quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Observações sobre a retirada da Ford do segmento de caminhões na América do Sul

A recente decisão da Ford de fechar até o fim do ano a fábrica de São Bernardo do Campo, que desde 2001 concentra a operação de caminhões no Brasil, certamente é uma das principais notícias que vão dar o que falar esse mês. Naturalmente a medida gera incredulidade e questionamentos mesmo com a divulgação de uma nota oficial da Ford, tendo em vista não só investimentos recentes na linha Cargo mas também a reintrodução da Série F em 2014. Em meio a alguns momentos que tanto as vendas de caminhões tiveram um crescimento quanto outras oportunidades mal-aproveitadas, é difícil ignorar uma sucessão de erros administrativos que historicamente tem prejudicado a operação brasileira da Ford e agora se refletem nessa desistência.
Se por um lado a linha da F-350 e da F-4000 ainda tem fortes argumentos de vendas em uma parte do público mais conservadora que não abria mão da cabine convencional com tanta facilidade, e no caso da F-4000 a disponibilidade da versão 4X4 ainda é um diferencial, por outro ocorreu uma mistura de descaso com a parte técnica e falta de uma percepção das efetivas necessidades e/ou preferências dos clientes tradicionais que procuravam por esses modelos. Além de não ter acompanhado atualizações estéticas dos similares americanos, a escolha do motor Cummins ISF2.8 de alta rotação acabou sendo um tiro no pé não por defeito do motor mas pela percepção de motores com cilindrada mais elevada e faixas de rotação de picos de potência e torque mais contidas como sendo uma melhor opção. Por mais que hoje o dilema entre o downsizing e o downrevving permaneça relevante, com os motores de alta rotação mais desmistificados em concorrentes de projeto europeu ou asiático, o público-alvo da Série F permanece mais refratário a essa mudança em comparação a quem aposta em alguns modelos de fabricantes como a Foton ou mesmo da nova linha Volkswagen Delivery.

Se em outras épocas, mesmo com a aparente inferioridade técnica diante de similares americanos, era garantida uma zona de conforto em mercados de exportação regional onde o preço dos combustíveis tornava motores Diesel uma necessidade ao invés de uma opção e "qualquer motor de trator" já teria um custo mais facilmente assimilável que o de um motor mais ao gosto americano, a concorrência com os fabricantes chineses cada vez mais expressiva em países como o Uruguai já faz com que a operação se torne mais difícil de justificar. Mesmo com um alto grau de terceirização da produção de componentes como motor, câmbio, eixos e sistemas como direção e freios levando a crer que o custo para manter os caminhões em linha no Brasil pareça não ser tão absurdo, além do mais diante do fato de muitos caminhões chineses ainda usarem cópias de motores Isuzu (principalmente o 4JB1-TC) feitas por conta própria tendo em vista que a defasagem de normas de emissões em alguns países vizinhos não requer investimentos muito altos para se enquadrar, não causa nenhuma surpresa que a Ford se veja forçada a jogar a toalha.

Historicamente entre os veículos leves a Ford manteve o mau costume de depender excessivamente de apenas um modelo em cada mercado, desde o Modelo T que motorizou os Estados Unidos até o Prefect inglês e outros compactos desenvolvidos de acordo com regulamentações mais comuns na Europa que atrelavam os impostos à cilindrada dos veículos. Apesar da antiga predominância da concepção básica de chassi separado da carroceria não ter apresentado diferenças tão substanciais mesmo entre plataformas distintas, e talvez até facilitar uma adequação a necessidades e preferências do público sem prejudicar a rigidez estrutural, bem como alterações de estilo das carrocerias não demandarem revisões muito onerosas no tocante ao chassi e trem-de-força, foi uma estratégia perigosa para a Ford postergar readequações das linhas de motores e fazê-las apenas quando estivesse com a corda no pescoço. Embora essa flexibilidade já não seja observada entre os automóveis, é um aspecto que permanece relevante ao se tratar de caminhões, além da vantagem do outsourcing de motores Diesel ser culturalmente mais aceito entre operadores comerciais e ser menos dispendioso no tocante ao desenvolvimento de soluções para controle de emissões que podem passar a ser de inteira responsabilidade do fornecedor...
Há de se recordar que, apesar da cabine avançada ter se tornado a preferida dos gestores de frota por conta do melhor aproveitamento da extensão total do veículo em proporção à plataforma de carga e da manobrabilidade em áreas urbanas congestionadas, há oportunidades hoje pouco exploradas pela Ford em outras aplicações para as quais o cockpit recuado segue relevante. E como não chega a ser tecnicamente inviável fazer essa modificação até mesmo no Cargo para atender às necessidades de aplicações especiais como carro-forte, aparentemente não seria tão difícil ao menos tentar valer-se da escala de produção da plataforma do Cargo que já tinha um índice de nacionalização mais alto que o das versões médias da Série F descontinuadas no mercado brasileiro em 2005, e assim além de algumas aplicações específicas onde ainda havia espaço para os "bicudos" também manteria um diferencial em mercados de exportação regional como os países andinos diante da concorrência asiática que recorre mais frequentemente à cabine avançada e outras localidades onde os caminhões de concepção mais americanizada ainda fazem sucesso diante do estilo europeu do Cargo.

