quinta-feira, 2 de junho de 2016

Uma reflexão sobre a Argentina e alguns erros na política energética

"A grama do vizinho sempre é mais verde que a nossa." O ditado popular define bem alguns tópicos pertinentes aos mercados automotivos tanto brasileiro quanto argentino. Antes mesmo de entrar no mérito da maior liberdade para escolher um veículo movido pelo combustível mais conveniente, é oportuno salientar que entre as décadas de '70 e '90 o consumidor argentino já contava com uma maior variedade de marcas devido ao mercado automotivo mais aberto naquele país, com uma participação expressiva das marcas francesas como a Citroën que se firmou com o icônico 2CV e a Peugeot que teve no 504 um dos maiores sucessos, enquanto o brasileiro por muito tempo demonstrava clara preferência pela Volkswagen. Até a preferência por carros com apenas duas portas é atribuída principalmente ao sucesso do Fusca, mesmo quando refletia-se em segmentos mais prestigiosos como o que era ocupado pelo Santana na época.

Ao contrário da Argentina, que tinha um mercado mais competitivo, a presença do Diesel em veículos leves no Brasil à época da implementação de restrições baseadas nas capacidades de carga, passageiros e tração era mais resumida basicamente a um ou outro Mercedes-Benz, alguns até possivelmente vindos da fábrica instalada na cidade argentina de Gonzales Catán ao invés da Alemanha. A mecanização mais intensa da agricultura no pampa úmido argentino, de certa forma, também pode ter favorecido uma "dieselização" mais precoce por lá, tanto para ampliar a escala de produção dos motores quanto para facilitar a logística de combustíveis e outros insumos. Um caso particularmente digno de nota é o da pick-up Ford F-100, que teve na Argentina já desde a 1ª geração, além dos V8 Y-Block usado nas versões brasileiras, a opção pelo motor Perkins Diesel 4.203 de 4 cilindros em linha e 3.3L (203pol³) com injeção indireta que perdurou até princípios da década de '90 quando passou a acompanhar a oferta de motores da F-1000 brasileira e ter o Perkins substituído pelo MWM D-229-4 igualmente de 4 cilindros mas com 3.9L e injeção direta.
Com uma presença maior da injeção indireta, mais tolerante a variações nas especificações do combustível a ser utilizado, além da rica tradição agropecuária argentina, não seria de se duvidar que tenham ocorrido experiências particulares e insuficientemente documentadas com o uso direto de óleos vegetais como combustível alternativo em reação às crises do petróleo a partir de '73, embora a participação de mercado dos motores Diesel em veículos leves na Argentina só tenha se fortalecido a partir de fins da década de '80 quando passavam a apresentar um funcionamento mais suave em faixas de rotação menos estreitas. Alguns estrangeiros, tanto argentinos quanto paraguaios, além de ao menos um brasileiro residente no Paraguai, já chegaram a me dizer que o preço do óleo de girassol virgem argentino no atacado chega a ser mais em conta que o óleo diesel convencional. A oferta relativamente fácil e abundante de um combustível com custo de produção relativamente baixo e que requer menos insumos químicos e energia para o processamento já seria suficientemente atrativa, mas não se pode deixar de lado que a Argentina também se destaca na produção do biodiesel tendo como principal matéria-prima a soja, e chegou a liderar as exportações desse biocombustível a nível mundial até a Espanha recuar e impor restrições à importação.
Para quem ainda lembra de quando a presença de argentinos na temporada de verão era nítida diante do cheiro de enxofre e óleo queimado proveniente tanto de paus velhos como o Peugeot 504 equipado com o motor Indenor XD3 quanto modelos relativamente modernos como o Alfa Romeo 146 1.9JTD dotado de um motor Fiat "Pratola Serra" pioneiro no uso da injeção eletrônica common-rail em aplicações leves, seria uma opção um tanto óbvia para o governo da Argentina promover o redirecionamento do excedente de biodiesel para atender ao mercado interno, tanto puro quanto eventualmente por meio de uma elevação da mistura obrigatória ao óleo diesel convencional. No entanto, o que se viu foi um enfraquecimento da cadeia produtiva do biodiesel na Argentina durante o mandato presidencial da louca Cristina Kirchner, mesmo quando poderia vir a substituir ao menos em parte as importações de óleo diesel convencional. Pelo visto o alinhamento dela pendia mais para a ditadura chavista da Venezuela, principal exportadora de petróleo e derivados do subcontinente sul-americano, do que para a dedicação do produtor rural argentino.

