quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Ignição por faísca: sobrevida assegurada pela mediocridade?

Esse é um ponto bastante polêmico, e que ganhou certo destaque junto à eclosão do "Dieselgate" à medida que a dependência de alguns fabricantes tem pelos motores Diesel para assegurar uma boa participação de mercado principalmente na Europa. Além da própria Volkswagen, que no rescaldo do escândalo passou a dar uma ênfase maior tanto à tração elétrica quanto à inclusão de dispositivos de controle de emissões mais avançados mesmo nos modelos movidos a gasolina como o Tiguan de 2ª geração que incorporou o filtro de material particulado em mercados onde o motor 2.0TSI é ajustado para 190cv, outro fabricante que acabou sendo muito criticado por supostamente relegar os motores de ignição por faísca à mediocridade foi o grupo PSA (mais conhecido através das marcas Peugeot, Citroën/DS e que recentemente adquiriu da GM a divisão Opel/Vauxhall). Mas a bem da verdade, ao recordarmos fatores como o projeto de motores modulares que permitem alcançar um elevado grau de compartilhamento de componentes entre motores Diesel e os de ignição por faísca, já se reforça o quão injusto seria afirmar que estes últimos estivessem sendo tratados com relativo descaso pelos próprios fabricantes em razão da preferência do público pelos primeiros.
De fato, por muito tempo predominaram motores naturalmente aspirados para as versões com ignição por faísca nas linhas Citroën/Peugeot, principalmente em mercados como o argentino e o brasileiro, e não se pode negar que fatores tão diversos quanto a facilidade para fazer reparos precários ou adaptar gás natural não deixam de ter um peso nessa decisão estratégica. Assim, cabe observar o exemplo do Peugeot 308 que no Brasil contou inicialmente com o motor EC5 de 1.6L que nada mais era do que uma versão atualizada do antigo motor TU5 e o EW10 de 2.0L que compartilha o projeto básico com o DW10 turbodiesel oferecido em outros mercados, e depois teve introduzido o motor EP6 "Prince" de 1.6L numa versão denominada THP dotada de turbo e injeção direta que foi aos poucos tomando o espaço do EW10 até por fim ser consolidado como a única opção de motor para o modelo no Brasil algum tempo após o facelift. A situação é diferente na Argentina, onde o vetusto EC5 permanece em linha paralelamente ao EP6, com o turbodiesel DV6 também de 1.6L completando a linha de motores e atendendo a consumidores com preferências e/ou necessidades distintas. Tendo em vista que todos estão enquadrados nas normas de emissões Euro-5, pode-se dizer que a aposta em manter mesmo um propulsor tratado por alguns como "arcaico" pode parecer mais justificada.

Não se pode negar que a maior adesão ao turbo e à injeção direta em motores de ignição por faísca é uma das principais razões para que tenham se aproximado mais da eficiência geral do Diesel, e feito com que a desvantagem do etanol no consumo em comparação à gasolina seja atenuada nos veículos "flex" ao proporcionar condições mais propícias para que ambos os combustíveis possam ser usados sem maiores intercorrências com taxas de compressão mais altas normalmente consideradas melhores para o etanol. Porém, há alguns efeitos colaterais inerentes a essas condições, mais notadamente um incremento na emissão de óxidos de nitrogênio (NOx) devido às temperaturas mais elevadas que a combustão pode alcançar com uma proporção menor de combustível pela massa de ar de admissão e o maior aquecimento aerodinâmico resultante de uma compressão mais elevada, e até de material particulado em função do intervalo mais curto entre a injeção e a ignição levando a uma vaporização incompleta da gasolina e/ou do etanol quando aplicável. Assim, levando em conta a necessidade de conciliar um enquadramento às normas de emissões em vigor e o impacto sobre os custos iniciais e de manutenção, a estratégia conservadora da Toyota que se mantém fiel à aspiração natural e injeção convencional tanto em híbridos como o Prius quanto em modelos mais generalistas como o Corolla não deixa de chamar a atenção.

