terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Uma reflexão sobre o gás natural veicular e os desafios como "combustível regional" do Mercosul e adjacências

Já não é de hoje que se depositam no gás natural algumas esperanças, por vezes de forma exagerada, na busca por uma maior independência energética. No caso do Mercosul, composto pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai, e ainda de países vizinhos que não fazem parte do bloco como Bolívia e Venezuela, é nítida a influência da Argentina no desenvolvimento de tecnologia e equipamentos para conversão de veículos, bem como nas regulamentações para o uso do mesmo. Porém, ainda que no âmbito político venha ocorrendo uma harmonização das normas com o intuito de viabilizar o abastecimento de veículos a gás natural em trânsito pelos diferentes países-membros do Mercosul e adjacências, alguns desafios de ordem técnica e logística se sobrepõem.
A relativa facilidade para adaptar o GNV em praticamente qualquer veículo com motor de ignição por faísca movido a gasolina ou "flex", tanto modelos mais antigos ainda equipados com carburador como o Ford Escort MK4 quanto outros mais avançados como a Ford F-150 Raptor já dotada de injeção direta, não deixa de ser um argumento bastante eficaz para atrair novos usuários. O custo de aquisição menor de um veículo movido a gás em comparação a um Diesel de desempenho similar também é relevante, bem como a hoje tão evocada "sustentabilidade", ainda que a oferta um tanto restrita geograficamente permaneça como um empecilho. O monopólio estatal dos hidrocarbonetos, que lamentavelmente não é tão incomum na América do Sul de um modo geral, acaba também desencorajando algumas iniciativas que poderiam valer-se da vocação agropecuária do subcontinente para promover uma integração com o biogás/biometano e agregar valor a resíduos orgânicos com algum potencial energético, eventualmente tornando-se também uma oportunidade para corrigir a deficiência brasileira no saneamento básico e incrementar a segurança energética numa tacada só.
Mas voltando a falar de motores e tomando como exemplo a Ford F-150 Raptor SuperCab 3.5 V6 EcoBoost, que em função da injeção direta exigiria um kit de conversão de 6ª geração caso houvesse interesse do proprietário em recorrer ao gás natural, é importante considerar aspectos referentes tanto ao desempenho quanto consumo de combustível e emissões. A bem da verdade, a maior resistência do gás natural à pré-ignição comparado ao etanol e à gasolina já facilita o uso de uma proporção ar/combustível mais pobre, característica que favorece a economia de combustível mas acarretava em perdas de potência e torque mais severas em motores antigos, ao passo que com a injeção direta já ficam menos perceptíveis em virtude desse sistema já ser otimizado para operar nessa condição. Porém, ainda há de se levar em consideração que a injeção direta quando aplicada a motores do ciclo Otto também tem acarretado em condições propícias a um incremento das emissões de óxidos de nitrogênio e até mesmo de material particulado, antes vistas como um calcanhar de Aquiles do ciclo Diesel, e nesse sentido uma maior adesão ao gás natural poderia servir de pretexto para manter a defasagem dos sistemas de controle de emissões aplicados aos motores de ignição por faísca enquanto já se discute a incorporação de catalisadores para neutralização dos NOx e filtros de material particulado também neles. Nesse sentido, como o gás natural já é injetado em estado de vapor, a formação de material particulado fica menos acentuada em comparação à gasolina que precisa vaporizar num intervalo mais curto e já submetida às pressões e ao aquecimento aerodinâmico durante a fase de compressão, além de eventualmente uma porção menor do gás poder ser injetada no coletor de admissão para resfriar a carga de ar e diminuir as temperaturas das câmaras de combustão, contribuindo para uma menor formação dos NOx sem recorrer a métodos complexos como o SCR hoje predominante em caminhões e ônibus mas que já está se fazendo presente em utilitários leves e automóveis com motor Diesel em alguns mercados com normas de emissões mais rigorosas.

