sábado, 3 de março de 2018

Breve reflexão sobre as alegações de que os biocombustíveis causariam fome no mundo

Um dos argumentos mais repetidos à exaustão pelos críticos aos biocombustíveis, um impacto sobre a disponibilidade de terras agricultáveis até não é de todo impossível, mas certamente é reportado de forma exagerada. A perseguição política contra os produtores rurais, que sofrem não apenas com a violência promovida por guerrilhas e a falta de uma infraestrutura que viabilize o escoamento seguro e sem tantas perdas da produção, acaba sendo um dos fatores que contribuem para a perpetuação de ilusões quase sempre politicamente motivadas. Também não se pode esquecer outros problemas, que vão desde uma rejeição ao etanol de milho no Brasil até um eventual desinteresse por cultivares nativos ou aclimatados que sejam mais adequados às respectivas regiões produtoras, passando pela falta de planejamento em setores como o saneamento básico que também oferece boas perspectivas à produção de biogás/biometano em substituição ao gás natural de origem fóssil e ao gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") e eventualmente até integrar-se a outras opções de combustível alternativo com o intuito de minimizar a demanda do transporte comercial e outras aplicações utilitárias pelo óleo diesel convencional.

De fato, em algumas situações é evidente o conflito de interesses entre o cultivo de commodities, não só as energéticas mas também para uma infinidade de aplicações industriais, e variedades destinadas à alimentação humana e formulação de rações para animais de criação. O caso da cana de açúcar não deixa de ser um daqueles mais peculiares, tendo em vista que serve tanto para produzir o etanol usado como combustível e atualmente servindo também como substrato para especialidades petroquímicas quanto para a produção de açúcar, rapadura, melado, caldo de cana (que paulista gosta para beber enquanto come pastel e eu não dispenso quando as baianas do acarajé de quem eu sou cliente habitual exageram na pimenta), cachaça e rum, além dos brotos da cana poderem ser consumidos em preparações semelhantes à do palmito (mais comum em regiões onde predomine o cultivo em pequena escala). No entanto, o cerco às altas concentrações de açúcar em alimentos e bebidas industrializados dá margem a algumas especulações sobre o quão o etanol e outros biocombustíveis (inclusive o "diesel de cana") seriam efetivamente parte do problema, e nesse contexto seria válido cogitar uma maior participação de cultivares que ofereçam algo além de sacarose e fibras que são basicamente o que a cana fornece. Logo, o milho torna-se interessante devido aos teores de proteína que pode ser direcionada à alimentação humana ou (principalmente) animal, óleo comestível, e açúcares como a maltodextrina que servem tanto a aplicações na indústria alimentícia quanto para ser convertida em etanol.


A perda de competitividade do etanol diante da gasolina no Brasil, mesmo com a presença já consolidada dos motores "flex" não apenas nos automóveis mas também em motocicletas, naturalmente dá margem a questionamentos acerca da monocultura canavieira instalada em algumas regiões dos estados de São Paulo, Pernambuco e Alagoas. Não faz muito sentido negar que outros cultivares proporcionariam um uso mais racional de terras agricultáveis para atender prioritariamente à produção de alimentos, e alguns resíduos do beneficiamento industrial dos mesmos teriam serventia como matéria-prima não só para o etanol mas eventualmente também para o biodiesel, sem esquecer do biogás/biometano que pode ser obtido a partir de qualquer matéria orgânica e cujo lodo residual ainda é aproveitável na produção de fertilizantes agrícolas. Até mesmo a banana apresenta um potencial relativamente pouco explorado, tendo em vista que concentra açúcares e fornece fibras têxteis de melhor qualidade (que podem também substituir ou complementar a demanda pela fibra de vidro) em comparação ao bagaço da cana que só serve basicamente como fonte de celulose para fabricação de papel, ou para ser queimada na co-geração de energia elétrica e aquecimento de caldeiras, ou como "volumoso" na alimentação do gado. E na alimentação humana além do consumo ao natural, pode ser usada para preparações tão diversas quanto as bananas chips (muito comuns na Amazônia, e que mais recentemente ganharam espaço em outras regiões como alternativa à batata frita em meio à moda dos "alimentos funcionais") ou ainda adicionada ao mosto na elaboração de cervejas com amargor menos intenso. E como a banana contém uma boa quantidade de amido quando está verde ou açúcares quando madura, e pode sofrer fermentação alcoólica, até não seria tão surpreendente que eventuais excedentes de produção que começassem a se deteriorar em estocagem ou que viessem a ser danificadas durante o transporte ainda pudessem ter algum valor agregado como matéria-prima para etanol, apesar da produtividade em litros/hectare inferior comparada à cana.