O dilema entre a adesão ao turbo e injeção direta ou seguir a "tradição" do motor aspirado de injeção convencional atinge diversas proporções, não apenas no uso particular mas também em aplicações comerciais como nos táxis justamente pela preferência que o gás natural tem junto aos operadores em função do preço mais acessível numa comparação à gasolina e ao etanol. Vale tomar como exemplo o Volkswagen Virtus lançado ainda esse ano, oferecido com o motor 1.6 MSI naturalmente aspirado de 4 cilindros como opção de entrada enquanto o 1.0 TSI de 3 cilindros figura como o top de linha, que acaba evidenciando essa situação. Como no motor de injeção direta os bicos injetores originais ficam expostos diretamente à frente de propagação de chama, se faz necessário manter ao menos uma parte do fluxo de injeção do combustível original para mantê-los refrigerados ao rodar com o gás natural que seria injetado no coletor de admissão, o que de certa forma diminui a esperada redução de custos operacionais do veículo em comparação a um similar dotado de injeção sequencial nos pórticos de válvulas de admissão. É importante também salientar que o gás natural apresenta maior resistência à pré-ignição, tendo em vista tanto a compressibilidade quanto a faixa de temperaturas mais estreita em que se inicia a combustão comparado tanto à gasolina quanto ao etanol, suportando melhor condições de mistura ar/combustível pobre sem ter de recorrer à injeção direta, e assim com uso mais constante do gás em detrimento dos combustíveis líquidos é até previsível a preferência pela tecnologia mais antiga.

Outro aspecto a se considerar é a obsessão por motores de alta cilindrada entre os apreciadores das barcas americanas, como a Ford Explorer de 5ª geração que tem de acordo com as preferências ou as políticas de diferentes mercados uma variedade de motores turbo com injeção direta em complemento à opção pelo V6 aspirado de injeção convencional. Em modelos anteriores ao facelift de 2016, houve em versões de tração somente dianteira até a disponibilidade do mesmo motor 2.0 Ecoboost usado no Ford Fusion, que se enquadraria numa alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) mais favorável em comparação ao 2.3 Ecoboost atualmente oferecido também para versões 4X4 em alguns países ou ao 3.5 V6 caso fosse importada oficialmente para o Brasil. Mas esse é também um daqueles casos em que a aptidão de um motor menor a fatores de carga mais elevados é contestada sob o ponto de vista da durabilidade, além daqueles questionamentos em torno do quão efetiva seria a redução de consumo e emissões a ser proporcionada pelo downsizing. Nesse contexto, além do resfriamento da carga de ar de admissão durante a vaporização da gasolina ao ser injetada nos pórticos de válvula na fase de admissão no motor maior e à primeira vista apontado como tecnicamente inferior por alguns que se deixam levar pelos encantos do marketing, também permanece relevante destacar que há uma menor retenção de calor sob o capô caso se faça a opção pelo aspirado. Aqueles vídeos no YouTube mostrando caminhoneiros usando a parte quente (turbina) do turbocompressor para assar carne podem parecer loucura, mas o fundamento é praticamente o mesmo...

É importante levar em consideração também que os motores Diesel para aplicação em veículos leves apresentaram uma evolução muito rápida nos últimos 20 anos, não somente no tocante ao controle de emissões mas sobretudo para alcançar um desempenho mais comparável aos similares de ignição por faísca que ainda eram pouco contestados como uma opção mais óbvia para quem tivesse pretensões mais esportivas. Mas como nem tudo são flores, a modernização acabou por fazer com que a imagem de robustez e simplicidade associadas ao Diesel ficasse comprometida diante de fatores tão diversos quanto a massificação do gerenciamento eletrônico e do turbocompressor com respectivas tubulações e conexões, intensificando-se em antecipação à entrada em vigor das normas Euro-3 no ano 2000 no mercado europeu e ao mesmo tempo exercendo influência em outros países onde o Diesel tinha certo prestígio no setor automotivo como ainda era o caso da Argentina. O contraste entre a rusticidade e a alta tecnologia pode ser facilmente constatado lançando um olhar sobre o Peugeot 306, que manteve o motor DW8 de 1.9L naturalmente aspirado com injeção indireta simultaneamente ao DW10 de 2.0L já dotado de turbo e injeção direta eletrônica do tipo common-rail de alta pressão, ao passo que no sucessor 307 o DW8 dava lugar ao já mencionado DV6. Logo, não causaria grande surpresa que a ignição por faísca despertasse novamente algum interesse de uma parte do público se vale de uma evolução comparativamente mais lenta dos motores a gasolina para fazer gambiarras com peças de modelos mais antigos ou até de motos no caso da adaptação de carburador em carros originalmente equipados com injeção eletrônica como ainda se faz muito na Argentina.
Não importa se é um modelo de concepção mais tradicional ou um híbrido, a eventual preferência por motores de ignição por faísca e uma argumentação que os apresente como uma opção mais racional à complexidade da atual geração de motores Diesel chega a ser ao menos em parte influenciada por um grau de mediocridade. Por mais que exista um profundo abismo entre o ato de adaptar um carburador e ignição de pontos fixos num Peugeot 307 e o encantamento pela aura "sustentável" que se formou em torno do Toyota Prius, na prática se vê a mesma intenção de tentar negar que o Diesel ainda pode fazer sentido em condições operacionais semelhantes. Os tempos são outros e, se antes a ignição por compressão era vista com relativo desdém por não ser tão convidativa a altas velocidades e remeter mais às reações de um motor de trator, hoje pode-se afirmar categoricamente que a procura pela zona de conforto tem partido de princípios opostos. Enfim, se antes mexer numa bomba injetora rotativa de motor Diesel leve ao invés de se ver às voltas com carburador, distribuidor e bobina de ignição soava como a escolha mais lógica, hoje a lei do mínimo esforço está sendo aplicada do lado contrário e vale até se aventurar com softwares de diagnóstico de falhas compatíveis com um smartphone...

