quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Gerenciamento eletrônico: cada vez mais relevante, mas ainda longe de ser uma unanimidade

Não se pode negar que o Diesel conquistou uma parte expressiva de entusiastas ainda na época que se adaptava literalmente qualquer "motor de trator" numa pick-up, por motivações tão distintas quanto a maior resiliência diante de condições ambientais severas ou simplesmente pela simplificação logística de peças de reposição, combustível e outros insumos no meio rural. A predominância de utilitários de projeto americano antes da década de '90 também favoreceu essa percepção, tendo em vista a anterior prioridade dada pelos fabricantes à oferta de motores de ignição por faísca entre 6 e 8 cilindros forçou uma reação diante das crises do petróleo que dificilmente viria a ser possível em tempo hábil caso as filiais locais das multinacionais do ramo automobilístico como a General Motors esperassem por um investimento mais maciço na renovação das linhas de motores que incluísse opções Diesel. Logo, a mesma economia de escala que se mostrou fértil para adaptações tanto no Brasil quanto na Argentina e no Uruguai associada à necessidade levou os principais fabricantes a recorrerem ao mesmo artifício.
Ainda que motores como os Perkins 4-236/Q20B usados da Chevrolet D-10 até a D-20 já não fossem tão voltados a regimes de rotação mais altos que favoreceriam a velocidade final quanto um similar a gasolina, nem conseguissem equiparar-se aos mesmos no tocante ao desempenho como se vê na atual geração de motores turbodiesel de alta rotação e gerenciamento eletrônico, permanecem constituindo uma referência em termos de pick-ups raiz no ideário de muitos entusiastas. De fato, a robustez e a simplicidade inerentes a uma época em que a injeção eletrônica ainda parecia um devaneio de ficção científica e a opção pelo Diesel se dava também pela comodidade de dispensar a ignição elétrica com o respectivo circuito de alta tensão nunca deixaram de exercer fascínio, tanto junto a um público mais focado em aplicações de lazer quanto a quem fosse efetivamente usar as caminhonetes a trabalho. Era uma estratégia bastante conservadora e mais focada na funcionalidade em detrimento da ostentação, e até mesmo uma adoção mais maciça do turbocompressor que pudesse proporcionar um desempenho mais consistente em diferentes condições de temperatura ambiente, altitude e pressão atmosférica permanecia em último plano...

O dilema entre aderir ao gerenciamento eletrônico ou permanecer com sistemas de injeção totalmente mecânicos podia ser observado na linha Ford Série F entre 2005 e 2011, quando a F-250 foi equipada com um motor gerenciado eletronicamente de 203cv e a F-350 manteve o motor mecânico calibrado para 120cv ao invés dos 141cv anteriores, visando atender à transição entre a norma Proconve P4 (equivalente à Euro-2) para a P5 (Euro-3). Vale destacar que o projeto básico dos motores em questão era o mesmo, o Cummins Série B com 4 cilindros e 3.9L. Ambos os modelos saíram de linha em 2012 com a implementação da norma P7 (Euro-5) mas, se por um lado a F-250 já se mostrava pouco competitiva no uso predominantemente recreacional tendo em vista que o condutor necessitava de habilitação para caminhões, por outro lado a F-350 ainda era bastante desejada para usos comerciais e não acabou encontrando um efetivo sucessor entre modelos com uma concepção menos americanizada. Logo, a Ford se viu obrigada a relançar a F-350 em 2014 e teve de recorrer ao motor Cummins ISF2.8 sempre com gerenciamento eletrônico que passou a ser obrigatório a partir de 2012, incorporando também dispositivos de controle de emissões como o filtro de material particulado (DPF) e o SCR que também dependem do gerenciamento eletrônico para funcionar adequadamente.