Ao invés de valorizar o biocombustível mais adequado às condições ambientais das principais regiões produtoras da Argentina, prevaleceu o devaneio kirchnerista de um "resgate emotivo" da fracassada "alconafta", programa de substituição parcial da gasolina por meio da mistura de 15% de etanol, desenvolvido em caráter experimental a partir de '78 na província de Tucumán e expandido em escala comercial por 11 províncias das regiões nordeste, noroeste e litoral argentinos em '81 até ser encerrado durante o governo de Raúl Alfonsín tanto com um viés arrecadatório quanto em reação à diminuição da oferta do etanol anidro motivada por uma queda na produção canavieira argentina por fatores climáticos e da prioridade dada à produção do açúcar na safra '89-'90. O setor sucroenergético argentino concentra-se nas províncias do nordeste e noroeste, com Tucumán como o principal expoente, e foi desenvolvido um tanto tardiamente na década de '30 com a despretensiosa função de substituir as importações de açúcar. Por mais que a ex-presidente Cristina Kirchner alegasse que a produção açucareira apresentava um excedente entre 2013 e 2015, e que o etanol poderia "agregar valor" à atividade canavieira, pode até atender facilmente a mercados regionais mas está longe de ser a melhor opção para a Argentina a nível nacional.

Convém lembrar, no entanto, que alguns erros graves no tocante à segurança energética argentina vem sendo tomados desde '97 durante a presidência de Carlos Menem, quando a tributação sobre veículos novos passou a penalizar aqueles equipados com motores Diesel com uma sobretaxa de 10%. Por mais que o custo de produção ainda relativamente baixo motivado sobretudo pela presença ainda significativa da injeção indireta em motores Diesel para veículos leves ao menos durante os 10 anos seguintes à infeliz medida tenha colaborado para manter a competitividade, uma desconfiança acabou por rondar a indústria automobilística instalada na Argentina. Teve reflexos até mesmo na oferta de veículos de fabricação brasileira destinados à exportação, concentrados em segmentos de entrada nos quais torna-se mais difícil uma amortização do custo representado pela penalidade tributária, e a diminuição em caráter provisório nos impostos incidentes sobre veículos novos implementada no início do governo de Maurício Macri e válida até o final desse mês pouco faz para encorajar um ressurgimento do Diesel fora dos segmentos de luxo e de utilitários.

Até mesmo a Volkswagen começou a deixar o Diesel em segundo plano na Argentina a partir de 2010 quando a Suran, vendida no mercado brasileiro como Spacefox, perdeu a opção do motor 1.9SDI com a reestilização promovida naquele ano. Nem ao menos uma proposta mais utilitária em comparação ao Fox chegou a ser aventada como possível pretexto para que se mantivesse ao menos uma versão Diesel, mesmo que eventualmente aderisse ao downsizing com o motor 1.4TDI de 3 cilindros usado nas antigas versões do Fox brasileiro destinadas à exportação para a Europa. A baixa qualidade do óleo diesel grau 2, com 1500ppm de enxofre e ainda predominante na Argentina, certamente também pesou contra. E mais uma vez caberia entrar no tópico da substituição ao menos parcial do óleo diesel convencional pelo biodiesel, favorecido por ser naturalmente isento de enxofre e portanto dispensar o oneroso processo de dessulfurização requerido para a produção do óleo diesel de grau 3, com 50ppm de enxofre e também conhecido na Argentina como "EuroDiesel".