11 comentários:

  1. Cada vez mais complicado apostar numa solução para os motores a gasolina, ou gás natural que parece ser um combustível com mais futuro a longo prazo, mas esse esquema da Toyota em ainda tirar o máximo de eficiência antes de partir para turbo e injeção direta me parece bem acertado. Só acho que como o custo de produção não deve ser tão absurdamente alto como nos motores turbinados da concorrência, bem que podiam ter uns preços menos exagerados no Brasil.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A tributação diferenciada considerando tão somente a cilindrada do motor acaba beneficiando os 1.0L turbo, como o TSI da Volkswagen, mesmo que na prática um motor mais simples com cilindrada maior possa proporcionar resultados tão satisfatórios quanto.

      Excluir
  2. A mi me parece que la gente aún cree que sigamos en los dias de los encendidos vetustos por distribuidor que qualquiera intentaba arreglar con unos trozitos metalizados del paquete de cigarrillos. Acerca de la Ford Explorer, me asombra que mientras en las Filipinas solo se vende hoy con motor Ecoboost, en 4 cilindros para tracción delantera y el V6 para las de doble tracción, en Corea del Sur solo el 4 cilindros es Ecoboost mientras el V6 atmosférico sigue en linea, pero los 2 motores siempre llevando doble tracción.

    ResponderExcluir
  3. Às vezes a turma prefere fazer aquela gambiarra com uma luva de borracha para não molhar o distribuidor mas nem param para pensar em fazer aquele esquema com sensor Hall e roda fônica na polia do virabrequim. Sempre vai ter quem fique tentando justificar esse tipo de coisa, mesmo sendo porcaria.

    ResponderExcluir
  4. Eu não acho tão difícil mexer em carburador e distribuidor, mas a injeção eletrônica faz maravilhas.

    ResponderExcluir
  5. Será que dá de adaptar carburador numa pick-up Peugeot Hoggar de motor 1.4?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É justamente um dos motores mais fáceis de adaptar carburador pelo que eu já vi em alguns carros de argentino. Passar o verão em Santa Catarina sem ver ao menos uma Peugeot Partner ou Citroën Berlingo com carburador é improvável.

      Excluir
  6. E dá certo mesmo adaptar carburador num 307?

    ResponderExcluir
  7. Eu acho meio exagerado dizer que quem só mexe em motor a gasolina é medíocre, alguns dos melhores mecânicos que eu conheci nunca tocaram num motor a diesel.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Também já conheci bons mecânicos que não trabalham com a linha Diesel, mas eles não tem culpa se os fabricantes optam por perpetuar a mediocridade na linha a gasolina.

      Excluir

Seja bem-vindo e entre na conversa. Por favor, comente apenas em português, espanhol ou inglês.

Welcome, and get into the talk. Please, comment only either in Portuguese, Spanish or English.


- - LEIA ANTES DE COMENTAR / READ BEFORE COMMENT - -

Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html