sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Do calhambeque ao SUV: uma reflexão sobre aspectos utilitários na concepção de alguns veículos

O mercado automobilístico sempre apresentou uma série de desafios, nem sempre abordados da forma mais ortodoxa possível mesmo em modelos que obtiveram um grande sucesso comercial como o Ford Modelo T, e ainda hoje pode-se dizer sem medo de errar que a idéia por trás de um veículo "popular" é uma das mais complicadas para atender devido à grande quantidade de variáveis definindo os principais perfis de utilização. Naturalmente, considerando o ciclo de produção do calhambeque lançado em 1908 estendeu-se até 1927 basicamente sem alterações tão profundas, o simples fato de ter sido lançado num período em que a estrutura viária ainda era extremamente precária mesmo no país que se encaminhava para se consolidar como a maior potência ocidental pressupunha a efetiva necessidade de uma aptidão a trafegar por trechos um tanto inóspitos para a imensa maioria dos automóveis modernos. A maior ironia em meio às mudanças ocorridas ao longo desses mais de 100 anos é que hoje as pretensões aventureiras tenham passado à condição de um certo status alicerçado em alguns modismos que acabam se afastando do orçamento de uma parcela expressiva do público que atualmente consome automóveis "populares".
Também é pertinente fazer uma analogia de como um mesmo conceito básico aplicado aos processos de fabricação de um calhambeque na época persistem na estratégia corporativa da Ford, considerando que o modelo mais importante da linha em âmbito global hoje é a pick-up média Ranger cuja concepção de chassi separado da carroceria e motor longitudinal com tração predominantemente traseira (lembrando a disponibilidade das versões 4X4) por eixo rígido com suspensão por molas semi-elípticas permaneceu em que pesassem as evoluções mais drásticas no tocante à suspensão independente dianteira e sistemas como direção e freios. Salientando especificamente o caso brasileiro, no qual uma pequena aristocracia ainda era quem tinha mais facilidade para adquirir automóveis na época do Ford T assim como hoje as pick-ups médias foram alçadas da posição de instrumento de trabalho a uma condição mais prestigiosa, desdobra-se uma perspectiva ainda mais favorável a equiparações mesmo entre esses tipos de veículos que à primeira vista podem parecer mais diferenciados do que somente a idade poderia sugerir, levando em consideração também o que ocorre nos Estados Unidos onde da época de lançamento do Ford T até o relançamento da Ranger como um modelo mundial as pick-ups tornaram-se mais favorecidas que um automóvel tanto no âmbito de metas de redução de consumo de combustível e no controle de emissões quanto por uma tributação mais favorável dada a classificação como "caminhão leve". Apesar de haver circunstâncias que justifiquem eventuais privilégios a veículos de uso misto em detrimento de outros mais especializados, bem como de uma maior aptidão a condições de uso severas que poderia atender mais satisfatoriamente a uma grande parte dos atuais consumidores de carros "populares" mundo afora, também não se pode ignorar a existência um comodismo motivando fabricantes como a Ford a darem uma maior prioridade a caminhonetes como a Ranger não só pela lucratividade mas de certa forma também por não fugir tanto de um layout que a empresa está bem acostumada a aplicar aos principais produtos.

Às vezes uma abordagem mais complexa pode soar mais favorável para atender a tantas expectativas de consumidores generalistas na cidade ou no campo, como foi o caso do Fusca se considerarmos a origem do projeto e as condições da Alemanha durante o período entre-guerras e como algumas características do modelo a exemplo da suspensão independente nas 4 rodas e do motor refrigerado a ar não eram tão usuais em automóveis. De fato, o modelo que deu origem à Volkswagen que nós conhecemos hoje fez um grande sucesso mundo afora, e permanece entre as principais referências para mensurar o quão bem sucedidos comercialmente foram alguns veículos mesmo dentre outras categorias como motocicletas e caminhões no Brasil, em que pese a configuração de motor traseiro antes decisiva para cativar o público interiorano devido à boa aptidão para transposição de trechos não-pavimentados com as mais diferentes topografias mesmo contando com tração somente traseira ter sido abandonada nos veículos compactos generalistas de projeto mais recente em grande parte devido a eventuais empecilhos que poderia causar à acomodação de bagagens e pequenas cargas. Naturalmente, a disposição do motor e a configuração de tração não são os únicos fatores que definem a aptidão de um automóvel com pretensões populares para transpor trechos irregulares, tomando por referências o Citroën 2CV com motor e tração dianteiros que em alguns países foi uma pedra no sapato do Fusca e o polêmico Gurgel BR-800 com motor dianteiro e tração traseira que visava preencher a lacuna deixada pelo primeiro encerramento da produção nacional do Fusca.