A bem da verdade, mesmo quando caminhões e pick-ups full-size a gasolina ainda tinham relevância no Brasil e o modelo de produção levado adiante pelas indústrias automobilísticas instaladas no país era basicamente a substituição de importações, a Ford já cometia erros ao depender excessivamente dos motores V8 que viriam a se tornar um fardo quando foi deflagrada a crise do petróleo. Enquanto isso na Argentina, o sucesso do Ford Falcon com a 3ª geração de motores de 6 cilindros em linha da marca proporcionava uma maior facilidade para amortizar ao menos em parte o impacto do consumo de combustível devido à disponibilidade imediata de uma linha de motores que poderiam ao menos passar a impressão de uma maior eficiência e assim prejudicar menos as vendas. Cabe destacar que as políticas protecionistas tanto no Brasil quanto na Argentina tiveram como efeito colateral o incentivo à inércia dos fabricantes em geral, não apenas da Ford, embora em outros momentos já tenha estado a poucos passos de encerrar as operações ao menos no Brasil e talvez atrapalhasse também a operação na Argentina à medida que avançavam os planos que culminaram no estabelecimento do Mercosul.

Ainda que a grosso modo não seja totalmente errado apontar a produção de caminhões como o mais próximo dos calhambeques que a própria Ford popularizou mundo afora, a ponto de diferenças entre as duas gerações do Ford Cargo em elementos estruturais e sistemas como freio e direção guardarem alguma proporção com as diferenças observadas entre o Modelo T e o Modelo A, os tempos são outros. Ao invés de países inteiros curvarem-se em reverência a Henry Ford e o que ele quisesse desovar, é fundamental conhecer não apenas as necessidades mas também desejos mais subjetivos dos operadores. Enfim, por mais que não deixe de ser surpreendente que a Ford esteja abandonando o mercado de caminhões na América do Sul nesse momento, não se pode negar que há precedentes históricos para uma medida tão extrema...

4 comentários:

  1. Quer dizer então que os americanos estão "arrepiando"? Depois de a GM anunciar que está planejando sair totalmente do Brasil, agora é a vez da Ford seguir mesmo caminho da rival e encerrar a produção de caminhões, como a GM fez em 2002, quando esta sepultou os GMC e levou a Silverado junto...

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    1. São situações diferentes. A ameaça da GM sair do Brasil não fazia o menor sentido, tendo em vista a posição confortável no mercado nacional e nas exportações regionais, enquanto o caso dos caminhões GMC envolvia uma dependência excessiva por componentes importados. Se até na Índia onde a GM hoje só fabrica kits CKD do Spark/Beat para serem montados no México e exportava o Spark de especificação australiana ainda foi mantida a operação industrial, soaria um tanto absurdo encerrar totalmente a fabricação no Brasil agora que o Onix é líder de vendas. No fim das contas, foi fogo de palha para tentar conseguir algum incentivo fiscal ou amedrontar o sindicato. Mas a GM sempre foi mais competitiva que a Ford no segmento de veículos leves, apesar de ter cometido alguns erros em outros momentos.

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    2. De fato, a GM lidera nos compactos, Onix e Prisma, mas o mesmo não dá pra dizer nos segmentos acima, onde tem carros de estilo duvidoso, como o Cobalt e o "cruzamento de capivara com freezer horizontal", a Spin. E quanto à Cummins, como fica sem o cliente mais importante?

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    3. Apesar do desenho controverso, o Cobalt e a Spin tem um público cativo, tanto entre taxistas e frotas quanto para o consumidor final. Chega a ser intrigante a Spin vender mais que o Tracker em meio ao modismo dos SUVs, mas atende bem às efetivas necessidades do público. No caso da Cummins, que teria começado a operação no Brasil diante da expectativa de uma introdução da série de caminhões Ford Louisville que tinha entre as opções de motor o Cummins série N vulgo "Big Cam", também é relevante nos segmentos de propulsão naval e grupos geradores. Além de já fornecer motores para outros fabricantes de caminhões que tendem a preencher o espaço deixado pela Ford. A linha Volkswagen Delivery já usa os motores da série ISF por exemplo.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html