quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Uma reflexão sobre novos horizontes para o biodiesel

Recentemente, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) autorizou uma adição facultativa de percentuais de biodiesel superiores aos atuais 7% já obrigatórios (o blend conhecido como B7) no óleo diesel convencional. Os limites fixados em até 20% (B20) para veículos rodoviários atendidos por pontos de abastecimento próprio, 30% (B30) para o transporte ferroviário, 30% para aplicações agrícolas e estacionárias/industriais, no entanto, são até certo ponto conservadores demais, embora o uso de biodiesel puro (B100) já esteja autorizado para "uso experimental e outras aplicações", uma definição até um tanto subjetiva. Já a venda de tais blends diretamente ao consumidor final nos postos ainda está vetada, sob a alegação de que ainda faltam garantias dos fabricantes de motores que as novas misturas não acarretarão danos aos veículos e equipamentos, o que de certa forma dificulta uma adoção mais ampla por parte de consumidores com uma demanda menor e que não tenham instalações próprias para armazenar o combustível, como alguns pequenos produtores rurais e pescadores artesanais.

Ao menos o B20 já poderia ter a comercialização no varejo liberada como ocorre em outros países, entre os quais os Estados Unidos, tendo em vista que a maioria dos fornecedores de motores Diesel para aplicações profissionais tem dimensionado os sistemas de controle de emissões mais avançados hoje exigidos em muitos segmentos, principalmente o rodoviário, para funcionar com segurança usando até 20% de biodiesel. A tecnologia necessária já é dominada também por empresas que contam com unidades industriais instaladas no Brasil, como a Cummins e a Scania. No caso da Cummins, que fornece motores para a maioria dos caminhões Ford de fabricação nacional (excetuando apenas versões extrapesadas do Cargo que são equipadas com motor Iveco/FPT) e alguns modelos de caminhões e chassis para ônibus Volkswagen, atualmente aceita o B20, enquanto a Scania oferece no exterior motores aptos a operar com 100% de biodiesel e já enquadrados até mesmo nas rigorosas normas Euro 6. Considerando que o problema mais sério que maiores concentrações de biodiesel podem acarretar em alguns motores Diesel modernos se dá pela vaporização mais difícil dentro da carcaça do filtro de material particulado (DPF) durante o processo de "regeneração" (uma espécie de pós-combustão da fuligem retida no núcleo do filtro para que saia mais fina, algo parecido com a queima do carvão numa churrasqueira e redução do mesmo a cinzas leves), e que ainda há uma grande presença de veículos antigos na frota brasileira de caminhões e ônibus enquadrados em normas de emissões menos rigorosas quando nem sequer se discutia a adoção do DPF, há um potencial inexplorado de mercado para o B20. A bem da verdade, seria mais coerente liberar de uma vez o B20 ou até mesmo arriscar o B100 ao invés de permitir a comercialização do óleo diesel convencional com 500ppm de enxofre (Diesel S-500) que ainda é encontrado até mesmo em alguns postos localizados dentro de perímetros urbanos, quando teoricamente seria permitido apenas em postos de beira de estrada e localidades rurais.

Para grandes consumidores, porém, as possibilidades de usar percentuais mais elevados de biodiesel tem atrativos que podem vir a  fomentar o desenvolvimento da produção desse combustível inicialmente para atendê-los, e até expandir-se para chegar no varejo e eventualmente até servir de pretexto para uma liberação do Diesel em veículos leves, e ainda aproveitar uma grande variedade de matérias-primas adequadas às mais distintas realidades regionais brasileiras e que apesar da viabilidade econômica hoje não despertam tanto interesse da indústria agroenergética como o pequi e óleos de fígado de peixes brancos. A possibilidade de negociar "créditos de carbono", ou simplesmente agregar uma imagem de "sustentabilidade" que hoje está tão em voga no meio publicitário, já agradam a alguns gestores de frotas e até são apontadas como prioridade por grandes indústrias quando vão à procura de parceiros logísticos, e a pressão para reduzir emissões em áreas densamente povoadas nos grandes centros urbanos e arredores também é um desafio que se faz cada vez mais presente em operações tão diversas e essenciais quanto o transporte coletivo urbano de passageiros, as entregas fracionadas porta-a-porta e a coleta de lixo.