Ironicamente, a mesma eletrônica que foi considerada imprescindível para garantir o enquadramento às normas de emissões cada vez mais rígidas também protagonizou o escândalo do "Dieselgate", que envolvia a inserção de um código secreto no módulo de controle de motores Volkswagen TDI com o intuito de identificar condições-padrão de testes de homologação e desabilitar ou minimizar a atuação de alguns sistemas em condições reais de uso visando oferecer desempenho mais vigoroso e consumo de combustível mais contido. Além de automóveis como o Jetta, que no Brasil nunca dispôs da opção por motor turbodiesel devido às restrições baseadas em capacidades de carga, passageiros ou tração ainda em vigor no país, o problema também foi detectado na Amarok que era o único modelo a ser comercializado localmente com o motor 2.0TDI de forma oficial. Embora não seja correto classificar uma situação semelhante como impossível de ocorrer em motores de ignição por faísca, a imagem de "poluidor" que a esquerda vem tentando vincular ao Diesel por motivos politiqueiros foi alardeada à exaustão em meio à polêmica causada. É importante observar que o descrédito em torno do Diesel por conta desse evento também se estendeu até mesmo sobre o biodiesel como uma opção sustentável para fechar o ciclo do carbono e neutralização de emissões.

Outro ponto controverso com relação à eletrônica é a facilidade de burlar o sistema SCR, que faz uso do fluido-padrão ARLA-32, mais conhecido em outros países como ARNOx-32 ou AdBlue e serve para neutralizar óxidos de nitrogênio (NOx) ao ser injetado no sistema de escapamento. Mediante uso de um dispositivo conhecido como "emulador de SCR", "emulador de Arla" ou "chip paraguaio" por ser geralmente contrabandeado a partir do país vizinho, o módulo de controle do motor não entra em modo de restrição de potência mesmo que o veículo esteja operando sem ARLA-32. Embora o SCR já seja usado frequentemente até em alguns automóveis e utilitários leves no exterior, ainda é mais associado no Brasil a caminhões e ônibus. De certa forma, a repressão às fraudes de emissões nesse caso é facilitada, tendo em vista que a Polícia Rodoviária Federal e o Ibama acabam identificando com mais rapidez veículos que se enquadrem no perfil que exige o uso do dispositivo. No entanto, seria conveniente recordar que o "chip paraguaio" também é usado na Europa Ocidental em veículos que trafegam por rotas transcontinentais passando por países do leste europeu onde a disponibilidade do fluido que por lá é conhecido como AdBlue permanece irregular, situação até certo ponto parecida com a que pode-se observar em países vizinhos como a Bolívia e o Peru.


Para quem prefira seguir à risca as normas de emissões, é necessário salientar que o gerenciamento eletrônico foi essencial para que diferentes variações de hibridização se tornassem viáveis, sobretudo pela maior suavidade na transição entre uma atuação exclusiva do motor elétrico ou o funcionamento integrado com o motor de combustão interna e a proporção de força motriz que cada um vá fornecer. Exemplos abrangem não apenas veículos de ignição por faísca como o Porsche Panamera 4 E-Hybrid e o Lexus CT200h, sendo possível destacar entre modelos com motorização Diesel e algum grau de assistência motriz elétrica a 1ª geração do Peugeot 3008 e a atual versão indiana do Suzuki S-Cross. Dentre os modelos mencionados, são usadas distintas configurações de transmissão, sendo o Suzuki o único a dispor de câmbio manual e valer-se de um conjunto motor-gerador acoplado ao motor turbodiesel por correia em substituição ao alternador. No tocante aos motores e lembrando que o Lexus por sua vez evidencia que a presença do turbocompressor não tornou-se tão hegemônica junto à ignição por faísca em contraponto ao observado nas gerações de motores Diesel veiculares mais recentes, vale destacar ainda a possibilidade de integrar o sistema MGU-H originário da Fórmula 1 para recuperação de energia e controle ativo de pressão do turbo em veículos de produção em série, com vantagens ainda maiores para os motores turbodiesel no tocante ao controle de emissões desde a fase fria imediatamente após a partida.

