terça-feira, 8 de outubro de 2019

Óleos vegetais como combustível veicular: um tabu que vale a pena combater

Ao avistar uma Volkswagen Transporter T4 que está sendo usada numa expedição da Argentina até o Alasca, anunciada como "vegan road trip", é previsível que também sejam fomentadas questões sobre um eventual uso de combustíveis de base vegetal. Por mais que a princípio toda vez que se mencione algo como vegan tenha relação com alimentação e uma infinidade de produtos que não tenham partes feitas com substratos de origem animal, o que faz com que derivados de petróleo também possam ser considerados aceitáveis por esse segmento do público, também é relevante considerar que alguns dos principais substitutivos para carnes em dietas vegetarianas a exemplo da soja tem um teor de óleo que pode servir tanto a aplicações culinárias quanto especialidades das indústrias petroquímica, cosmética e farmacêutica. Mas eventuais fatores que possam acabar se tornando mais favoráveis a um uso direto de óleos vegetais como combustível veicular vão muito além de uma eventual abstenção do consumo de proteína animal.
Sem distinção entre produtos destinados a vegetarianos ou algum alimento mais tradicional contendo alguma carne, frituras por imersão ainda são muito apreciadas por uma grande parte da população em função do preparo relativamente rápido, e em algum momento o óleo usado na preparação vai ter que ser descartado após tornar-se inservível para uso culinário. Logo, pouco importando se a preferência para um lanche rápido se dê por um steak à base de soja imitando um filé de frango empanado ou por um bolinho de mandioca com carne seca tradicional do Brasil e a respectiva variação mais recente de batata-doce com frango atendendo ao público "fitness", em algum momento vai surgir a oportunidade de considerar algum reaproveitamento do óleo de fritura. Naturalmente a popularização mais recente de fritadeiras sem óleo, ou que apenas usem uma quantidade menor de óleo ainda fresco apenas para proporcionar crocância às preparações, também seria algo a se considerar à medida que uma menor demanda por óleos vegetais para aplicações culinárias se torna outro bom pretexto para considerar um eventual uso como combustível automotivo, afinal de contas a mesma soja usada na produção de concentrado de proteína para atender aos vegetarianos sempre vai ter também algum teor de óleo que devido ao custo ainda é o mais usado para tanto frituras quanto para a produção de biodiesel no Brasil.