Além das menores emissões tanto do monóxido de carbono (CO - altamente venenoso) quanto do dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico"), o biodiesel também proporciona uma menor formação de material particulado, contribuindo não apenas para uma maior qualidade do ar nas ruas e estradas mas também para a durabilidade do motor e dos dispositivos de controle de emissões aplicados ao mesmo. No caso do DPF, uma menor saturação resulta numa menor frequência dos ciclos de "regeneração" forçada, poupando também combustível. Já a válvula EGR, usada para promover a recirculação de uma parte dos gases inertes pós-combustão do escape, passa a sofrer menos acúmulo de sedimentos carbonizados que possam acarretar em obstruções e mau funcionamento da válvula. O coletor de admissão é outro componente muito vulnerável à carbonização, problema agravado pela presença de vapores de óleo oriundos da ventilação positiva do cárter (PCV - Positive Crankcase Ventilation) que se aderem às particulas de fuligem em suspensão nos gases de escapamento recirculados, as aglutinam e favorecem a adesão das mesmas às paredes do coletor de admissão, o que provoca restrições ao fluxo de ar, prejudicando o desempenho e a economia de combustível.

O setor agropecuário brasileiro, embora sofra com a insegurança jurídica, a violência levada a cabo por guerrilhas rurais como o MST, e ainda seja espoliado por um governo parasitário e corrupto, teria plenas condições de fornecer as principais matérias-primas para a produção de biodiesel sem requerer uma expansão das atuais fronteiras agrícolas nem causar um impacto tão negativo sobre o custo e disponibilidade de gêneros alimentícios, e até mesmo incluir de forma realmente efetiva a agricultura familiar na cadeia produtiva dos biocombustíveis. Privilegiar o uso do óleo de soja como matéria-prima mais importante para o biodiesel brasileiro é um erro que tem contribuído não só para afastar o pequeno produtor mas também desperta alguma incredulidade entre potenciais consumidores, quando alternativas como o pequi em algumas situações possam apresentar produtividade por hectare de 5 a 6 vezes maior em volume de óleo comparado à soja e outras como o caroço de manga possam vir a agregar valor a materiais que hoje são vistos mais como um resíduo do beneficiamento industrial de polpas de frutas enquanto tem o potencial energético solenemente negligenciado. Cabe lembrar que em 2006 algumas pernambucanas então estudantes de ensino médio chegaram a fazer uma pesquisa com o biodiesel feito de óleo de caroço de manga em parceria com uma usina de beneficiamento de polpas de frutas e uma empresa de transporte coletivo de passageiros no Recife, e os resultados foram considerados satisfatórios.

Já os álcoois, que podem ser tanto o etanol quanto o metanol, e são essenciais para que ocorra a transesterificação do óleo, poderiam ter também uma maior diversidade de matérias-primas para assegurar um suprimento mais constante ao longo do ano. Até algumas plantas aquáticas, como as lemnóideas, também conhecidas como aguapé, jigoga ou erva-de-pato, se mostram adequadas à produção de álcool por terem uma concentração de amido de 5 a 6 vezes superior à do milho, além de terem um ciclo de crescimento rápido e servirem para promover a estabilização biológica em rios, lagos e lagoas, podendo ter o cultivo articulado com métodos alternativos de tratamento de esgoto doméstico e, devido à grande retenção de nitratos e fosfatos, alguns resíduos ainda teriam alto valor como fertilizante agrícola ou até mesmo como complemento para alimentação animal em substituição a sais pecuários de custo mais elevado. Eu até já cheguei a ver o uso de lagoas de estabilização biológica cultivadas com aguapés para tratamento de esgoto em alguns bairros de Pelotas e na Base Aérea de Florianópolis, mas o aproveitamento dessas plantas para a produção de biocombustíveis ainda não é desenvolvido no Brasil.

