segunda-feira, 13 de abril de 2020

Uma reflexão sobre a intenção do ministro Ricardo Salles com relação a ônibus urbanos movidos a gás natural

Em meio às profundas reestruturações que o governo do presidente Jair Bolsonaro tem implementado no Brasil, merece algum destaque a intenção do ministro Ricardo Salles, do meio-ambiente, desejoso de uma consolidação do gás natural como combustível para ônibus urbanos nos grandes centros. Sem dúvidas que é uma proposta bastante ambiciosa, tendo em vista não só a longa hegemonia do Diesel e a maior simplicidade no manejo de combustíveis líquidos nas próprias bases operacionais mas ainda o impacto que o uso de um combustível com distribuição um tanto restrita acarreta sobre os valores de revenda no momento que a idade dum ônibus urbano convencional ultrapassa o limite imposto na cidade ou região metropolitana à qual sirva. Mas a bem da verdade, a abordagem em torno do gás em aplicações pesadas voltar-se ao menos num estágio inicial aos ônibus urbanos não deixa de fazer mais sentido do que insistir numa demonização do Diesel como chegou a propor um petista em São Paulo.

Não é incomum o reaproveitamento de ônibus removidos de algum sistema de transporte municipal para outras finalidades, indo desde serviços de manutenção na empresa à qual pertençam ou mesmo o transporte de passageiros em alguma condição operacional que não esteja sujeita ao mesmo rigor no tocante à idade da frota como para levar operários aos canteiros de obra na construção civil. E nesses casos, a maior flexibilidade no planejamento das rotas em função da disponibilidade de combustível que um motor Diesel proporciona comparado ao gás natural obviamente se reflete, ainda que às vezes a tolerância a variações na qualidade do óleo diesel de um "pau velho" não se replique numa mesma proporção em modelos não tão antigos. Considerando não só a eventual necessidade de usar veículos com motor Diesel para rebocar um ônibus avariado, e se for o caso do gás natural até mesmo por uma falta de combustível ocorrida durante o percurso dar causa à necessidade de um socorro, não deixa de ser importante lançar um olhar além da operação regular no transporte urbano e considerar também as extensões da vida útil operacional que possam ser melhor ajustadas a outros combustíveis alternativos como o biodiesel, ou ainda o etanol que em algumas regiões poderia atender bem ao transporte rural e ainda ser integrado ao biometano para favorecer a expansão da disponibilidade de gás natural pelo interior.

O fato de muitos dos principais fabricantes de motores turbodiesel atualmente que equipam os ônibus urbanos brasileiros efetivamente dominarem a tecnologia necessária à operação com gás natural, bem como um alto grau de compartilhamento de componentes entre os ciclos Diesel e Otto (de ignição por faísca), a princípio poderia dar indícios de uma transição suave mas por si só não pode ser visto como uma garantia de sucesso. Por mais que a idéia de se ver livre da necessidade de armazenar não apenas o óleo diesel mas também o fluido AdBlue/ARLA-32 a partir da introdução das normas de emissões Euro-5 seja tentadora, e a possibilidade de tanto estocar o gás natural comprimido (ou liquefeito) que chegue de caminhão nas bases operacionais quanto de recebê-lo canalizado possa ser interessante, há de se salientar que a distribuição do gás natural por meio de gasodutos é fundamental para que sejam oferecidas vantagens logísticas mais expressivas que se refletiriam ainda no footprint ambiental geral. O fato do gás natural ser sempre injetado já na fase de vapor também seria convidativo por eliminar o problema das emissões de material particulado que vem sendo observados à medida que a injeção direta avança não só junto ao Diesel mas também em motores a gasolina ou "flex" a ponto de passar a ser necessário o filtro de material particulado em motores Euro-6 e que já vinha sendo exigido para os motores Diesel a partir da entrada em vigor da Euro-5, e diga-se de passagem a injeção direta tornou-se um empecilho para a conversão de alguns motores de ignição por faísca recentes ao gás natural. E assim, se por um lado há a possibilidade de qualquer chassi de ônibus urbano Scania contar com um motor a gás natural, por outro a presença do gás canalizado limitada à região central numa cidade como Florianópolis onde as bases operacionais das empresas de transporte coletivo encontram-se em bairros mais distantes do centro dificultaria essa aplicação.