Cabe também fazer uma observação sobre a eventual viabilidade do cultivo de certas espécies oleaginosas rústicas integrado-as a planos de biorremediação e estabilização biológica em áreas degradadas e/ou poluídas que não estejam sendo aproveitadas para o cultivo de gêneros alimentícios, com destaque para a mamona que é tão fácil de se encontrar em terrenos baldios e, se por um lado é às vezes considerada indesejável como matéria-prima para o biodiesel por conta da baixa viscosidade do óleo, por outro tem excelente desempenho como lubrificante e também já é utilizado como substrato para diversas aplicações na indústria química, além de eventualmente servir até mesmo para o uso direto como combustível veicular. Embora a mamona não sirva para alimentação, é conveniente recordar que possui raízes profundas capazes de alcançar lençóis freáticos subterrâneos com mais facilidade, além de se desenvolver bem mesmo em solos mais compactados ao mesmo tempo que vai os fragmentando e umedecendo o suficiente para que outras culturas possam ser desenvolvidas em seguida. Vale destacar, ainda, que a torta de mamona obtida por meio da prensagem das sementes para extração do óleo é muito usada como fertilizante natural na jardinagem e horticultura, além das folhas caducas ao se depositarem no chão e outras partes da planta também reintroduzirem alguns nutrientes no solo, especialmente o nitrogênio.

Naturalmente, além dos cultivares mais adequados para promover uma conciliação entre a oferta de gêneros alimentícios e matérias-primas adequadas à renovação da matriz energética do transporte, é importante lançar um olhar crítico a fatores tão diversos quanto a infeliz restrição ao uso do óleo diesel em veículos leves no mercado brasileiro. Tomemos por referência o Fiat Uno europeu que foi comercializado no Uruguai, e chegou a contar com um motor Diesel de 1.3L ainda equipado com injeção indireta: ainda que hoje seja muito difícil incorporar qualquer dispositivo mais complexo que o deixe equiparável no âmbito do controle de emissões aos motores turbodiesel de injeção direta gerenciados eletronicamente que podem ser encontrados em veículos mais modernos com uma proposta semelhante, alguns aspectos como a leveza do Uno e a facilidade dos motores Diesel de injeção indireta para operar com óleo vegetal tanto virgem quanto reaproveitado de uso culinário como combustível alternativo são interessantes no tocante à eficiência energética. Evidentemente, por dispensar o processo químico de transesterificação em que um álcool (geralmente metanol) toma o lugar da glicerina naturalmente presente no óleo vegetal para formar o biodiesel, uma menor quantidade de matérias-primas se faz necessária para a obtenção do combustível. Logo, tendo em vista que o etanol e o metanol podem ser obtidos mediante a fermentação alcoólica tanto dos açúcares contidos no caldo de cana e nas polpas de frutas e vegetais (não só a sacarose mas também o amido) quanto de resíduos celulósicos como a palha, cascas e talos, um volume dos mesmos que deixar de se fazer necessário na formulação do biodiesel devido ao uso direto de algum óleo vegetal puro como combustível acaba liberando as matérias-primas para o consumo na alimentação humana ou animal.

A histeria em torno do controle de emissões, que atinge de forma desproporcional os veículos com motor Diesel e tem servido como fomento para medidas a meu ver desproporcionais como restrições à circulação de veículos com motor Diesel mais antigos em algumas cidades da Alemanha e que já encontra proposição similar em São Paulo feita por um petista, tem se refletido no uso de dispositivos que tornam-se no mínimo um estorvo quando não inviabilizam por completo alguns biocombustíveis. O caso do filtro de material particulado (DPF - Diesel Particulate Filter), que tem apresentado algum grau de incompatibilidade com misturas de biodiesel numa proporção acima de 20% no óleo diesel convencional, é particularmente controverso tanto pelas alegações de que a fuligem retida penetraria menos nas mucosas e nos alvéolos pulmonares em comparação à fuligem mais fina que é liberada em maior proporção após a autolimpeza (ou "regeneração") forçada do filtro quanto por uma dificuldade em aferir com exatidão a opacidade da fumaça imediatamente após a combustão, que seria ideal para verificar se não estaria ocorrendo um débito de injeção excessivo e portanto prejudicando a economia de combustível nos veículos equipados com esse dispositivo. Já com o uso direto de óleos vegetais, tendo em vista que nos motores mais atuais de injeção direta se faz necessário um pré-aquecimento do óleo para facilitar a combustão completa da glicerina, as dificuldades na vaporização ao ser injetada uma pequena quantidade do combustível requerida para executar a autolimpeza são ainda mais severas que com o biodiesel...

