segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Até que ponto a política do "carro popular" foi contraproducente no contexto de um fomento à liberação do Diesel para veículos leves?

É um tanto comum que se atribua ao programa do "carro popular" brasileiro algumas incoerências, e de fato a restrição a uma faixa de cilindrada até 1.0L acaba soando especialmente estúpida ao se levar em conta casos como o do Fiat Palio Fire que para exportação usava o motor de 1.3L e depois 1.4L ao invés de seguir a especificação nacional. Naturalmente é importante ressaltar que o "carro 1.0" não é exatamente uma excentricidade brasileira, embora historicamente venha jogando contra a economia de escala num contexto latino-americano dada a prevalência dessa faixa de cilindrada ter se mantido mais restrita ao Brasil. Porém, oferece uma boa perspectiva para observar outra incoerência que se dá na ênfase à potência para fins de marketing em detrimento do torque, que se evidenciava no caso do Palio ao ter o motor Fiasa substituído pelo Fire indo de 61cv a 6000 RPM e 8,1kgfm a 3000 RPM para 55cv a 5500 RPM e 8,5kgfm a 2500 RPM considerando sempre versões movidas só a gasolina.
A bem da verdade, mesmo que os motores de 1.0L sejam frequentemente reputados como sofríveis por uma parte do público generalista que vê qualquer faixa de cilindrada mais alta como uma forma de ascensão, não se pode ignorar que trata-se de uma meia-verdade a suposição de que simplesmente recorrer a um motor maior vá melhorar o desempenho, e o mesmo se aplicava a gerações anteriores de motores Diesel leves que ainda encontravam refúgio na América Latina dadas as regulamentações de emissões mais permissivas que as da União Européia. É oportuno lembrar especificamente no caso do Fiat Palio a predominância de um motor Diesel de 1.7L oferecido tanto em versões de aspiração natural quanto turbo cuja vantagem no torque para o aspirado com 10,2kgfm a 2900 RPM era muito mais estreita do que a diferença de cilindrada pode sugerir, além de alguns exemplares anteriores ao facelift que marcou a transição do motor Fiasa para o Fire terem chegado ao Uruguai com um motor Diesel de 1.3L desfavorecido não somente na potência de 45cv a 5700 RPM mas também no torque de 7,54kgfm a 3000 RPM. Como um motor aparentemente tão limitado ainda tinha quem o preferisse pode parecer loucura hoje, entretanto além da rusticidade que se esperava facilitar manutenções com menos acesso a equipamentos sofisticados convém lembrar que um motor Diesel de injeção indireta como era o caso tanto do 1.7 quanto do 1.3 favorece experiências com o uso direto de óleos vegetais como combustível alternativo que atenderia bem às especificidades de países essencialmente agrários como Argentina, Uruguai e Brasil onde qualquer industrialização mais complexa tinha sempre o viés de substituição a importações que se revelou tão decisivo no período entre-guerras e se refletia até ao menos as décadas de '80 e '90 com algumas reaberturas de mercado especialmente notáveis no Brasil.
Enquanto as dificuldades tanto de ordem técnica quanto política em torno do etanol após o desmonte do ProÁlcool desencorajavam uma retomada desse combustível alternativo em momentos que parecia um devaneio apostar que a tecnologia "flex" conquistaria uma hegemonia no Brasil, bem como o fato do gás natural ter sido regulamentado para uso particular em '96 ainda esbarrar numa disponibilidade limitada de postos que o suprem, por incrível que pareça a relativa precariedade do óleo diesel teve a particularidade de proporcionar alguma estabilidade nos mercados regionais que fomentou uma maior aceitação de motores Diesel que já ficariam defasados na Europa num prazo mais curto. Como seria de se esperar, um enfoque maior no aspecto essencialmente utilitário e na simplicidade técnica digna de um trator que ficasse ao relento na frente de algum celeiro que até o peão mais inexperiente duma fazenda conseguisse fazer alguns reparos podia ser mal interpretado por consumidores com um perfil mais urbano e pretensamente sofisticado por mais que permanecesse direcionado ao segmento dos "populares". Destacando no caso específico do Fiat Palio o fato de ser um projeto orientado desde o início a mercados "emergentes", para os quais antes se priorizava mais um aspecto essencialmente utilitário em detrimento de uma aparência mais próxima das preferências de mercados desenvolvidos, o estereótipo do hatch "popular" distanciava-se de qualquer pretensão para pleitear eventuais brechas na regulamentação ainda em vigor no Brasil que limita o uso de motores Diesel a veículos definidos como "utilitário" de uma forma arbitrária com base nas capacidades de carga e passageiros ou tração.

Contrariando e muito a questão dos "utilitários", além da ascensão da moda dos SUVs junto à classe média urbana, convém destacar a grande presença dos "populares" junto aos públicos de zonas rurais e nas periferias dos centros urbanos onde as condições de rodagem mais severas de certa forma levam à busca por uma redução nos custos de manutenção além do motor de modo que um hatch com tração dianteira como o Fiat Uno Mille Way acabassem encontrando outras finalidades que inicialmente não estavam de acordo com a proposta de "carro popular" aplicada pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello e priorizavam mais ao consumidor urbano e suburbano. Portanto, já não se pode negar que as restrições ao uso de motores Diesel em veículos leves aliadas a um limite de cilindrada estabelecido sem tanta observância a critérios técnicos revelavam-se um dilema frente à necessidade de conciliar os custos de aquisição e manutenção e até mesmo possibilidades que se perderam para promover uma maior diversificação do mercado de combustíveis alternativos. Enfim, não se pode negar que um foco muito fechado em torno do público urbano sem considerar as reais necessidades de quem vê um carro econômico e versátil como uma ferramenta comparável a "utilitários" mais caros levou a política do "carro popular" a sustentar algumas incoerências, e tornar-se contraproducente no tocante à liberação do Diesel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja bem-vindo e entre na conversa. Por favor, comente apenas em português, espanhol ou inglês.

Welcome, and get into the talk. Please, comment only either in Portuguese, Spanish or English.


- - LEIA ANTES DE COMENTAR / READ BEFORE COMMENT - -

Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html