Outro aspecto que chama a atenção foi como aspectos utilitários que efetivamente preconizavam o uso de soluções técnicas mais modestas como no caso do Jeep CJ-5 deram lugar a uma busca por afirmação do proprietário, nem sempre refletida nas especificações dos SUVs da moda como o Jeep Renegade que ao contrário de modelos mais antigos da marca normalmente é mais visto em versões de tração simples, nesse caso dianteira como tornou-se o atual padrão nos modelos generalistas. Enquanto o CJ-5 recorreu a uma configuração que justificava principalmente as versões de tração simples serem vistas como uma espécie de equivalente aos calhambeques, tendo em vista o uso não só do chassi separado da carroceria e do motor longitudinal, à tração traseira somava-se a suspensão por eixo rígido e molas semi-elípticas em ambos os eixos, e no caso dos 4X4 é conveniente recordar que essa característica foi mais destacada durante o desenvolvimento dos Jeeps originais para atender à demanda das forças militares americanas na II Guerra Mundial. O mais curioso é que, enquanto o CJ-5 chegou a ocupar o posto de veículo mais barato do Brasil durante uma parte do ciclo de produção continuado pela Ford valendo-se do espólio da Willys-Overland do Brasil enquanto já ocorria uma diferenciação entre soluções "arcaicas" que ainda encontravam um espaço nos utilitários à medida que outras difundiam-se mais entre os veículos leves, hoje um Jeep Renegade que não destoa tanto das características construtivas de um hatch "popular" foi alçado à condição de objeto de desejo da classe média tão somente em função de ser classificado como um SUV até nas versões de tração simples enquanto as 4X4 acabam sendo vistas como uma forma de burlar as restrições ao uso de motores Diesel por já serem homologadas como "utilitário".

A ascensão dos SUVs com um público cada vez mais urbano, motivando inclusive decisões como da General Motors oferecer a geração atual do Chevrolet Tracker produzida no Brasil e na China só com tração dianteira, é um retrato bastante curioso de como as aspirações prestigiosas sobrepõem a forma à função nessa categoria, contrastando com a necessidade de manter a concepção mais "bruta" em outras categorias como as pick-ups médias tomando por referência a Chevrolet S10. Ainda que a percepção de um tamanho eventualmente maior que o verdadeiro e o formato da carroceria fascinem consumidores que suponham estar mais seguros a bordo de um utilitário suavizado como o Tracker e vejam na versão High Country da S10 uma opção à falta de sedãs grandes nas principais marcas generalistas e até certo ponto a influência dos Estados Unidos refletida na aceitação das pick-ups fora do cenário estritamente profissional, a atual prevalência da tração dianteira e da estrutura monobloco nos compactos não justifica a percepção de maior "prestígio" às configurações mais rústicas sem levar em consideração o contexto em que estão inseridas. Enfim, se hoje um layout voltado à eficiência e redução de custos com a tração dianteira e motor transversal é mais apreciado em condições de rodagem não tão pesadas, por outro lado a rusticidade "de calhambeque" não perde espaço nas pick-ups médias e grandes mesmo com o direcionamento de algumas versões mais para transmitir a imagem de estilo de vida ativo que serem efetivamente destinadas ao trabalho pesado para o qual preservam uma inegável aptidão.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html