Outro sistema que não deixa de ser um tanto estúpido é o SCR, que no Brasil tornou-se conhecido a partir de 2012 com a introdução das normas Euro-5 no país e permanece mais comum em veículos pesados mas também em automóveis e utilitários leves como o Mercedes-Benz GL 350 Bluetec. Tendo em vista que o fluido-padrão AdBlue/ARLA-32/ARNOx-32 usado para neutralizar parte das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) ao ser aplicado aos gases de escape dos veículos contém 32,5% de uréia industrial diluída em água desmineralizada, e a maior parte da uréia usada tanto em especialidades químicas quanto na reposição de nitrogênio no solo para a agricultura (como no cultivo do arroz) é sintetizada a partir do gás natural, já surgem algumas incoerências. Afinal, se o mesmo composto é usado tanto para aumentar a produtividade agrícola quanto para alegadamente reduzir os índices de poluição do ar em veículos sem no entanto proporcionar uma melhoria no processo de combustão, além do próprio consumo de energia que se faz necessária à síntese, torna-se um contraponto razoável à alegação de que os biocombustíveis seriam tão problemáticos para atender aos desafios de uma almejada renovação da matriz energética sem causar uma interferência tão prejudicial sobre a segurança alimentar.
Mesmo uma eventual substituição do sistema SCR por uma injeção suplementar de gás natural (que ainda poderia dar lugar ao biogás/biometano quando disponível) no coletor de admissão, que pode não ser tão facilmente aplicado a caminhões devido ao peso e volume, já se revela mais efetiva ao proporcionar um resfriamento da carga de ar de admissão por absorver parte do calor latente. Ainda que o gás ao ser injetado no coletor acabe por diminuir a concentração de oxigênio e a compressão dinâmica, de forma análoga ao EGR (Exhaust Gas Recirculation) que redireciona parte dos gases de escape para a admissão com a mesma finalidade de diminuir a formação dos NOx e pode ser usado tanto separadamente quanto em conjunto ao SCR, não deixa de ser vantajoso ao possibilitar que se recorra a uma diminuição no consumo de óleo diesel convencional, tendo em vista que o gás acaba por substituí-lo parcialmente sem prejuízo ao desempenho. E apesar do gás depender de alguma fonte de ignição, o que não é problema ao ser usado combinado a outro combustível que possa inflamar-se à maneira habitual dos motores Diesel, a propagação da chama (flame spread) torna-se mais intensa e contribui para uma queima mais limpa e completa que também leva a uma menor saturação do DPF.

Sem esquecer da opção cada vez mais comum pelas motocicletas principalmente devido à economia de combustível tanto para uso particular quanto em aplicações comerciais, que até pode ser motivado ao menos em parte pelas restrições ao uso do Diesel em automóveis e utilitários compactos, pode-se deduzir que ainda há um potencial inexplorado para minimizar desconfianças em torno da capacidade do etanol em recuperar a posição de destaque entre os combustíveis alternativos. Fatores tão diversos quanto a falência do modelo dos "estoques reguladores" instituídos com a perspectiva de assegurar a disponibilidade do etanol durante a entressafra da cana, de modo que se torna necessário recorrer à importação do combustível principalmente dos Estados Unidos onde o milho é a matéria-prima mais comum ou da Itália onde prevalece a uva, levam a crer que o uso de um tipo de veículo naturalmente mais econômico também se revela coerente a uma proposta de reabilitar a auto-suficiência energética nacional e fazer com que o etanol volte a ser levado a sério. E como seria de se esperar, um consumo mais contido do combustível alternativo também poderia acarretar num menor questionamento acerca do impacto sobre o uso de terras agricultáveis para alimentar veículos...

É necessário somar esforços para provar o quão injusto é jogar sobre os biocombustíveis toda a alegada influência no custo e disponibilidade de alimentos, desde uma escolha consciente de veículos que conciliem o atendimento às efetivas necessidades do operador e um consumo mais modesto de combustível até um melhor aproveitamento de fontes de energia hoje subestimadas no Brasil e outros países exportadores de commodities agrícolas. Também não se pode esquecer o caso da Venezuela, onde sucessivos governos populistas do "puntofijismo" à atual ditadura chavista se acomodaram em torno do petróleo abundante e hoje o povo sofre com o desabastecimento e índices alarmantes de mortalidade infantil causada por desnutrição. Logo, por mais que a desonestidade de alguns e a inocência de outros tantos fomente desconfianças em torno da segurança alimentar à medida que metas cada vez mais rígidas de redução nas emissões reacendem o interesse por biocombustíveis e favorecem inclusive a "diplomacia do etanol" brasileira, estão mais distantes de ser parte do problema da fome do que se poderia supor...

5 comentários:

  1. Eu até diria que o etanol de cana possa ser mais relevante na questão da fome e, mesmo que não chegue nesse extremo, possa acarretar em desnutrição. Tem muita gente que se alimenta mal, e principalmente acaba substituindo proteína por carboidrato. Antes dos canaviais tomarem conta de boa parte das terras agricultáveis e basicamente só disputando espaço com a laranja e alguma coisa que sobrou de cafezal, ainda se via bem mais variedade de plantas alimentícias nas chacrinhas pelo interior de São Paulo.

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  2. Só sendo muito ignorante ou mau caráter mesmo para supor que o problema da fome seria por causa de biocombustíveis. Essa classe política explora os mais necessitados e ainda tenta jogar a culpa para quem insiste em produzir e fazer com que o país não pare morto de fome.

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  3. Fazer álcool com bananas parece estranho, mas eu já li sobre uma moto que rodou com álcool feito de maçãs na Inglaterra.

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  4. Com certeza não é por falta de esforço dos agricultores que tem tanta gente morrendo de fome, é mais por causa de políticas governamentais desastrosas que só dificultam o escoamento da produção e ainda a violência no campo por causa do MST, e também da Funai que só tem servido para usar os índios como ponta de lança para prejudicar os agricultores e depois de causar tanto prejuízo ainda larga os índios à própria sorte para morrerem de fome.

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