No caso do Paraguai, cuja influência japonesa vem junto de tantos modelos JDM que são importados já usados como o Toyota FunCargo, chegou a haver em outros momentos uma maior aposta no gás liquefeito de petróleo (GLP), mais conhecido no Brasil simplesmente como "gás de cozinha". Além dos reservatórios de GLP serem mais leves e armazenarem o combustível a pressões inferiores em comparação ao gás natural, o que já pressupõe um custo menor dos sistemas de conversão, também soava convidativa a uma adoção mais imediata desse combustível a relativa facilidade de integrá-lo a modais logísticos já consolidados como o rodoviário, exemplificado pelo uso frequente de caminhões para transporte de GLP a granel no atendimento a grandes consumidores, com relativa flexibilidade em comparação aos gasodutos que se consolidaram como o método preferido por distribuidoras de gás natural. Porém, o consumo relativamente alto e dificuldades na partida a frio, somadas a uma menor vantagem no custo em comparação à gasolina, fizeram com que o gás liquefeito de petróleo no Paraguai tivesse uma perda de competitividade semelhante à observada com o etanol no Brasil.

Se antes parecia tão fácil um paraguaio comprar um "pau véio" japonês com motor Diesel, mas tendo em vista que modelos bastante procurados já deixaram de oferecer tal opção no Japão como ocorreu com o Toyota Corolla antes mesmo da geração E140 (a penúltima) ter sido lançada, a situação agora parece convidativa a uma eventual procura pelo gás natural. A proximidade do Paraguai tanto com a Bolívia quanto com a Argentina, países que se destacaram a nível regional pela abrangência nacional dos respectivos programas de gás natural veicular, faz com que pareça de certa forma previsível uma articulação nesse sentido, favorecida com a possibilidade de implementar uma rede de distribuição canalizada integrada com a Bolívia e a Argentina, além das jazidas de gás natural encontradas mais recentemente no Chaco paraguaio. A recente melhoria na economia do Paraguai em virtude de uma expansão do parque industrial, bem como a pequena extensão territorial, até soariam como pretexto para que se nutrisse um maior entusiasmo pelo gás natural veicular, mas seria natural também que cidadãos paraguaios que venham ao Brasil por exemplo ficassem mais receosos de tentar a sorte com o peso e volume agregados por um sistema de gás e se deparar com uma disponibilidade ainda limitada do combustível alternativo em alguns trechos. Roll coal, baby...

Mesmo países que não fazem parte do Mercosul, como é o caso da Bolívia, tem formulado políticas de promoção do gás natural. A política de "nacionalização" dos hidrocarbonetos levada a cabo pelo ditador Evo Morales em 2006, que teve repercussão no Brasil acentuada pela invasão das instalações da Petrobras e empresas parceiras em Santa Cruz de la Sierra, serviu como pretexto também para uma caça às bruxas contra o Diesel, culminando com uma proibição da importação de veículos com motor Diesel de cilindrada igual ou inferior a 4.000cc já a partir de 2008, e na prática inviabilizando que modelos como a van JMC Touring (basicamente uma Ford Transit "smiley" feita na China com o desenho frontal atualizado incorporando elementos do estilo boca de bagre "Kinetic" em uso nos Fords mais recentes) e a tradicional pick-up Toyota Hilux pudessem dispor dessa motorização. De fato, como a Bolívia ainda depende do fornecimento de óleo diesel convencional importado da Venezuela, e fortemente subsidiado principalmente para atender ao transporte coletivo, migrar para o gás natural parecia bastante plausível, mas a pura e simples restrição ao Diesel passa longe de ser a estratégia mais adequada e pouco contribui para que se modernize a frota boliviana. Se o transporte de passageiros em grandes cidades com acesso fácil a postos de abastecimento que dispõem do gás natural, e uma eventual instalação dos cilindros por baixo dos bancos diminua a sensação de um uso inadequado do espaço interno do veículo para acomodá-los, para o setor agropecuário que depende das pick-ups 4X4 não só para passear nas praias brasileiras mas também para trabalhar em condições ambientais severas e com cargas pesadas o desempenho proporcionado pelo Diesel é visto como mais adequado.
Há de se levar em conta também o dilema entre o downsizing e o downrevving, tendo em vista que veículos com concepções diferentes possam não se adaptar tão bem a um ou outro tipo de motor, além dos efeitos do peso sobre a capacidade de carga e a trafegabilidade em terrenos irregulares. Por exemplo, se numa JMC Touring pode não ser fácil adaptar um motor maior que as imitações do Isuzu 4JB1 de 2.8L usadas em mercados onde o Diesel não sofre restrições, certamente não se pode negar que alguns agricultores bolivianos insatisfeitos com o alto consumo de gasolina e a falta de acesso fácil ao gás natural em algumas áreas mais remotas no interior já devem ter desejado que a Toyota ao menos tentasse instalar o motor 15B-F usado no microônibus Toyota Coaster. Recordando também a oferta feita em 2006 pelo então ditador venezuelano Hugo Chávez, que propunha fazer uma troca entre óleo diesel da Venezuela e soja em grão da Bolívia, faria mais sentido extrair o óleo de soja para destinar ao uso como matéria-prima para biodiesel ou então diretamente como combustível veicular, embora tenha prevalecido o gás natural em meio a esse embate. Diga-se de passagem, ainda que não se tenha proibido a importação de peças de reposição para os motores Diesel de 4.000cc ou menos que já estavam em operação na Bolívia, o órgão público instituído por lá para gerenciar o programa de conversões veiculares para gás (EEC-GNV - Entidade Executora de Conversões para Gás Natural Veicular) chegou a trabalhar tanto com a conversão de motores Diesel para o ciclo Otto visando o uso do gás quanto com a importação de motores GM Powertrain Vortec 4300 (o famoso "Vortecão da Blazer") em especificação industrial para retrofit em microônibus antigos.