Mas se algumas iguarias típicas brasileiras podem ser modernizadas sem perder a essência, a exemplo da tradicional coxinha que já ganhou variações feitas até com carne bovina ao invés de frango, outras como o acarajé não apresentam justificativas para descaracterizações. Uma coxinha pode ser frita sem óleo ou até assada, mas um acarajé autêntico não só é frito por imersão como é mais especificamente no azeite de dendê. Diga-se de passagem, é justamente o azeite de dendê a principal matéria-prima para a produção de biodiesel na Malásia, onde a derrubada de florestas nativas que serviam de habitat para orangotangos visando abrir áreas para o cultivo se tornou uma controvérsia mundial no que se refere a aplicações em especialidades industriais que vão desde cosméticos e produtos químicos até alimentos processados. Comercializado em alguns mercados internacionais sob a denominação "óleo de palma" e muito usado para frituras em geral devido à maior resistência à oxidação em altas temperaturas, o azeite de dendê quando fresco também apresenta excelente desempenho como um lubrificante para motores equivalente a alguns óleos sintéticos de marcas conhecidas. Pode parecer que o dendê seria mais um alvo para críticas infundadas de ecoterroristas tanto nascidos no Brasil quanto estrangeiros, mas a possibilidade de cultivar o dendê em algumas localidades na Amazônia como estava sendo pesquisado pela Embrapa Amazônia Ocidental há 10 anos atrás seria até útil para conter a erosão em barrancas de rios, além de um combustível autóctone ser particularmente útil para populações ribeirinhas devido ao custo menor ao se eliminar algumas despesas e emissões relativas à logística para levá-lo aos rincões mais remotos do país.
Além do uso na preparação de acarajé e outras iguarias especialmente populares na Bahia, o dendê já foi apontado como uma oportunidade para recuperação econômica na região cacaueira baiana onde a introdução criminosa da praga conhecida como "vassoura de bruxa" que é endêmica na Amazônia foi a responsável por um dos maiores desastres que já se abateram sobre a agricultura brasileira. Produzir localmente um cultivar tão importante para a tradição gastronômica baiana desde a época colonial, e lembrando que o Brasil hoje é dependente da importação do azeite de dendê da Malásia e o acarajé já não é mais tão restrito à região Nordeste e portanto a demanda por esse insumo se justifica, chega até a soar estúpido que se tenham perdido oportunidades de fomentar esse cultivo e eventualmente ainda desenvolver um excedente de produção que pudesse justamente atender às necessidades do mercado de combustíveis, para não entrar no mérito do misterioso motor Elko Multifuel desenvolvido já com a intenção de se usar qualquer óleo vegetal bruto como combustível. O uso do dendê como matéria-prima para biodiesel no Brasil chegou a ser pleiteado pelo já falecido engenheiro químico Hernani Sá, natural de Ilhéus e grande defensor do qual se referia como "Dendiesel", e que testou em veículos leves numa parceria com Embrapa, Ceplac e Volkswagen desde a década de '80 até ter o projeto encerrado por entraves burocráticos em '93 já na presidência de Itamar Franco que preferiu priorizar o relançamento do Fusca...
Com um retorno ao mercado motivado mais por questões políticas que efetivamente técnicas, o Fusca Itamar chegou a ser oferecido também na opção movida a álcool mesmo com a memória então ainda recente do desabastecimento durante a safra '89-'90 que fez o etanol cair em desgraça junto à opinião pública. Vale ressaltar não só o domínio da cana de açúcar como matéria-prima do álcool carburante e a maior concentração da produção em São Paulo, Alagoas e Pernambuco, mas também o fato de que o Fusca já não exercia o mesmo fascínio sobre o público generalista que não só estava cada vez mais urbanizado como inebriado pela reabertura das importações que incluiu a chegada de concorrentes na categoria que viria a ser definida como "carros populares". A centralização mais intensa da produção do etanol também contrasta com a grande variedade de oleaginosas aclimatadas a diferentes regiões, o que já tornaria o uso direto de um óleo vegetal como combustível particularmente mais desejável no tocante à auto-suficiência energética aos olhos duma população rural que a princípio seria a maior beneficiada pela breve volta do Fusca entre '93 e '96...

Naturalmente, durante a década de '90 já estavam em curso algumas mudanças um tanto drásticas na tecnologia de motores Diesel automotivos, como uma presença mais maciça do turbo em meio a uma obsolescência da injeção indireta em aplicações leves. Um caso digno de nota foi o da última geração do Ford Escort produzida na Argentina e na Europa, que chegou a ter versões do motor Endura-D de 1.8L com injeção indireta tanto naturalmente aspirado quanto turbo e de injeção direta somente com turbo de acordo com cada mercado onde fosse permitido recorrer a essa motorização, ao invés de ficar limitado à ignição por faísca como ocorreu no Brasil onde foram oferecidos os motores Zetec de 1.8L e Zetec-Rocam de 1.6L movidos a gasolina. A maior sofisticação fez o Diesel deixar de ser só um quebra-galho para quem queria economizar e se via obrigado a sacrificar um desempenho mais vigoroso por ter que usar um motor mais pé-duro, tornando-se efetivamente desejável aos olhos dum público mais generalista, mas já se tornava um tanto desafiadora no tocante à aptidão ao uso de óleos vegetais como combustível alternativo, tendo em vista que motores de injeção indireta costumam ter uma temperatura operacional mais elevada que acaba proporcionando uma combustão mais completa da glicerina naturalmente contida nos óleos vegetais. Nada que se tornasse um impedimento para que se recorresse a esse combustível alternativo, tendo em vista ser possível recorrer ao pré-aquecimento que pode ser iniciado com auxílio de aquecedores elétricos e posteriormente mantido com recurso à troca de calor entre o fluido de refrigeração e o combustível, para diminuir a viscosidade de modo a facilitar a fluidez.

