sábado, 13 de outubro de 2018

5 passos para o etanol recuperar a competitividade e o prestígio

Não é de hoje que o etanol figura como uma das principais alternativas para reduzir a dependência do transporte pelo petróleo, aplicável até em competições pela maior resistência à pré-ignição com taxas de compressão mais altas comparado às gasolinas de baixa octanagem disponíveis regularmente nos postos. Até no exterior, o etanol vem atraindo interesses para aplicações de alto desempenho como alternativa a gasolinas especiais de alta octanagem ou aditivos, tomando também uma participação de mercado antes destinada ao metanol. Enquanto isso no Brasil, com raras exceções, o etanol vem sendo marginalizado a ponto se tornar mais fácil ver um carro rodando no álcool em competições de arrancada do que na rua...

Desconfianças que remontavam à crise do álcool deflagrada na safra '89-'90 da cana quando foi dada prioridade à produção de açúcar visando atender ao mercado externo só foram amenizadas a partir de 2003 quando a Volkswagen passou a oferecer versões TotalFlex com motor de 1.6L inicialmente para o Gol, com a opção chegando às versões "populares" de 1.0L em 2005. A escolha por oferecer antes a opção bicombustível no motor 1.6 se devia à alíquota de IPI mais baixa para veículos acima de 1.0L movidos a etanol em comparação aos similares a gasolina, enquanto na faixa de cilindrada abaixo não se discriminava o combustível. Portanto, num primeiro momento a vantagem para o fabricante estava clara, valendo a pena eliminar do catálogo versões movidas exclusivamente a etanol que já não eram muito requisitadas, de modo que eventuais adeptos do combustível alternativo aderissem aos "flex" e o consumidor generalista fosse no embalo diante da estratégia de marketing que apresentava esse recurso como uma revolução tecnológica.

Mesmo com a massificação dos carros "flex" no Brasil, diversos motivos levam a uma desconfiança em torno do etanol e levam potenciais usuários a não aproveitar eventuais vantagens em alguns casos específicos. A minha mãe chegou a ter um Celta VHC e, mesmo que esse motor chegue a apresentar um funcionamento muito melhor com pequenas quantidades de etanol além da mistura obrigatória na gasolina, chegando até a apresentar um consumo menor em decorrência da possibilidade de "esticar" marchas mais altas mesmo em aclive ou da injeção eletrônica empobrecer um pouco mais a mistura ar/combustível sem resultar em pré-ignição. Apesar do preço do etanol não estar competitivo diante da gasolina na maior parte do país, vale destacar que mesmo entre os carros "flex" aquele cálculo que estabelece o etanol como melhor opção quando o preço estiver no mínimo 30% mais baixo que o da gasolina não é uma fórmula absoluta, podendo manter-se competitivo em alguns modelos mesmo que essa diferença esteja mais estreita.
De fato, o descrédito de uma parte considerável do público brasileiro com relação ao etanol alcançou proporções assustadoras diante da importância histórica desse combustível desde o regime militar, no entanto está longe de ser algo irreversível. É necessário abordar eventuais deficiências num âmbito multidisciplinar, para que o público generalista no mercado interno volte a estabelecer uma relação de confiança e respeito com o que foi uma iniciativa de sucesso e até hoje destacada internacionalmente como referência de sucesso na substituição de combustíveis fósseis. Mesmo diante da concorrência de outros combustíveis alternativos, que podem ser apresentados como uma alternativa mais fácil de implementar pelas mais variadas razões, o etanol pode ter certas desvantagens amenizadas ou mesmo revertidas através de algumas melhorias tanto no processo produtivo quanto características técnicas dos veículos para o qual venha a ser destinado, além de jogadas de marketing. Nesse contexto, cabe destacar 5 passos para o etanol recuperar a competitividade e o prestígio:
1 - diversificar matérias-primas: por mais que a cana de açúcar seja favorecida na produtividade por hectare quando se refere ao etanol, é precipitado ignorar vantagens que outras opções como o milho podem apresentar. Além da possibilidade de serem feitas duas colheitas anuais, durante a safra principal ou na chamada "safrinha" e assim já contribuir mais ainda para a estabilidade da oferta ao longo do ano mesmo durante a entressafra da cana, é importante salientar que o "grão de destilaria" ao ser usado como substrato proteico na formulação de rações pecuárias proporciona um ganho de peso mais rápido ao gado de corte, além de eventualmente poder ter aplicações também na indústria alimentícia voltada ao consumo humano em substituição à proteína da soja que é alergênica para uma parcela maior de consumidores. E mesmo que a soja seja mais frequentemente associada ao biodiesel, cuja produção no Brasil ainda a tem como principal matéria-prima, há viabilidade técnica para obter etanol a partir do melaço residual do processamento de concentrados de proteína. Portanto, também é coerente apostar numa integração com a produção de outros biocombustíveis sem se converter numa ameaça à segurança alimentar, além de eventualmente aproximar o etanol de eventuais consumidores em regiões que não tenham o cultivo da cana como principal vocação...

