sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Refletindo sobre a cultura dos furgões

Não é de hoje que a Argentina tem uma cultura automotiva com diferenças substanciais diante da brasileira, apesar de ser um país próximo e com um processo de colonização parecido com o do Sul do Brasil. Um aspecto que logo salta aos olhos é a maior receptividade aos furgões de uso misto como o Peugeot Traveller entre os argentinos, enquanto no Brasil prevalecem as pick-ups e mais recentemente a modinha dos SUVs. Pode-se relacionar essa situação com as restrições ao Diesel em veículos leves no Brasil, e tais categorias se tornando a alternativa mais viável para quem não abre mão dessa opção, às custas de eventuais prejuízos à eficiência geral da frota brasileira resultantes da menor presença de modelos com características mais coerentes às efetivas necessidades de uma parte considerável do público brasileiro.
A princípio a imagem de rusticidade normalmente associada aos furgões pode levar a crer que nem o apelo do espaço interno seria suficiente para fazer frente à oferta de comodidades cada vez maior nas pick-ups e sport-utilities, embora modelos como o Peugeot Traveller desafiem essa lógica e ofereçam facilidades cada vez mais apreciadas pelo público urbano como o câmbio automático que ainda não é oferecido no Peugeot Expert com o qual compartilha o projeto básico e que já é vendido no Brasil em versão cargueira. Também é importante recordar que às vezes um veículo de tamanho mais exagerado pode provocar algumas dificuldades na operação, e justamente nesse aspecto está um dos principais argumentos usados pela Peugeot para divulgar o Expert no Brasil, com destaque para a altura máxima inferior a 2 metros viabilizando o tráfego em áreas com restrição de altura como a maior parte dos estacionamentos cobertos. Embora o comprimento e a largura possam ser semelhantes entre furgões e outras categorias de veículo mais populares junto ao público generalista e de certa forma levar a crer que no fim das contas dê tudo na mesma para quem a princípio vá fazer uso do veículo na maior parte das vezes desacompanhado e sem aproveitar a capacidade de carga, a proporção entre a área útil e/ou a capacidade volumétrica pelas dimensões externas costuma fazer a diferença.

Não é incomum que a principal referência quando se fala em uso de furgões para fins particulares ainda seja a Kombi, tendo em vista que por bastante tempo foi a única van de porte médio disponível no Brasil em versão que podia ser conduzida com carteira de habilitação categoria B como qualquer carro normal. Apesar de em outras épocas a Volkswagen ter chegado a anunciar que cabiam até 12 pessoas "extra-oficialmente" na Kombi, a versão Standard sempre foi homologada para 9 ocupantes já contando o condutor, apesar de que logo após a remodelação trazida ao Brasil em '97 chegou a ser homologada uma versão de 12 lugares para atender ao segmento das lotações que ganhou força na década de '90 com o fenômeno das concorrentes coreanas como a Kia Besta. Naturalmente, vale destacar a posição do cockpit avançado sobre o eixo dianteiro em ambas, sendo que na Kombi teve como principais justificativas o aproveitamento da mecânica básica da linha Volkswagen refrigerada a ar e a concentração de peso mais próxima do centro em diferentes condições de carga favorecendo a tração também em terrenos irregulares, enquanto no caso da Besta a motivação é o projeto originário da Mazda se enquadrar numa norma japonesa que considera "de luxo" qualquer veículo que exceda o comprimento de 4,70m e/ou a largura de 1,70m de modo que essa configuração se tornou a mais indicada para manter uma capacidade volumétrica satisfatória. Por mais que servissem bem ao fim que se destinavam, os modelos tinham algumas peculiaridades que podiam se tornar inconvenientes, como a intrusão do compartimento do motor da Kombi no compartimento de carga eventualmente dificultando a acomodação de bagagens, enquanto na Besta o acesso ao motor por baixo dos bancos dianteiros requer que o motorista e quem mais estiver na primeira fileira de assentos desembarque sempre que houver a necessidade de intervenção de um mecânico. Enquanto um usuário profissional poderia relevar essas pequenas inconveniências dependendo de qual tipo de serviço seja desempenhado com o veículo, um consumidor particular nem sempre se dispõe a aceitar tais condições em nome da otimização do aproveitamento de espaço...

Considerando faixas de tamanho mais de acordo com o que tem se consolidado na preferência do público generalista, convém lançar um olhar sobre o Renault Kangoo de 1ª geração que era fabricado na Argentina e o Renault Captur brasileiro. Além das versões de passageiros que se mantiveram em linha apesar de não serem mais trazidas ao Brasil, também não era incomum entre os argentinos uma configuração de uso misto baseada na cargueira e apenas parcialmente envidraçada na parte traseira, fácil de encontrar em Florianópolis durante a temporada de verão. A bem da verdade, tendo em vista que não só que o Kangoo oferece uma capacidade volumétrica maior mesmo sendo mais curto e estreito que o Captur mas também que ambos estão longe de ser efetivamente destinados a condições de rodagem fora-de-estrada severas, a imagem de robustez constantemente propagandeada como um diferencial para os sport-utilities se revela uma meia-verdade inconveniente para o consumidor que se vê com menos opções e cada vez mais empurrado para segmentos de valor agregado mais alto, e talvez pela percepção do automóvel ainda como um símbolo de status o povão parece não se importar tanto com o impacto dessa situação desfavorável.