A proposta de alçar o gás natural à condição de um "sucessor" para o óleo diesel, por mais que possa servir de oportunidade para fomentar uma maior capilarização da malha de gasodutos e assim ampliar a oferta, bem como para que o biogás/biometano possa ser melhor aproveitado tanto para agregar valor a tantos rejeitos gerados pela agroindústria que ainda é um setor de extrema importância para as principais economias sul-americanas quanto para ser integrado a projetos de saneamento básico e manejo de lixo, seria mais coerente tratar gás natural e óleo diesel como complementares num âmbito de fortalecer a segurança energética, sem deixar de reconhecer também a importância do biodiesel devido à relativa facilidade de implementação junto a frotas com idade média avançada que ainda são essenciais para a logística no Mercosul e adjacências. O fortalecimento do produtor rural também deve ser levado em conta, bem como os diferentes graus de complexidade que cada combustível alternativo possa oferecer para que o setor agropecuário eventualmente se encaminhe para a auto-suficiência energética, além do escoamento da produção tanto de commodities quando de alimentos. Novamente, é importante deixar clara a rejeição ao absurdo projeto de lei de um vereador petista com o intuito de proibir a circulação de veículos com motor Diesel na cidade de São Paulo, que se revela ainda mais inadequado diante da falta de iniciativas como os "corredores azuis" em fase de implementação em alguns dos principais eixos rodoviários da União Européia. Tendo em vista ainda a importância das rotas rodoviárias "bioceânicas" entre o Brasil e o Chile atravessando a Bolívia, que se tornaram essenciais para que as exportações brasileiras rumo à Ásia ganhem competitividade com o uso do porto de Iquique, e o amparo que veículos com placa estrangeira teriam com base nas normas da Convenção de Viena mesmo que o PL 01-00643/2017 chegasse a ser aprovado, a liberdade para cada operador usar o combustível que bem entender seria essencial para garantir que caminhoneiros brasileiros pudessem manter a competitividade com os estrangeiros na hora de embarcar um frete em São Paulo e região metropolitana.

