domingo, 2 de junho de 2019

Reflexão: a quantidade de cilindros realmente importa?

É impossível falar sobre a importância às vezes exagerada que se dá à quantidade de cilindros de um motor e não observar a influência que a Ford teve nesse contexto, a ponto de no imaginário popular o simples avistamento de alguns modelos como o Mustang já se levar à suposição de que sempre esteja com um V8 sob o capô. A imagem de prestígio vinculada a motores com mais cilindros tornou-se um problema à medida que metas de redução de consumo de combustível e emissões começavam a entrar na pauta de fabricantes e entidades governamentais, para desgosto de uma parcela grande do público. De fato, a distribuição de potência e torque em diferentes faixas de rotação é afetada por esse aspecto, mas até que ponto seria justo por exemplo subestimar motores de concepção mais modesta como é o caso de um Thriftpower, também conhecido como Falcon-Six que ainda foi oferecido nos primeiros Mustangs quando comparado aos V8?

Chega a ser no mínimo irônico que na atual geração da Ford F-150 um motor V6 EcoBoost de 3.5L seja o mais destacado dentre as opções a gasolina e/ou flex aptas a funcionar também com etanol, equipando inclusive a Raptor no lugar do V8 aspirado de 6.2L usado na Raptor da geração anterior. Naturalmente, não dá para ignorar que o principal responsável por essa mudança tão significativa foi a presença do turbocompressor, desafiando o velho mote "there is no replacement for displacement" (não há substituto para a cilindrada) que uma parte considerável do público predominante dessa linha e de outros veículos projetados mais em função dos Estados Unidos que de mercados internacionais faziam questão de levar às últimas consequências. Vale destacar uma série de fatores que vai desde a percepção do valor agregado às tecnologias aplicadas no motor menor até aspectos que interfiram na dinâmica do veículo como a distribuição de peso entre os eixos quando vazio, na qual um motor mais curto pode ser favorável para um melhor equilíbrio.

Há de se levar em conta que nem sempre uma menor quantidade de cilindros vá se refletir em maior simplicidade, tomando por exemplo o fim da produção dos modelos médios da linha de caminhões Ford série F "pitbull" em 2005 porque foi considerado mais fácil tentar persuadir a parte do público ainda fiel a esses modelos a migrar para a linha Cargo de cabine avançada ao invés duma atualização da linha de motores que poderia ser útil conciliando um acréscimo menor ao custo de aquisição e o enquadramento em normas de emissões. Talvez uma das melhores provas de que essa não tenha sido a melhor abordagem seja um Ford Cargo transformado numa limousine caracterizada como aqueles Ford F-650 americanos, mas que conta com um motor Cummins ISB3.9 de 4 cilindros e já dotado de gerenciamento eletrônico em contraponto ao B5.9 governado mecanicamente que foi usado nas últimas versões do Ford "pitbull" brasileiro e aos ISB5.9 e ISB6.7 de 6 cilindros que o congênere americano usou durante diferentes fases do controle de emissões por lá. Seria de se esperar que pelo menos o ISB5.9 viesse a servir mais satisfatoriamente nessa aplicação essencialmente de lazer, mas há de se levar em consideração tanto os custos de aquisição e manutenção quanto os limites de velocidade a serem observados ao operar esse tipo de veículo no Brasil, para os quais o motor menor já serve a contento, além de apresentar um desempenho já bastante próximo ao do motor antigo que em tese deveria substituir.

Mas há toda uma série de fatores balizando a preferência por determinadas configurações de cilindros em diferentes aplicações mesmo considerando uma maior proximidade na cilindrada de cada motor, a exemplo do que podia ser observado durante a vigência das normas de emissões Euro-2 e Euro-3 com a linha das Ford F-250 e F-350. Lançadas no Brasil no final de '98, ambas contavam no início com o motor Cummins B3.9 de 4 cilindros e 3.9L como opção turbodiesel na F-250 e o único motor no caso da F-350, mantido até mesmo quando a F-250 já saía com o MWM Sprint 6.07 TCA de 6 cilindros e 4.2L que conquistou uma legião de fãs fervorosos em função do potencial para oferecer desempenho mais vigoroso em comparação ao Cummins que é notavelmente mais rudimentar e melhor em baixos e médios regimes de rotação, mantendo-se mais fiel ao pragmatismo e busca por eficiência que desde o início norteou a dieselização na linha de pick-ups full-size no Brasil. E quando a Euro-3 entrou em vigor, a volta do Cummins numa versão com gerenciamento eletrônico para a F-250 foi alvo de muita polêmica, enquanto na F-350 um de-rating para se manter enquadrada nos limites mais rigorosos sem precisar do custo e complexidade que ainda assustavam o público-alvo mais conservador era tratado com uma oposição menos ferrenha.