Se nas duas últimas décadas a ignição por faísca estava confinada a uma relativa simplicidade, diante de uma evolução significativamente mais rápida que se desenrolava com os motores Diesel, já não é tão justificável essa alegação. Tomando como referência a 4ª geração do Mercedes-Benz Classe A, que recorre ao turbo e à injeção direta em todas as motorizações disponíveis, pode parecer à primeira vista que a discrepância observada nos métodos de controle de emissões seria suficiente para ocorrer um novo distanciamento mais intenso. De fato, a necessidade de recorrer ao sistema SCR e ao fluido AdBlue/ARLA-32/ARNOx-32 para controlar as emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) nos motores turbodiesel contrasta com a facilidade para simplesmente enriquecer a proporção ar/combustível num motor a gasolina ou "flex" valendo-se da ignição por faísca para tentar uma combustão completa, em que pese a maior dificuldade para se alcançar a vaporização completa do combustível num intervalo mais curto em motores a gasolina de injeção direta comparados aos antecessores dotados de injeção nos pórticos de válvula. A situação ganhou contornos tão críticos que até mesmo filtros de material particulado, antes vistos como um problema específico para as novas gerações de motores Diesel, já se tornam frequentes também em motores a gasolina. E até no Brasil a 4ª geração do Classe A faz uso de filtro de material particulado, mesmo vindo somente a gasolina...

Essa maior aproximação que alguns motores de ignição por faísca tiveram com relação ao Diesel, que pode ser observada também através do compartilhamento de um mesmo projeto modular em alguns casos como o da atual geração de motores da linha de automóveis e SUVs Volvo abrangendo também as versões híbridas como o XC60 T8, e no caso específico da Volvo convém salientar como tem sido pouco aproveitada qualquer oportunidade para fomentar o uso de biocombustíveis. Nem mesmo uma maior dificuldade para se efetuar a conversão de um motor a gasolina com injeção direta para usar o gás natural faz muito sentido, tendo em vista que já dispensaria um pré-aquecimento do etanol para as partidas a frio por exemplo, além da própria abordagem com relação aos híbridos em apresentá-los de forma antagônica ao Diesel acaba inibindo o aperfeiçoamento de soluções mais efetivas na promoção de um gerenciamento térmico que possa atender melhor às condições de operação mais intermitente do motor de combustão interna num híbrido. E por mais improvável que venha a ser a busca por uma solução de fábrica para viabilizar o uso direto de óleos vegetais num veículo 0km, que iria envolver desde um ou mais métodos de pré-aquecimento do combustível até uma dosagem de recirculação de gases de escape (sem distinção entre ser através de válvula EGR ou de variação dos comandos de válvula) que proporcione um maior controle das emissões de material particulado durante a fase fria ou condições de pouca carga que não favorecem a autolimpeza ou "regeneração" do filtro de material particulado, ignorar um combustível inerentemente mais sustentável e com disponibilidade a nível mundial relativamente estável não só se torna uma estupidez do ponto de vista estratégico como também contradiz a alegada defesa da "sustentabilidade" que tanto auxiliou na difusão da tecnologia híbrida.

E mesmo que não venha a se tornar tão relevante no mercado de veículos novos, o uso direto de óleos vegetais como combustível pode ser uma opção interessante para prolongar a vida útil operacional de veículos de gerações anteriores como no caso da Ford Ranger, tanto originalmente em versões com um motor a gasolina que já possa estar em vias de precisar de uma retífica ou substituição quanto os equipados com algum motor Diesel antigo e a princípio menos vulnerável aos efeitos colaterais que podem ocorrer nos dispositivos de controle de emissões mais avançados nos similares modernos. Um combustível limpo, que proporcione uma neutralização mais fácil das emissões e assim contribui para a estabilização biológica dos ciclos do carbono e do nitrogênio, acaba fazendo mais sentido do que se pode supor num primeiro momento, mesmo que se recorra a motores tidos como defasados. Portanto, apesar de já não despertar tanto interesse, o uso de óleos vegetais como combustível veicular é um tabu que vale a pena questionar.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html