Há de se levar em conta também a ironia no fato de que duas categorias distintas de veículos com um pretexto a princípio similar como utilitário tomaram rumos tão distintos no tocante à preferência do brasileiro. Em que pese uma eventual facilidade para transportar alguma carga mais volumosa numa pick-up de cabine dupla como a Renault Duster Oroch sem sacrificar o espaço de passageiros, mesmo que possa requerer um maior preparo na amarração para prevenir quedas e alguma proteção adicional contra intempéries ou materiais que por alguma razão não convenha transportar enclausurados junto aos passageiros como botijões de gás de cozinha ou alguns agroquímicos, para uma grande maioria do público generalista ainda faria mais sentido um furgão multiuso como o Dacia Dokker atualmente produzido na Argentina onde é comercializado como Renault Nuevo Kangoo. No entanto, novamente convém destacar a influência do marketing com relação às pick-ups e SUVs que são apresentados em meio a uma imagem de liberdade e aventura muito mais frequentemente, mesmo que um furgão possa fazer mais sentido até nesse aspecto. Considerando conjuntos mecânicos similares, há momentos em que a maior versatilidade nas configurações do interior de um furgão pode ser mais conveniente tanto no uso cotidiano quanto em viagens de lazer, oferecendo mais conforto e praticidade até numa parada para descanso durante o trajeto.

Mesmo que a capacidade de carga nominal num furgão compacto como o Peugeot Partner/Citroën Berlingo de 1ª geração se mantenha na faixa de 800kg nas versões somente cargueiras e por volta de 760kg numa configuração mista, já os afastando do enquadramento meramente arbitrário numa classe de "utilitários" aptos a usar óleo diesel convencional no Brasil mesmo com acomodação para menos de 9 passageiros além do motorista que seria exigida para classificação como microônibus e a tração simples, é oportuno destacar que a popularização no uso particular/familiar na Argentina se mostra mais sustentável que forçar a classe média a se atolar em dívidas para adquirir veículos de concepção eventualmente mais pesada sem que isso se reflita numa melhor capacidade de carga ou passageiros. Caso o exemplo da cultura dos furgões fosse replicado no Brasil e acompanhado por uma liberação do Diesel em veículos leves, apesar de um eventual temor quanto ao impacto de uma maior demanda por óleo diesel para fins particulares sobre a oferta do combustível para aplicações profissionais, não seria tão justificável o alarmismo ao considerarmos que um modelo com projeto mais racional pode servir bem tanto a quem deixaria de partir para um SUV na hora de comprar o primeiro Diesel quanto no contexto de uma "renovação de frota".

Um configuração mais racional e que atenda melhor às reais necessidades de uma parte expressiva do público pode ser observada em modelos como o Fiat Fiorino Qubo oferecido na Argentina, mas não no Brasil onde o mercado apresenta uma tendência ao comodismo e à mediocridade. Pelos motivos mais diversos que possam ser apresentados, a cultura dos furgões infelizmente não foi tão difundida a ponto de mostrar tão claramente ao público brasileiro generalista o quão vantajosa pode se tornar para a eficiência geral da frota, dada a proporção entre o espaço ocupado sobre o leito carroçável e a carga ou passageiros que possam ser transportados separadamente ou em simultâneo, resultando até mesmo numa maior fluidez em meio a condições de tráfego mais intenso. Enfim, por mais que eventualmente uma pick-up ou sport-utility possa soar justificável como uma opção mais imediatista para assegurar o direito ao Diesel, não faz sentido deixar de reconhecer que outras configurações de veículo podem oferecer resultados melhores.

4 comentários:

  1. Seria mesmo melhor que tivesse mais essa cultura de furgões no Brasil, daí de repente até o câmbio automático fosse mais usado também.

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    1. Ainda acho mais fácil o câmbio automático ganhar espaço nos furgões quando as empresas forem obrigadas a pagar adicional de insalubridade para motoristas que trabalhem em veículos com câmbio manual.

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    2. Agora que já tem até ônibus com câmbio automático, é mesmo estranho não ter tanto veículo de carga com esse tipo de câmbio. Mas conforme até carros pequenos começam a usar mais o câmbio automático, a ponto de ficar difícil achar alguém que saiba dirigir com câmbio manual, eu não duvido que vá chegar uma hora que algumas vans possam ter só mesmo o câmbio automático como umas vans americanas.

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    3. São Paulo com o trânsito que tem, já é um lugar que parece perto de acontecer isso. Muita gente que eu conheço já até esqueceu como dirigir carro com câmbio manual e sofre quando tem que usar um de locadora quando deixa o carro na oficina.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html