Uma eventual integração entre o óleo diesel convencional e/ou biodiesel com o gás natural também seria mais benéfica com o intermédio da eletrônica, tendo em vista a maior facilidade para recorrer à variação em tempo real na proporção entre ambos os combustíveis de acordo com as condições de carga e rodagem. Num motor com injeção mecânica que tem o débito de injeção medido somente em função da pressão absoluta de admissão, ocorreria um enriquecimento da proporção ar/combustível devido à formação de mistura com o gás natural e respectiva admissão ao invés de ar atmosférico para ser inflamada pela injeção do combustível original, podendo até incrementar o desempenho e proporcionar uma queima mais completa do óleo diesel mas não necessariamente se refletir numa melhora na economia de combustível. A presença da injeção direta cada vez mais consolidada junto a motores de ignição por faísca, como o Ecotec 2.5 SIDI oferecido na Chevrolet S10, também pode ser tratada como um pretexto válido para considerar a integração Diesel/GNV, tendo em vista que como o gás em veículos que não o utilizem direto de fábrica é injetado no coletor de admissão ainda seria necessário manter alguma vazão de gasolina ou etanol nos bicos injetores originais do motor "flex" tão somente para refrigerá-los por ficarem expostos diretamente à frente de propagação de chama.

É importante considerar também a situação bastante peculiar das viaturas militares operacionais, que costumam não estarem sujeitas às mesmas normas de emissões em virtude de uma dificuldade para se conciliá-las a circunstâncias específicas como uma eventual dificuldade logística para fornecer certos insumos como o ARLA-32 essencial em veículos equipados com o sistema SCR nas versões civis ou à necessidade de eventualmente usar óleo diesel com teores mais elevados de enxofre quando for o mais facilmente disponível em campo de batalha. Vale destacar o exemplo de caminhões Volkswagen 15-210 e algumas versões do jipe Agrale Marruá que, mesmo com a possibilidade de manterem-se enquadrados na Euro-3 recorrendo ao gerenciamento eletrônico, chegaram a ser fornecidos ao Exército Brasileiro com motores 100% mecânicos com classificação de emissões Euro-2. Não seria justo ignorar que um motor com essa configuração teria mais facilidade para enfrentar terrenos onde um contato direto com umidade excessiva e lama poderia causar danos a módulos de controle eletrônico, mesmo que fossem usados conectores estanques no chicote elétrico, além da preocupação com interferências eletrônicas que pudessem afetar tanto o desempenho dos motores de forma deliberada quanto equipamentos de comunicação embarcados.

Já em âmbito civil, uma pauta cada vez mais relevante na qual o gerenciamento eletrônico ganhou um destaque especial é a segurança veicular. Tempos atrás, o uso de motores rústicos como o Toyota 3L numa van Toyota Regius Ace de cabine semi-avançada daquelas que os paraguaios importavam já usadas do Japão não constituía nenhum impedimento para que o modelo fosse equipado com freios ABS mesmo antes que se cogitasse tornar esse dispositivo obrigatório em veículos 0km vendidos no Brasil, mas agora os tempos são outros e a exigência é maior. Tomando por referência a 2ª geração do Peugeot Expert, cujas versões turbodiesel tinham motores DV6 e DW10 gerenciados eletronicamente como únicas opções, já era possível ir além e incorporar também controle eletrônico de estabilidade. A integração entre o gerenciamento do motor, freios e câmbio quando aplicável (caso seja automático ou automatizado) é essencial para possibilitar eventuais correções em tempo real visando assegurar a dirigibilidade em condições um tanto extremas, de forma que seria muito improvável aplicar esse recurso caso fosse usado um motor controlado de forma totalmente mecânica. Na pior das hipóteses, a possibilidade de adaptar um corpo de borboleta eletrônico no coletor de admissão de um motor sem gerenciamento eletrônico poderia forçar uma desaceleração mediante restrição do fluxo de ar, mas não seria necessariamente tão fácil e ainda demandaria um sensor de rotação para fazer a interface com o motor e controlar o quanto seria necessário "estrangular" o motor.

