forma atenuar a falta do efeito de freio-motor tão característica dos motores 2-tempos e que os coloca em desvantagem no tocante à segurança, bem como salientar que os carburadores da época da RD hoje estando fora de cogitação caso ocorra um retorno triunfal dos 2-tempos a segmentos generalistas tornariam óbvia a transição para a injeção eletrônica, e com ela o corte de combustível em desaceleração (DFCO - deceleration fuel cut-off) útil não só para redução de consumo e emissões mas também proporcionando de certa forma um freio-motor mais efetivo quando combinado a outras soluções técnicas que acabariam sendo otimizadas pelo gerenciamento eletrônico.

Relegados ao esquecimento por uma parcela expressiva do público generalista após a Volkswagen ter comprado a Auto Union na Europa e a Vemag no Brasil e encerrando a produção local da linha DKW em '67, os motores 2-tempos que fizeram história em modelos como o DKW-Vemag Belcar ainda são fascinantes, e a falta de interesse em aplicá-los alguns novos desenvolvimentos centrados em motores 4-tempos foi o principal impedimento para que tivessem uma continuidade no segmento automotivo. A simplicidade construtiva evidentemente impôs algumas limitações, que ainda seriam facilmente superáveis com o mínimo de boa-vontade para reconhecer tanto méritos dessa configuração de motor quanto soluções que pudessem mantê-los competitivos. Enfim, considerando que tanto os motores 2-tempos de ignição por faísca quanto os Diesel tem especificidades que possam em algum momento soar mais difíceis de lidar no tocante ao controle de emissões e acabam sendo vistos com desdém por muitos que alegam uma suposta "consciência ecológica", acabam efetivamente sendo injustiçados de uma forma praticamente idêntica...

2 comentários:

  1. Já fiz essa pergunta aqui, mas vou repetir: um 2T ignição por centelha, mas com óleo no cárter, injeção direta, turbo e com 4 válvulas de escape, seria "o melhor de dois mundos", porque não faria fumaça, ao não ter lubrificante misturado ao combustível e também permitir a lubrificação do turbo, enquanto as válvulas permitiriam uma melhor frenagem como nos 4T, e ainda teria o rendimento mecânico de um 2T, ou seria o caos total, por misturar características de 2 sistemas diferentes?
    Os Detroit's eram Uniflow e só caíram porque não possuíam bomba injetora e não tinham avanço do ponto de injeção...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. No caso dos Detroit, usavam um sistema de unidades de injeção integrando bicos e bombas individuais para cada cilindro. Quanto a um motor 2-tempos de ignição por faísca com cárter isolado semelhante ao dos Diesel 2-tempos, a maior complexidade eventualmente não se justificasse porque ainda exigiria um blower para gerar a pressão de admissão necessária. Mas já seria o caso de considerar nem tanto a simplicidade inerente aos motores 2-tempos, e mais um eventual benefício no tocante à relação peso/potência que justificasse o custo de produção comparável ao de um motor 4-tempos.

      Excluir

Seja bem-vindo e entre na conversa. Por favor, comente apenas em português, espanhol ou inglês.

Welcome, and get into the talk. Please, comment only either in Portuguese, Spanish or English.


- - LEIA ANTES DE COMENTAR / READ BEFORE COMMENT - -

Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html