Outros aspectos a considerar para quem pretenda usar um veículo movido a gás natural para viagens internacionais são eventuais prejuízos à capacidade de carga, documentação exigida para assegurar a conformidade do sistema de combustível alternativo às normas de segurança estabelecidas no país de destino, e eventuais adaptadores para os diferentes tamanhos de válvulas de abastecimento usadas no Brasil e na Argentina. No tocante à capacidade de carga, o exemplo desse Renault Kangoo Express adaptado para uso misto (carga e passageiros) com a instalação de cilindros de gás abaixo do assoalho é uma opção para quem considere mais crítico preservar a capacidade volumétrica ou a modularidade do interior do veículo, ainda que seja inevitável uma redução na lotação em peso. Já o abastecimento, apesar dos adaptadores para os diferentes padrões de válvulas serem menos difíceis de encontrar do que se poderia supor inicialmente, ainda pode suscitar conflitos devido à falta de familiaridade com diferentes documentos. Mesmo com a instituição da chamada "cédula Mercosul", também conhecida pelos argentinos como "tarjeta azul" e com validade para todos os países do bloco, não é incomum que frentistas brasileiros mais acostumados apenas com o "selo do Inmetro" a ignorem, tendo em vista que só mais recentemente se observa um fluxo mais intenso de veículos a gás vindos do exterior durante a temporada de verão.
Apesar de ter seus aspectos desfavoráveis, seria injusto ignorar a competitividade que o gás natural tem apresentado, conquistando consumidores refratários à sofisticação das gerações mais modernas de motores Diesel veiculares na Argentina e crescendo em meio ao desprestígio do etanol no Brasil. Sendo uma aposta mais alinhada à dos nossos vizinhos, pode eventualmente facilitar intercâmbios tecnológicos e comerciais. Enfim, mesmo que não suplante tão facilmente o Diesel nas aplicações comerciais pesadas, principalmente pela falta de uma maior oferta pelo interior afora que poderia ser complementada com o biogás/biometano, não se pode negar que o GNV encontra condições favoráveis a um crescimento no Mercosul.

10 comentários:

  1. Até que seria da hora uma Raptor mesmo que estivesse no gás, mas no Brasil não tem jeito, picape para andar no mato só vale a pena se for a diesel mesmo.

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  2. Ficou estranha demais a frente dessa JMC com placa boliviana, mas o que mais me espanta é usar motores de outras fábricas em vez de alguma coisa original da própria Ford. Por que será que fizeram assim com os motores?

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    1. Provavelmente por comodismo, para não ter de providenciar mais um ferramental para uma linha diferente de motores, e ganhar na escala de produção usando os mesmos que já eram usados na linha de utilitários da JMC. Mas parece que algumas chegaram a usar motor de 6 cilindros em linha do Falcon australiano.

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    2. Tem certeza que foi essa geração que usou o motor do Falcon? Acho que foi aquela outra que veio da Turquia para o Brasil. Mas que ia até ficar bacana uma dessas com um V8, isso eu acho que fica...

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    3. Pois é, pelo que eu me lembre foi a outra geração que usou esse motor do Falcon australiano, mas só em ambulâncias e viaturas de polícia.

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  3. Se o biometano pode ser produzido com qualquer material orgânico que seja deixado para fermentar e apodrecer num ambiente controlado, parece mais sensato que o etanol apesar de se exigir uma instalação relativamente grande e pesada e ainda perder um pouco de potência. Mas olha o Kangoo prata como ficou perfeita a solução de colocar os tanques de gás por baixo da carroceria, pelo menos não deve atrapalhar tanto quanto se fosse colocado no bagageiro.

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    1. Sim, apesar de eventuais dificuldades relativas ao peso e volume do sistema de combustível, e de não ser tão "à prova de burro" quanto os combustíveis líquidos, caso o biometano fosse efetivamente levado a sério poderia apresentar uma grande competitividade em relação ao etanol.

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  4. Eu não acho errado que se incentive o gás natural, mas se não tiver a mesma facilidade para encontrar que a gasolina ou o álcool não tem como usar direto mesmo. Ainda sou menor e não tenho carteira de motorista, mas eu até tenho vontade de usar gás quando tiver um carro.

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    1. Não é o meu combustível favorito, mas de fato o gás natural tem seus méritos em comparação à gasolina e ao etanol. Já com relação ao óleo diesel, até uma eventual motivação no âmbito da redução de emissões esbarra nas condições operacionais de algumas aplicações onde a logística do gás natural ainda não esteja consolidada.

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  5. Na teoria o gás natural e agora o biogás são muito bons e podem ser usados no lugar do gás de botijão, mas não é assim tão fácil de fazer. O diesel e se for o caso biodiesel dá para abastecer por gravidade, mas o gás natural e o biogás só com compressor.

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