Apesar de tantas oportunidades, não se pode deixar de levar em consideração alguns aspectos desfavoráveis: como a emissão de óxidos de nitrogênio pode sofrer um incremento ao utilizar biodiesel, promover um controle mais rigoroso desse parâmetro pode acarretar em alterações no desempenho e ligeiro aumento no consumo tanto do combustível quanto do reagente ARLA-32/AdBlue/DEF, este último apenas para motores equipados com sistema SCR. De acordo com a Scania, valores de potência e torque até 8% mais baixos em comparação com o óleo diesel convencional podem ser esperados ao usar biodiesel puro. No entanto, pode-se dizer que tais fatores não se tornariam necessariamente um impedimento para que o biodiesel ganhe espaço no mercado brasileiro. A exemplo do que ocorreu com o etanol na época do ProÁlcool e ocorre hoje com veículos convertidos para gás natural no Rio de Janeiro, uma tributação diferenciada para privilegiar o uso de um combustível com menor footprint ambiental pode servir de pretexto para atrair novos usuários para o biodiesel, tanto puro quanto em blends com concentração superior ao B7 hoje obrigatório. Tal medida já é tomada em países como a Suécia, e poderia ser replicada no Brasil.

Por mais que a política energética brasileira não venha sendo uma referência muito positiva, há de fato um bom espaço para que o interesse do consumidor pelo biodiesel cresça, e o mercado agroenergético tem plenas condições de responder, ainda que a abundância de entraves burocráticos faça com que isso aconteça de uma forma mais lenta que o desejável. Não há de se descartar que um eventual sucesso do biodiesel em aplicações comerciais, agrícolas, náuticas, industriais e de infra-estrutura possa também servir de pretexto para quebrar resistências a uma comercialização de veículos leves equipados com motores do ciclo Diesel independentemente das capacidades de carga ou passageiros e configuração de tração, desde temores relacionados a uma eventual instabilidade nos preços dos combustíveis destinados ao transporte rodoviário passando pela imagem de "poluidor" consolidada em torno do óleo diesel convencional e de motores Diesel mais antigos em estado de conservação precário. Aos poucos, novos horizontes vão se abrindo...

6 comentários:

  1. A matéria é bastante otimista, mas acho que deveria haver uma abordagem sobre os efeitos danosos do biodiesel nos sistemas de alimentação dos motores quando permanecem inativos por determinado período. Já soube de casos de caminhões novos que tiveram que trocar os 6 bicos que travaram no período em que ficaram estocados no pátio da montadora. O biodiesel favorece o proliferação de bactérias cujo excremento causa oxidação dos metais que compões bicos e bombas de alta. Acredito que essa seja a razão da não utilização em aplicação marítima.
    Gostaria de ver uma pesquisa mais detalhada sobre esse tema.

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    1. O desenvolvimento microbial nos tanques é um problema que não atinge apenas o biodiesel, é bastante comum também no querosene de aviação. Até já existem e são comercializados no exterior alguns produtos para inibir a proliferação de fungos, algas e bactérias no biodiesel. A propósito: o biodiesel é sim usado em aplicações marítimas, tanto que o maior consumidor de biodiesel do mundo é a Marinha americana.

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    2. No Brasil, o diesel marítimo ainda é do tipo A.

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  2. Falam tanto do álcool em gel para matar germes, então será que não compensaria colocar um pouco mais de álcool misturado no biodiesel para diminuir os germes?

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    1. Será que dá certo? Pelo menos o biodiesel e o etanol formam uma emulsão.

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  3. Esse otimismo é bom, mas com os políticos que estão aí fica difícil.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

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