Deixando um pouco de lado o papel de advogado do diabo, é de suma importância destacar que o gás natural é a principal matéria-prima na síntese da uréia industrial destinada à formulação do fluido de redução de óxidos de nitrogênio AdBlue/ARLA-32, o que soa especialmente estúpido ao lembrarmos que estaria sendo usado apenas para um pós-tratamento dos gases de escape ao invés de efetivamente promover uma melhoria no processo de combustão. Fazendo uma analogia entre os dispositivos mais comuns para promover o controle dessas emissões, que são o EGR usado pela MAN Latin America em chassis como o Volkswagen 17-230 OD equipado com motor MAN e o SCR que equipa todos os microônibus Volare homologados nas normas Euro-5 que contam com motor Cummins, um eventual recurso ao gás natural por injeção sequencial nos pórticos de válvula forma mistura ar/combustível e reduz a concentração de oxigênio livre para reagir com o nitrogênio durante a combustão, lembrando que em motores do ciclo Diesel uma proporção ar/combustível mais pobre que a de congêneres com motor a gasolina ou flex anteriores à presença da injeção direta é essencial para a própria ocorrência da ignição por compressão devido à maior concentração de calor em proporção ao débito de injeção (volume total de combustível injetado). Uma injeção suplementar de gás natural num motor Diesel já seria proveitosa podendo reduzir o consumo do óleo diesel convencional, e por já adentrar as câmaras de combustão em fase de vapor intensifica a propagação da chama (flame spread) tão logo inicie-se a auto-ignição do óleo diesel proporcionando uma queima mais homogênea e limpa, mas se for o caso de priorizar o uso do gás natural isoladamente como combustível de acordo com o desejo do ministro Ricardo Salles faz-se necessário recorrer à ignição por faísca e a uma taxa de compressão mais baixa que possibilita uma redução ainda mais expressiva da formação de óxidos de nitrogênio.
É importante lembrar também que dentro duma mesma cidade podem haver rotas com condições de rodagem muito discrepantes, a ponto de ainda ser comum apontar ônibus com motor traseiro como se fossem inerentemente inviáveis para transitar em trechos mais precários, o que no fim das contas não é uma verdade absoluta. E apesar de uma das principais vantagens apontadas para essa configuração ser a acessibilidade em função da possibilidade de contar com piso rebaixado e uma entrada livre de degraus devido à menor intrusão dos componentes mecânicos que ficam mais concentrados para trás do eixo traseiro, como pode ser observado nos microônibus Volare cuja disponibilidade de versões com motor traseiro ainda está restrita ao modelo Access, há de se considerar que eventualmente o uso de um piso elevado como o de similares com motor dianteiro ainda libera um espaço maior para que os reservatórios de combustível sejam melhor distribuídos, otimizando o equilíbrio de peso nas mais diversas condições de carga. Portanto, talvez ainda seja mais urgente superar a resistência de gestores de frota ao motor traseiro antes mesmo de cogitar uma maior presença do gás natural na matriz do transporte coletivo urbano e intermunicipal.

Ainda que o ministro Ricardo Salles esteja realmente imbuído duma intenção tecnicamente adequada, é preciso reconhecer que há desafios que não devem ser subestimados, inclusive tomando outra vez o exemplo de Florianópolis é interessante observar que o gás natural já caiu em desgraça até mesmo no segmento de táxis exatamente em função da disponibilidade muito restrita que na parte insular ocorre só em 2 postos no centro. Não seria justificável ignorar a sustentabilidade econômica ao se defender a preservação ambiental, especialmente numa aplicação onde o preço final do serviço é especialmente sentida pela população mais pobre, e deve-se buscar uma amortização dos investimentos iniciais para viabilizar essa operação ao invés de fazer como os alienados que ainda acreditam em almoço grátis. Enfim, como qualquer outra decisão estratégica, uma alteração tão drástica na matriz do transporte coletivo tem de ser bem formulada para não deixar margem a posteriores arrependimentos.

Um comentário:

  1. Até em São Paulo é difícil tirar os ônibus a diesel. Nem aqueles movidos a etanol deram certo.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html