Outro tópico que tem ganhado destaque diante da sofisticação cada vez maior tanto dos sistemas de gerenciamento eletrônico incorporados aos motores Diesel quanto dos dispositivos de controle de emissões é um ressurgimento do interesse pela ignição por faísca devido à ilusão de simplicidade, e de certa forma a oferta de apenas um motor de 1.4L com turbo e injeção direta a gasolina ("flex" no Brasil) no Chevrolet Cruze de atual geração feito na Argentina reforça essa impressão. Por mais que seja obviamente mais complexo e menos tolerante a gambiarras que o motor aspirado de 1.8L com injeção convencional usado na geração anterior, o simples fato da opção pelo turbodiesel de 1.6L já oferecido até nos Estados Unidos não ser disponível no mercado argentino também chama a atenção. E como os motores 4-tempos de ignição por faísca permanecem com um princípio básico de operação inalterado ao longo das décadas, apesar de terem ocorrido nesse meio-tempo alterações significativas nos sistemas de combustível e de ignição, não seria tão surpreendente se daqui a uns 15 ou 20 anos um argentino do interior ou um boliguayo radicado em alguma villa miseria da Grande Buenos Aires que comprasse um Cruze com o motor na marca do pênalti preferisse adaptar o motor SPE/4 Eco de 1.8L usado no Cobalt, mas trocando a injeção eletrônica multiponto por um carburador e a ignição mapeada por uma com distribuidor ou na melhor das hipóteses uma wasted-spark.
De fato, considerando que já não é de hoje que tem se exigido dos motores Diesel um maior rigor não só no tocante a dispositivos de controle de emissões mas também tem ocorrido pressões políticas, soa tentadora a idéia de resignar-se com a ignição por faísca e eventualmente até cogitar que o carburador tenha uma sobrevida em adaptações pela facilidade em efetuar reparos sem depender de scanners e outros recursos eletrônicos que nem sempre estariam disponíveis tão facilmente. No entanto, convém apontar que a ilusão de um motor a gasolina e/ou etanol ou gás como sempre mais "limpo" está longe de ser uma verdade absoluta, por mais que alguns mecânicos argentinos aleguem que mesmo carros originalmente equipados com injeção eletrônica multiponto ainda possam ser aprovados na inspeção técnica veicular (ITV) caso recebam um carburador. A formação de mistura ocorrendo continuamente durante o funcionamento do motor, permitindo que uma parte do combustível seja desperdiçada em meio ao cruzamento de válvulas entre a fase de escapamento e a admissão do ciclo de combustão subsequente, já aumenta as emissões de hidrocarbonetos crus num motor carburado, enquanto a injeção eletrônica multiponto pode ser programada para que as injeções só ocorram quando a válvula de escapamento já estiver fechada

É possível que uma bobina de ignição de Corsa MPFI queimada nas últimas semanas de 2005 tenha sido o motivo que me fez levar mais a sério a defesa de uma liberação do Diesel, mas tenho certeza absoluta que o contato com motores rústicos como o da F-1000 do pai de um colega do meu pai na FAB também pesou muito a favor. Realmente não lembro se tinha velas de incandescência ou algum outro dispositivo de pré-aquecimento para a partida a frio, mas era tão raiz que dependia até de um "estrangulador" manual ou então "matar" na embreagem para desligar porque não tinha um solenóide de parada na bomba injetora. Enfim, por mais que não me reste outra alternativa a não ser reconhecer que muitos nem sequer chegariam perto de uma caminhonete que não tenha turbo nem gerenciamento eletrônico, e que foram justamente esses recursos que tornaram viável um desempenho parelho com o de similares de ignição por faísca e proporcionaram uma suavidade de funcionamento antes inimaginável, às vezes a tradição e a nostalgia falam mais alto...

3 comentários:

  1. A tecnologia traz muitas facilidades, mas passar por cima de certas tradições é difícil mesmo.

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    1. Depois que inventaram OBD-2 e puseram app disso até no celular, essa "tradição" dos motores antigos já fica menos convincente.

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  2. Eletrônica ajudou em muita coisa mas de vez em quando atrapalha em outras

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html