Outro caso bastante curioso envolvendo utilitários antigos da Ford e diferentes perfis de utilização foi quando tanto a F-1000 quanto a F-2000 eram equipadas com o mesmo motor MWM D-229-4 de 3.9L e 4 cilindros. Enquanto no caso da F-1000 havia uma maior diversificação dentre usuários tanto para trabalho quanto para lazer e transporte particular, destacando também a popularidade que conversões artesanais de cabine dupla já tiveram, para a F-2000 havia uma clara predominância junto ao público que a buscava para finalidades estritamente profissionais. Portanto, ainda que nem tão comum junto a consumidores da F-1000, teve bastante aceitação na F-2000 numa época que nem se falava muito em downsizing a substituição do motor original pelo D-229-3 que era a versão de 3 cilindros e 2.9L dos motores MWM série 229. De forma análoga à percepção de uma quantidade maior de cilindros como um fator de prestígio, fomentou-se a expectativa por vezes nem sempre tão precisa de que o inverso teria reflexos numa redução do consumo de combustível. Apesar de não fazer sentido considerar essa prática como análoga às definições hoje conhecidas de downsizing, convém observar aspectos como a influência dessa medida no desempenho dos veículos, especialmente se for levada em consideração uma readequação das relações de marcha para não sacrificar em demasia a aceleração mesmo que às custas de uma velocidade máxima mais modesta. Como se trata de uma mesma série de motores mais otimizada a regimes de rotação um tanto modestos, não se aplica a discussão em torno de downsizing e downrevving, apesar de que o motor menor teria que ser levado mais frequentemente a faixas mais altas de giro enquanto uma relação de transmissão mais curta manteria equiparados o torque efetivo e a velocidade final, de modo que por não poder "esticar" mais o limite de rotação o motor menor pode não se manter tão adequado para uma faixa tão ampla de condições operacionais.

Mais um exemplo interessante foi da 2ª geração do Hyundai Accent, que no Brasil nem teve versões turbodiesel, mas no exterior de certa forma desafiou a lógica que punha esses motores numa posição de destaque diante dos movidos a gasolina justamente ao dispor duma quantidade menor de cilindros. Enquanto até poucos anos atrás a configuração de 4 cilindros em linha parecia ser incontestável junto ao público generalista nos motores de ignição por faísca como um requisito mínimo, quem não abria mão do turbodiesel num Accent era de certa forma surpreendido com um motor de 3 cilindros. Claro que essa característica está longe de ser exatamente um demérito, especialmente agora que motores de ignição por faísca estão incorporando algumas soluções que já são largamente aplicadas aos Diesel por um bom tempo na esperança de preservar alguma competitividade ao desprezarmos as influências de políticos para tentar cercear a liberdade de escolha em outros mercados.
É previsível que o mercado automobilístico, especialmente considerando segmentos de entrada onde a busca por afirmação tão somente através da propriedade de um veículo motorizado influencie uma parcela expressiva do público a ignorar os méritos que uma configuração diferente de cilindros possa oferecer. Apesar de que uma eventual rejeição a um motor monocilíndrico como muitos destinados a aplicações náuticas possa fazer algum sentido, tendo em vista não apenas a faixa útil de rotação mais estreita mas também a pouca potência específica, o pico de torque num regime de giro tão baixo que dificulta sustentar uma velocidade de cruzeiro confortável em diferentes condições de terreno e até o peso frequentemente maior em comparação a um motor automotivo com mais cilindros numa mesma faixa de cilindrada, cabe a cada operador conhecer as efetivas necessidades antes de descartar alguma opção que o sirva até melhor. Enfim, a quantidade de cilindros até importa, mas não deve ser o único parâmetro para fazer juízo de valor acerca de um motor.

3 comentários:

  1. Americanos são muito fanáticos por carrão, mas na verdade se a gasolina no Brasil fosse tão barata e as ruas mais espaçosas eu acho que a tentação seria forte aqui também.

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  2. Faz sentido. Só lembrar do Simca Chambord com motor 2.4 V8 que não era páreo para o 2.5 do Opala 4 cilindros.

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  3. Nunca prestei atenção nessas F-2000, mas eu via até F-1000 do modelo mais novo que esse adaptada com motor de 3 cilindros.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html