sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Teria sido o motor Perkins 4-108 subestimado?

Um motor que fez algum sucesso desde aplicações náuticas recreativas como na propulsão auxiliar para veleiros, até outras muito mais exigentes acionando dispositivos essenciais como o ar condicionado nos tanques usados por tropas britânicas na Guerra do Golfo, o Perkins 4-108 teve reconhecimento aquém do que efetivamente merece quando se trata do uso veicular. Embora tenha sido amplamente usado em furgões e outros utilitários especialmente na Inglaterra e na Espanha, servindo também ao Jeep CJ-3B enquanto teve produção espanhola, a oferta como equipamento original em automóveis foi mais restrita a um modelo da Alfa Romeo e outro da SEAT. Mas em que pese um eventual descaso da maioria dos principais fabricantes de automóveis quanto ao Perkins 4-108, o sucesso que alcançou com o uso em adaptações na Espanha até que a "dieselização" ganhasse força a partir da década de '80 na Europa leva a questionar o quão competitivo eventualmente pudesse permanecer já avançando pela década de '90.

Naturalmente, em se tratando de um motor que também atenderia aos outros segmentos que a Perkins já atendia, e nos quais passou a concentrar os esforços após deixar de oferecer motores com certificações de emissões que passaram a se fazer necessárias para homologação em uso veicular, já era mesmo de se esperar que uma certa rusticidade se fizesse presente e permanecesse durante todo o ciclo de produção. E por se tratar de um projeto iniciado na década de '50, ao menos teoricamente não levaria tanto tempo para que começasse a ser visto como defasado por características como o comando de válvulas no bloco sincronizado direto por engrenagens e com o virabrequim apoiado em somente 3 mancais principais mesmo quando concorrentes passavam a adotar 5 mancais como padrão para motores com 4 cilindros. Em outros aspectos como o recurso à injeção indireta, o 4-108 até não tinha uma grande desvantagem competitiva, à medida que foi somente a partir do final da década de '90 que aumentou a presença da injeção direta em motores Diesel destinados a veículos leves, acompanhando ainda uma massificação do gerenciamento eletrônico em antecipação às normas Euro-3 que começaram a ser aplicadas entre os anos de 2000 e 2001 na União Européia.

A rusticidade inerente ao projeto do motor Perkins 4-108 podia ser interpretada como obsoleta diante da ascensão de motores com o comando de válvulas no cabeçote, tomando como referência para facilitar o entendimento o motor Volkswagen EA827 "AP" que teve ao menos uma versão Diesel muito conhecida no Brasil por ter equipado a Kombi e a Saveiro além de automóveis destinados à exportação ao menos até '98. De fato, o comando no cabeçote com sincronização por correia dentada já proporcionava uma maior elasticidade apesar da cilindrada 72cc menor (1588cc contra 1760cc) no motor Volkswagen, mas que ambos superassem as 4200 RPM o rústico Perkins ainda seguia desenvolvendo mais torque, apesar de num uso normal tal característica não chegar a ser tão desfavorável ao desempenho, especialmente considerando que uma readequação da relação de diferencial de modo que veículos idênticos equipados com ambos os motores para fins de comparação permitisse manter o 4-108 em regimes de rotação mais modestos que no EA827 de modo que os torques já multiplicados pelos diferenciais fosse situado num mesmo valor ou no mínimo bastante próximo. Considerando que no Brasil a limitada disponibilidade de motores Diesel leves para uso veicular fez que o Volkswagen 1.6D permanecesse relevante para uso em adaptações até por volta de 10 a 15 anos atrás, e dentre as poucas alternativas com uma oferta razoável no mercado de motores usados prevalecendo os que eram usados para acionar câmaras frigoríficas em caminhões, vale lembrar que o Perkins 4-108 surgiu como um aperfeiçoamento do 4-99 exatamente em função de atender às condições mais críticas para uso em equipamentos de refrigeração em containers e vagões frigoríficos nos Estados Unidos, logo chega a ser surpreendente que durante a primeira fase de produção de motores Perkins no Brasil esse mesmo segmento tivesse sido aparentemente ignorado.

