quarta-feira, 18 de maio de 2016

Refletindo sobre as lições do gás natural

Poucos devem se lembrar, mas o gás natural veicular já teve o uso no Brasil restrito a ônibus e táxis durante alguns anos. Após algumas experiências escassamente documentadas, incluindo o uso de biogás/biometano, o gás natural comprimido (GNC) teve o uso regulamentado em 1991, embora a falta de pontos de abastecimento limitasse a oferta do combustível basicamente ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Em outras regiões, o combustível só tornou-se conhecido do grande público após a revista Quatro Rodas haver veiculado na edição de maio de 1996 o teste de um Chevrolet Kadett Sport MPGI (Multipoint Gas Injection), versão especial desenvolvida com base no Kadett Sport EFI movido a etanol. Naquele momento, a liberação do uso do gás natural em veículos particulares ainda era uma grande novidade.

À época, o preço do kit de conversão desenvolvido pela empresa holandesa Koltec era de aproximadamente R$3000,00 e hoje equivaleria a R$14.923,22 de acordo com o Banco Central do Brasil, o que de certa forma desincentivava o consumidor comum a recorrer ao combustível alternativo, além do peso 90kg maior agregado ao veículo e o desempenho mais modesto mesmo considerando o uso da injeção eletrônica multiponto para o gás natural enquanto o etanol ainda era administrado por uma injeção eletrônica monoponto. Em termos práticos, o custo elevado e a percepção de um desempenho inferior podem ser comparadas à imagem que o Diesel ainda detém junto a uma parte considerável da população brasileira, embora os sistemas para gás natural posteriormente tenham superado não apenas o problema do alto custo inicial em função da economia de escala mas também o estigma de um combustível "pior" devido ao desempenho mais modesto. A vantagem no custo inicial, usualmente mais baixo que o de outros combustíveis disponíveis comercialmente, acabou por exercer uma atração junto aos proprietários de veículos leves afetados pelas restrições ao uso do óleo diesel convencional ainda em vigor no Brasil, enquanto a apresentação como uma alternativa mais "limpa" fez com que o gás natural veicular (GNV) ganhasse entusiastas entre quem se posiciona de 4 para saudar a mandioca contra uma eventual liberação do Diesel.

É provável que o maior enfoque dado à conversão de veículos com motor de ignição por faísca movido a gasolina e/ou etanol tenha levado melhorias ao desempenho e índices de emissões de motores Diesel proporcionadas pela substituição parcial do óleo diesel por gás natural a serem subestimadas, situação que ainda persiste mesmo após experiências tanto no Brasil quanto no exterior terem validado os benefícios desse recurso, e nesse ponto a escassez de veículos leves com motor Diesel no país naturalmente pesou contra. Da mesma forma que teve antigas restrições ao uso em veículos particulares derrubadas, o gás natural poderia, junto com o biodiesel, o etanol e óleos vegetais naturais, tornar-se de fato um valioso aliado para minimizar temores de um impacto nocivo sobre o preço e disponibilidade de combustível para o transporte pesado e outras aplicações utilitárias que poderiam seguir uma liberação do Diesel para veículos leves sem restrições por capacidade de carga, passageiros ou tração.

A construção do gasoduto Brasil-Bolívia, a partir de 1998, abriu novas perspectivas para a massificação do uso do gás natural pelo país, não apenas para fins automotivos mas também em aplicações estacionárias/industriais em substituição ao óleo diesel e outros óleos combustíveis pesados. Ainda que não tenha quebrado a hegemonia do Diesel no transporte pesado, ganhou adeptos não só entre os taxistas mas também junto ao consumidor comum que, inebriado pelo custo já bastante competitivo em relação à gasolina, de certa forma acabou condicionando-se a ignorar propostas de uma liberação do Diesel. Nesse ponto pode-se apontar outro motivo para reflexão: por mais que a decisão de importar o gás da Bolívia tenha representado algum risco à segurança energética para o Brasil, que poderia muito bem valer-se do biogás/biometano e ainda explorar reservas locais como as do Vale do Rio do Peixe localizadas em Santa Catarina, ainda era mais sensato que buscar pretextos infundados para seguir privando a liberdade do cidadão escolher o melhor combustível e eventuais substitutivos de acordo com as próprias necessidades. Pois bem, que fim levou a tal "auto-suficiência" em petróleo tão propagandeada pelo Lula? E as refinarias "premium" que deveriam ser construídas no Maranhão e no Ceará com um perfil de refino priorizando o óleo diesel de baixo teor de enxofre? Alguns aliados da ex-presidente Dilma certamente viram a cor do dinheiro que saiu dos cofres da Petrobras e deveria ter coberto os investimentos necessários à construção das refinarias que no fim das contas não saíram do papel.