Também deve-se lançar um olhar criterioso à concorrência com o gás natural veicular, que já era muito popular na Argentina antes de se tornar conhecido do grande público brasileiro. O custo comparativamente baixo de um kit de conversão para GNV, que os argentinos estão mais acostumados a denominar GNC (gás natural comprimido), e a facilidade de adaptação a veículos equipados com motores de ignição por faísca, o tornam uma opção muito popular tanto em modelos mais antigos como o Ford Escort Mk.4 quanto outros de fabricação mais recente como o Citroën Berlingo. Promover uma transição do gás natural de origem fóssil para o biogás/biometano, o que poderia intensificar a competitividade com o óleo diesel também em localidades interioranas, não demandaria modificações mais extensas nos sistemas atualmente aplicados aos veículos convertidos, além da viabilidade para aproveitar como matéria-prima todos os tipos de resíduo gerados nas diversas atividades agrícolas e pecuárias atualmente desenvolvidas no território argentino, mas ainda não pode ser considerado oportuno apresentar o gás como um pretexto válido para pleitear restrições ao Diesel.
Diante de normas de emissões de poluentes cada vez mais rígidas, o gás pode até ser encarado como um importante aliado na redução de emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) ao ser combinado com o óleo diesel convencional ou com o biodiesel e óleos vegetais brutos. Quando administrado num motor Diesel através do coletor de admissão como se faz em motores de ignição por faísca, o gás natural se expande ao absorver ao menos uma parte do calor latente de vaporização presente na carga de ar admitida, o que acaba por diminuir a concentração de oxigênio como faz o EGR através da recirculação de uma parte do fluxo de gases de escapamento. A cadeia de carbono mais curta do metano, principal componente do gás natural, também favorece uma combustão a temperaturas mais baixas, diminuindo não apenas a formação dos NOx mas acelerando a propagação de chama na câmara de combustão. Uma queima mais completa resulta na menor emissão de material particulado, a fuligem em suspensão na fumaça preta visível que por tanto tempo fez a má fama do Diesel como poluidor, e portanto diminui a saturação dos filtros de material particulado (DPF) em veículos mais modernos equipados com esse dispositivo prolongando a vida útil do mesmo e minimizando o gasto de combustível em processos de "regeneração" (autolimpeza) forçada. Destacando o uso do gás natural na produção da maior parte da uréia técnica usada na elaboração do fluido AdBlue, conhecido no Brasil como ARLA-32 e na Argentina como ARNOx-32 e usado para redução catalítica seletiva dos NOx através do sistema SCR integrado ao escapamento de alguns veículos com motor Diesel mais recentes sem trazer nenhum benefício efetivo ao processo de combustão, a aplicação direta do gás natural em conjunto com o óleo diesel, biodiesel e/ou óleos vegetais se mostra razoável.
Dentre os poucos automóveis 0km com motor Diesel disponíveis hoje na Argentina, cabe destacar a Chevrolet Spin brasileira e o Peugeot 308 produzido na Argentina mesmo. No caso da Spin, o motor turbodiesel de 1.3L com 16 válvulas originalmente desenvolvido pela Fiat é notavelmente mais sofisticado que o rústico 1.8L de 8 válvulas a gasolina, equivalente ao "flex" a gasolina e etanol das versões destinadas ao mercado interno brasileiro, o que talvez seja usado também como pretexto para justificar a diferença de preços. Já para a Peugeot, pesa a tradição da marca no desenvolvimento de motores Diesel ainda que estejam hoje mais restritos a segmentos tidos como mais prestigiosos, após tanto tempo que o Grupo PSA Peugeot/Citroën permaneceu tratando com um aparente desprezo os motores de ignição por faísca antes da introdução em 2011 do motor 1.6THP equipado com turbocompressor e injeção direta. Naturalmente, a qualidade um tanto inconstante da gasolina no subcontinente sul-americano e preocupações referentes às misturas com etanol que já não são uma exclusividade brasileira levam alguns fabricantes a optar por uma estratégia mais conservadora, caracterizando um certo grau de incoerência nas esperanças por uma melhoria na eficiência dos motores de ignição por faísca especificamente destinada a minimizar o impacto econômico de restrições ao Diesel em veículos leves.

No segmento dos utilitários-esportivos leves surge um paradoxo ainda maior: a atual geração do Ford Ecosport até tem uma versão equipada com motor turbodiesel disponibilizada na Argentina mas, ao contrário do que se poderia inicialmente supor, é 4X2 enquanto a 4X4 conta somente com o motor Duratec 2.0L a gasolina. Outra situação peculiar é a do Jeep Renegade, que no mercado brasileiro tem justamente na disponibilidade de versões turbodiesel o maior trunfo mas para a Argentina vai apenas com o motor eTorq 1.8L usado em versões "flex" brasileiras e o Tigershark 2.4L destinado exclusivamente a versões de exportação devido a alíquotas menos favoráveis de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) que estariam sujeitas no mercado nacional. Há de se levar em consideração que modelos dessa categoria ficariam reféns das discrepâncias nos padrões de qualidade entre o óleo diesel de graus 2 e 3 ao circular pelo interior da Argentina, não devendo ser desconsiderados os efeitos danosos que o excesso de enxofre provoca sobre os sistemas de controle de emissões incorporados à atual geração de motores Diesel.

Por mais que uma grande parcela da população brasileira nutra uma antipatia pela Argentina, e ao mesmo tempo sinta uma pontinha de inveja pela liberdade que se tem por lá para licenciar veículos de qualquer classe equipados com motor Diesel, algumas observações no tocante à segurança energética revelam tanto alguns acertos invejáveis quanto erros que não deveriam ser replicados. Podemos aprender com os argentinos muito mais do que uma receita de chimichurri...

4 comentários:

  1. Até não vejo tanto argentino farofeiro pelo Guarujá mas já vi alguns carros a diesel de paraguaios na temporada.

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    1. Florianópolis e Balneário Camboriú enchem de argentino, paraguaio, uruguaio, e de vez em quando aparece até boliviano.

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  2. A unos 20 años casi no se via un auto naftero por las calles de Buenos Aires que no fuera un 3cv o un fitito, hazta a unos Falcons le pusieran motor gasolero. Me acuerdo que mi abuelo por parte de madre tenia un Fiat 128 con el motor 1.3 brasileño sacado a un 147 que se lo había estropeado contra un camion, y ya lo he visto usar como combustible aceites viejos de fritar pescado.

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  3. Já trabalhei numa oficina mecânica no litoral norte de Santa Catarina, e posso te dizer que os argentinos não são muito cuidadosos com a manutenção preventiva, e na hora que dá alguma pane já querem fazer gambiarra. Tem que ver quanto carro moderno deles eu já vi usar carburador porque não queriam consertar a injeção eletrônica. Talvez pelos motores a diesel antigos serem mais parecidos com o do trator da chácara do meu avô, já agradava mais aos hermanos.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

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