Não há como ignorar que o peso um tanto exagerado tenha chegado a proporcionar um menor interesse pelo motor Perkins 4-108 por parte dos grandes fabricantes generalistas, muitos dos quais recorrendo ao expediente de aproveitar os mesmos blocos inicialmente destinados a motores de ignição por faísca em alguns motores Diesel veiculares como fizeram não só a Volkswagen e a Peugeot, mas até a Isuzu que é hoje reconhecida como uma das mais tradicionais fabricantes especializadas em motores Diesel chegou a seguir essa mesma estratégia com o motor 4FB1 que chegou a ser usado pela General Motors em versões Diesel do Chevette produzidas nos Estados Unidos e também montadas no Uruguai, e deriva do motor G180Z/4ZB1 a gasolina. As relações entre a GM e a Isuzu certamente pesaram a favor do uso de motores Isuzu no Chevette e em outros modelos vendidos como Chevrolet na América do Sul como os Opel Kadett E, Corsa, Astra e Vectra além do Ascona C rebatizado como Chevrolet Monza, e que diga-se de passagem usou na Europa como opção Diesel somente uma variação do conhecido motor Família II também aplicada ao Kadett E. Talvez ainda pudesse pesar a favor do Perkins 4-108 ao menos para o Chevette montado no Uruguai a partir de kits CKD brasileiros, que tinham a estrutura dianteira alterada no Uruguai para acomodar melhor o motor Isuzu 4FB1, a relação que já existia entre a GM e a Perkins a nível regional com o fornecimento de motores Diesel para pick-ups e caminhões Chevrolet fabricados no Brasil e também montados no Uruguai, além do 4-108 não chegar a ter uma desvantagem acentuada no tocante ao desempenho, e até entrega mais torque entre 2000 e 3600 RPM mesmo com o comando de válvulas no bloco e a cilindrada 57cc menor que os 1817cc do motor japonês que já lançava mão do comando no cabeçote e sincronização por correia dentada.

Para quem considere principalmente o aspecto utilitário dos motores Diesel, sem aquela obsessão pelo desempenho que levou a tentativas desenfreadas de fazer com que um turbodiesel superasse por larga margem um análogo de ignição por faísca movido a gasolina com aspiração natural nas mesmas faixas de cilindrada que se fortaleceu a partir do final da década de '90, o compartilhamento do mesmo motor com embarcações de pesca do tipo traineira ou com os tratores Massey Ferguson 25 e 130 estaria longe de ser um problema não só devido à robustez para enfrentar condições de uso tão severas, mas também pressupondo uma maior facilidade de acesso a peças de reposição e assistência técnica. Ainda que seja impossível negar que algumas evoluções técnicas implementadas pela concorrência tenham atraído uma parte expressiva do público generalista para as vantagens operacionais do Diesel entre as décadas de '70 e '90, o predomínio de um perfil essencialmente conservador mais apegado à simplicidade e à economia de combustível só começou a ser efetivamente contestado quando o ano 2000 já se aproximava, mesmo tendo permanecido algum espaço para motores Diesel de aspiração natural e injeção indireta na Europa já na vigência das normas Euro-3 que o motor PSA DW8 usado por Peugeot e Citroën principalmente em pequenos utilitários se mantinha apto a atender. E apesar da diferença de 108cc na cilindrada e do comando de válvulas no cabeçote favorecerem o DW8 de 1868cc, não seria justo apontar o 4-108 como totalmente inservível para aplicação em automóveis de porte compacto como o Peugeot 206 ou médio como o Peugeot 306 que ainda usaram o DW8 em algumas das versões Diesel mais modestas tanto na Europa quanto na América Latina.

Do apreço de operadores comerciais como taxistas e pescadores até a confiança depositada pelas forças britânicas em zonas conflagradas, o motor Perkins 4-108 certamente demonstrou méritos que justificam o reconhecimento como um dos mais importantes motores Diesel num contexto histórico, e sem sombra de dúvidas foi de extrema importância para a recuperação econômica espanhola após a Guerra Civil e a 2ª Guerra Mundial. Quais benefícios poderia ter proporcionado a outros países e regiões é uma pergunta que permanece sem respostas, em parte devido ao comodismo dos principais fabricantes de automóveis antes da eclosão dos choques do petróleo na década de '70 e do foco por vezes excessivo em equiparar o desempenho ao de motores a gasolina. Mas o que não se pode negar é que, com uma robustez posta à prova em diversos cenários operacionais e simplicidade franciscana facilitando a manutenção, o motor Perkins 4-108 foi subestimado quando podia eventualmente oferecer melhores resultados comparado a alguns concorrentes no segmento automotivo.

Um comentário:

  1. É verdade, é muito fácil achar que só a mais alta tecnologia seja suficiente para resolver todos os problemas. Mas quando as condições são mais duras, às vezes um sistema mais antigo que já tenha sido comprovado pode se sair até melhor.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html