A sabotagem do setor agroenergético levada a cabo pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) é outro problema que deve ser avaliado com atenção. De certa forma surpreende que a agência reguladora não tenha se oposto à comercialização do biometano proveniente de aterros sanitários em São Pedro da Aldeia (RJ) e de resíduos agropecuários na região de Foz do Iguaçu (PR), além da estatal gaúcha Sulgás já estar distribuindo o chamado "GNVerde" obtido a partir de dejetos de aves fornecidos pela empresa Naturovos e resíduos do beneficiamento de frutas cítricas provenientes da cooperativa Ecocitrus, enquanto o biodiesel puro (B100) não é oferecido ao consumidor varejista e o uso de óleos vegetais naturais como combustível ainda é subestimado e segue sem uma regulamentação específica mesmo após iniciativas como o PLS 81/2008 terem sido sepultadas pela burocracia. Ao invés de dar respaldo ao monopólio da Petrobras e favorecer a dilapidação do patrimônio e valor de mercado da empresa, caberia à ANP garantir um mercado saudável e aberto a distintas opções para o fortalecimento da segurança energética brasileira.

Mesmo que a oferta do gás natural esteja bem mais ampla que a 20 anos atrás, usuários e entusiastas ainda não devem cantar vitória e encará-lo como um sucessor do óleo diesel convencional. Por mais que o desenvolvimento de projetos para produção e distribuição do biogás/biometano figure como uma oportunidade para promover uma maior participação no interior e eventualmente alcançar também uma posição privilegiada em aplicações agropecuárias a preços competitivos, é prematuro ignorar o potencial relativamente inexplorado do biodiesel e até mesmo do uso direto de óleos vegetais como combustível veicular. No momento, o mais importante é considerar os benefícios que uma maior liberdade de escolha agregariam à eficiência energética da frota brasileira.

8 comentários:

  1. Vi uma Chevrolet Capivara, digo, Spin táxi com rampa traseira para cadeirantes, a altura extra me permitiu ver, e ficar com os cabelos em pé, o enorme cilindro de gás instalado em baixo, logo atrás do eixo traseiro.

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    1. Para não sacrificar a acessibilidade do passageiro cadeirante, o jeito é instalar os cilindros de gás por baixo da carroceria mesmo.

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  2. Já andei num Monza táxi com esse kit holandês em São Paulo. Além do Monza e do Kadett com motores 1.8 e 2.0 a álcool, ainda era oferecido para o Omega 2.0 mas aí já era o motor todo multiponto.

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  3. Mas será que já não foi justamente para tentar barrar propostas de liberar o diesel para carro pequeno que começou o uso do gás? Tanto que agora tem até caminhão e ônibus a gás até para entregar cerveja lá para os lados do Maracanã.

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    1. Usar a oferta do gás natural como um pretexto para manter as restrições ao Diesel seria um meio que não justifica o fim.

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  4. Estou querendo comprar um carro sedan pequeno para botar no gás, desisti do Fiat Grand Siena por não ter câmbio automático com o motor tetrafuel. Já me disseram que Chevrolet é o que aceita melhor o gás, é verdade isso?

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    1. Em parte, é verdade. A estratégia de oferecer a preparação para gás com homologação de fábrica nos motores movidos a etanol, com uma taxa de compressão mais elevada que os motores a gasolina, favoreceu essa percepção. E ainda hoje a General Motors do Brasil tem recorrido a taxas de compressão elevadas para melhorar o desempenho de alguns motores com projeto mais antigo sem precisar investir muito em aperfeiçoamentos mais avançados.

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  5. O que falta para o gás é ser levado a sério. Realmente podia ser melhor aproveitado o biogás. Teve até um caso famoso de um shopping que foi construído sobre um depósito de lixo desativado em São Paulo e que teve um problema com vazamento de gás metano que estava enterrado, chegaram a dizer até que podia explodir. Esse mesmo gás se fosse devidamente canalizado podia ser usado nas cozinhas dos restaurantes e lanchonetes e para acionar geradores ao invés de ser simplesmente ventilado para fora de qualquer jeito.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html