2 - liberar a venda direta das usinas aos postos: um tópico muito polêmico, que chegou a fazer parte de uma lista de recomendações do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para reduzir os preços dos combustíveis em meio ao rescaldo da greve dos caminhoneiros deflagrada em maio último. Dispensando a passagem do combustível por bases operacionais das distribuidoras, tal medida favoreceria mais os postos localizados mais próximos das usinas, mas proporcionaria uma redução nos custos também em outras localidades em função da incidência de impostos sobre uma única operação de venda, e agilizaria a logística ao permitir uma viagem sem escalas nem baldeação. Por mais que se possa esperar alguma objeção de distribuidoras, mas levando em consideração que algumas redes de postos tem operações próprias de distribuição devidamente registradas junto à Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), tudo leva a crer que empecilhos à venda direta do etanol seguem em vigor com a intenção de minar a competitividade do etanol diante da gasolina e favorecer o monopólio da Petrobras no refino.

3 - aperfeiçoamentos nos motores para explorar melhor as propriedades do etanol: seria muito mais fácil encontrar um venezuelano pesando mais de 5 arrobas do que ocorrer uma volta de veículos movidos somente a etanol ao mercado brasileiro. Por mais que experiências de sucesso nos motores monocombustível como a da Ford com o motor CHT permaneçam na memória, não há possibilidade de se descartar os "flex". Mas se antes era tido como impossível fazer com que uma Pampa pudesse operar tanto com gasolina quanto com etanol, tendo em vista as limitações inerentes ao carburador e à ignição que se valia somente do vácuo como parâmetro para alterar o ponto, hoje em meio à presença maciça do gerenciamento eletrônico o ajuste de parâmetros do motor em tempo real de acordo com o combustível em uso tornou-se padrão. E se alguns motores mais modestos variam apenas o volume de injeção e o ponto de ignição, outros que incorporam comando de válvulas variável, turbo e injeção direta oferecem um grau de adaptabilidade maior às especificidades do etanol sem sacrificar a economia ao operar com gasolina. Vale recordar o BMW 320i ActiveFlex, primeiro modelo "flex" que incorporou simultaneamente o turbo e a injeção direta.
A principal vantagem da injeção direta é a possibilidade de manter taxas de compressão mais altas e benéficas ao etanol sem comprometer o funcionamento normal do motor com gasolina, nem precisar desperdiçar um volume de injeção maior somente para resfriar as câmaras de combustão de modo a mitigar a pré-ignição. Com a variação de fase no comando de válvulas e o turbo por sua vez, seria possível emular uma taxa de compressão variável de acordo com o combustível em uso. Valer-se de um "overbooster" para permitir que a pressão absoluta no coletor de admissão (MAP - manifold absolute pressure) possa se manter momentaneamente mais elevada favoreceria a operação com etanol. Já a tática de prolongar a duração da abertura das válvulas de admissão, designada comercialmente como "ciclo Atkinson" e mais usada em híbridos cujo motor de combustão interna opere exclusivamente com gasolina usando injeção sequencial nos pórticos de válvula como o Toyota Prius C tem o efeito colateral de diminuir a eficiência volumétrica, mas aliviando a compressão dinâmica sem alterar a compressão estática que é a "taxa de compressão" propriamente dita e assim permitindo também a emulação de uma variação desse parâmetro caso se deseje usar etanol.
Embora a injeção sequencial fique em desvantagem diante da injeção direta quando se trata da partida a frio, situação potencialmente mais crítica num híbrido devido ao funcionamento mais intermitente do motor em meio ao trânsito urbano, o tanque auxiliar de gasolina para partida que se fazia presente desde a época dos carros movidos primariamente a etanol já não é mais necessário nas gerações mais recentes de motores "flex" mesmo que a injeção direta esteja ausente. O desenvolvimento de sistemas como o Bosch FlexStart, que promove um pré-aquecimento do combustível com o uso de elementos aquecedores elétricos montados junto aos bicos injetores, facilita a vaporização do etanol quando a temperatura ambiente se encontre abaixo de 15°C. Embora tenha sido usado inicialmente pela Volkswagen já a partir de 2009, ganhou mais espaço por volta de 2012 em modelos de outros fabricantes como o Peugeot 308 importado da Argentina e equipado com o motor EC5 de fabricação brasileira.

4 - fortalecimento da "diplomacia do etanol": se esse tópico parecia não fazer muito sentido nos primórdios da reabertura do mercado aos carros importados, tomando como exemplo uma versão argentina do Voyage com 4 portas que vinha exclusivamente com o motor 1.8 a gasolina, hoje ganha relevância não só em função do Mercosul mas também pela experiência do Brasil com o etanol ter motivado as matrizes de fabricantes estrangeiros terem usado motores nacionais em versões "flex" de modelos provenientes do exterior como o Citroën C4 argentino e até mesmo no similar destinado ao mercado europeu (onde no entanto se usa o E85 ao invés do etanol puro). Por mais que inicialmente pareça ser uma decisão meramente logística diante da demanda por motores bicombustível ser mais forte no Brasil, não deixa de ser uma oportunidade para tentar reaver o respeito dos estrangeiros pelo nosso país como pólo de desenvolvimento tecnológico. Também faz sentido considerar que uma maior difusão do etanol em países vizinhos, eventualmente impulsionada por uma centralização da produção de motores no Brasil atendendo às sucursais dos respectivos fabricantes em outras partes da América Latina, poderia diminuir a tão falada "síndrome de vira-lata" que faz uma parte expressiva da população brasileira desprezar até mesmo boas soluções quando a aplicabilidade das mesmas se mantenha mais restrita ao nosso país.

Tendo em conta a questão da integração regional, não seria oportuno ignorar especificidades de cada país vizinho quando se procurar abordar uma expansão do uso do etanol. Seria muita mediocridade esperar que a Argentina ou o Uruguai se tornassem imensos canaviais mas, até em função da tradição da pecuária nesses países, justamente o etanol de milho faria algum sentido dada a possibilidade de se usar o "grão de destilaria" na alimentação animal. Outro aspecto pertinente é a eventual competição com o gás natural que tem uma presença bastante consolidada na Argentina e já vem ganhando destaque a nível regional, logo uma integração da produção de etanol de milho consorciada à pecuária também poderia ser promissora para o biometano de modo que ambos os combustíveis pudessem ser encarados mais como um complemento mútuo ao invés de fomentar uma canibalização. Diferentes condições de uso e características de cada veículo podem influenciar as preferências dos respectivos operadores, além do eventual desconhecimento de brasileiros quanto a documentações como a "cédula Mercosul" que visa atestar a equivalência entre os países do bloco na conformidade de veículos convertidos para gás natural, de modo que às vezes até um argentino que vá veranear em Florianópolis a bordo de um Renault Kangoo com kit GNV e se lembre que o mesmo modelo chegou ao Brasil importado da Argentina em versões "flex" possa ficar tentado a se entregar ao álcool quando um frentista se recusar a abastecer com gás por não ver um selo do Inmetro no parabrisa...

5 - uso como combustível aeronáutico: não é de hoje que a aviação desperta o fascínio e passa uma imagem de progresso tecnológico, mesmo que aviões ainda equipados com hélice como o Embraer Ipanema ou o Piper Pawnee C sejam vistos com um injustificado desprezo pelo público generalista. Em conversa informal ocorrida a uns anos atrás com um mecânico do Esquadrão Pampa da Força Aérea Brasileira que leciona numa escola de aviação daqui de Porto Alegre, além da questão do custo menor do etanol em comparação à AvGas ser competitivo por margem mais larga do que se observa com a gasolina automotiva (MoGas no jargão aeronáutico em países onde também é certificada como combustível aeronáutico pelas autoridades competentes), a questão da incompatibilidade do chumbo com os catalisadores usados em automóveis também figurou como um subsídio a propostas para um incentivo à substituição da AvGas por etanol diante do recrudescimento de normativas ambientais e a intransigência de comunistas que promovem um discurso de ecologista-melancia usando falsas premissas de "sustentabilidade" para prejudicar o desenvolvimento econômico e tem transformado a aviação agrícola num dos principais bodes expiatórios. Mas voltando a focar no combustível, enquanto o Ipanema já é produzido em série numa versão movida a etanol, o Pawnee e outros aviões agrícolas estrangeiros podem ser convertidos valendo-se de uma certificação suplementar de tipo (STC - Supplemental Type Certificate), e no caso do Pawnee talvez o fato da atual detentora da certificação de tipo ser a empresa argentina Laviasa possa ser mais um pretexto para enquadrar esse tema no tocante à integração regional...

6 comentários:

  1. Essa ideia de usar catalisador em avião eu acho sacanagem, mais uma coisa para dar problema e ser mais caro por causa de precisar da homologação da ANAC que não é barato.

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  2. Nem me lembro quando foi a última vez que eu vi um carro movido só a álcool, e a maioria dos donos de carro flex que eu conheço nem usa álcool.

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  3. A uns anos atrás numa balada sertaneja aqui em São Paulo estava um filho de usineiro e como nós temos um amigo em comum acabamos batendo papo e depois ele ainda arranjou umas acompanhantes de luxo para a turma. Esse pessoal que mexe com açúcar e álcool provavelmente não ia curtir muito uma concorrência do milho e da soja para fazer álcool, mas também não dá para chorarem muita miséria...

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  4. Meu avô paterno chegou a ter um carro a álcool, mas eu nem lembro direito. A única memória que eu tenho era duma manhã fria e aquele carro demorava para pegar e começar a esquentar.

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  5. Pelo menos aqui em São Paulo eu acho pouco provável que qualquer medida dessas vá ter mesmo algum impacto. Gasolina agora eu só vejo gente que tem carros que não sejam flex ou moto usando, até durante o inverno. A minha mãe mesmo, tem um carro flex que não precisa gasolina nem para a partida a frio.

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  6. Eu já não boto fé no álcool

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

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